quarta-feira, 19 de maio de 2010

A devota, de Caetano Sordi

Naqueles dias, em que o mundo conhecido parecia ter sido colocado de cabeça para baixo, apenas uma consternação habitava os pensamentos de Fermín Arantza: conduzir a mãe, pela última vez, à Igreja de Santiago Apóstolo, em Amorebieta, para se confessar. Os dias que restavam para Suri Arantza na companhia dos vivos eram poucos. Os sinais disso eram tão evidentes quanto o rastro dos aviões alemães no céu: de uns tempos para cá, a velha mãe não aquietava a língua um só segundo, destilando, do nascer ao pôr do sol, as cantilenas religiosas, en el “idioma”, que todos, num raio de duzentos quilômetros, saberiam acompanhar.

O problema que se interpunha na mente de Fermín era de ordem prática: o padre confessor havia sido transferido dois anos antes para Amorebieta. Padre Xoaquín, um dos poucos galegos conhecidos que aprenderam o idioma, era, na cabeça de sua mãe, autoridade inviolável em termos de confissão. Suri Arantza jamais se subordinaria aos conselhos de um padre mais jovem. Ainda mais se ele se recusasse a falar euskera e tivesse “aqueles olhos andaluzes” como tinha o então abade da capela local. Era de suma importância, portanto, que o bloqueio dos nacionalistas fosse atravessado para que sua mãe pudesse habitar a eternidade ao lado direito do Senhor.

Desde o dia em que eclodira a guerra, foram poucos os gentios do povoado que tinham visto jorrar sangue ou explosões de pólvora à sua frente. Protegido, à leste e ao sul, por umas colinas baixas; e a norte e à oeste pela coroa dentada do Cantábrico, o vilarejo, até então, havia sentido somente os efeitos secundários do fratricídio peninsular. Os racionamentos de comida e mantimentos já duravam um ano. Os aldeões já tinham se resignado a comer estritamente aquilo o que produziam, tratando produtos enlatados, bem como industrializados de toda sorte, sob o registro de bem-vindas exceções domingueiras. A situação piorara, entretanto, desde que os nacionalistas haviam bloqueado a Estrada Grande, na altura de Amorebieta, por volta do entardecer da quinta-feira de Pentecostes.

Levá-la seria de grande facilidade e simplicidade se a devota não estivesse acometida do furor cantinolento que a fazia repetir, uma atrás da outra, todas as cantigas de Igreja conhecidas em Euskadi, sem que nada, absolutamente nada fizesse-lhe parar. Pelas ordens do generalíssimo, todas as línguas peninsulares que não o castelhano estavam expressamente proibidas em território nacionalista. Mesmo que cruzasse o cerco conduzindo a mãe com sua demente cantoria, o simples fato de andar por Amorebieta ao seu lado poderia produzir graves problemas para ambos; e de problemas, Fermín Arantza já possuía a complicada vida da etxalde. Se todos os problemas do mundo fossem como aqueles da vida pastoril, por exemplo, recolher uma ovelha morta do leito de um rio, a existência seria significativamente menos complicada. Assim pensava Fermín Arantza toda vez que a polícia implicava com algum conhecido seu por chamar as coisas por seu nome de verdade.

Sim, na cabeça de Fermín Arantza, as coisas tinham nomes de verdade e nomes de mentira; os primeiros, evidentemente mais antigos e potentes que os segundos. Não havia motivo que o convencesse para chamar Donostia de San Sebastián, euskera de basco ou mesmo “vascuense” (palavra horrível ouvida de um sujeito local conhecido como “o gramático”), bem como a sagrada etxalde de “fazenda” e substituir o corriqueiro e fluido Egun On por um frio e cortadiço “Buenos dias”. Explicar-se em castelhano, assim como explicar o problema da sua mãe em castelhano para a soldadesca armada, era uma situação do mundo dos possíveis que nada agradava Fermín Arantza, justamente por ter de substituir as palavras autênticas pelas palavras mentirosas.

A Fermín Arantza, que nunca fora muito afeito à atmosfera citadina, restringir seus horizontes à cerca da etxalde nunca havia se configurado como um problema. Até mesmo visitar o povoado, distante a poucas léguas do seu portão, consistia para ele uma tarefa aborrecida, destas que se faz somente por se fazer. Desde que o irmão mais novo Ignacio – ou Iñaki, no idioma – havia partido para um convento em San Sebastián, a responsabilidade pela velha casa e a velha mãe tinha recaído totalmente sobre si. Suri Arantza, aos oitenta e quatro anos de idade, já não enxergava com a mesma eficiência com que alguns anos antes conseguia identificar grãos de milho fugidios nos interstícios das lajotas do assoalho; da mesma forma, seus movimentos, outrora tesos e certeiros, tinham definhado até os simples atos humanos de falar e respirar. Caminhar ainda lhe era possível, uns poucos passos, assim como conduzir a colher de sopa até a boca. Todos os dias, a velha dirigia-se até a latrina sozinha e, pacienciosamente, respeitava o imperativo de suas necessidades corporais. O pouco de autonomia que ainda possuía frente ao filho era celebrada diariamente neste ritual sem mais significações. Praticamente fundido às necessidades da mãe e da lida na etxalde, Fermín Arantza não tinha tempo algum para mulheres, jogar pelota, distribuir insultos etílicos na taverna e todas as atividades mundanas que consumiam o tempo dos varões ilhados pela guerra civil. Bonito e forte, não eram poucas as moças que viam nele um casamento promissor; belos e robustos filhos como Fermín e toda a estirpe dos Arantza, cuja presença naquele úmido vale do Cantábrico remontava ao tempo dos romanos ou dos visigodos. Os Arantza, assim como seus vizinhos Iturbide e os irascíveis Oyarzábal da outra margem do riacho (com os quais os Arantza sempre possuíram disputas demarcatórias), eram o que de mais antigo – depois das pedras – poderia ser encontrado entre aqueles montes tristes.

A velha passava os dias deitada numa cama antiga, que havia assistido ao parto de seus filhos, além de júbilos e infernos da vida conjugal. Da grande janela à sua frente, conseguia ter uma visão bastante ampla das terras da etxalde, embora não conseguisse mais distinguir dos vultos as suas formas essenciais. Fermín, após a lide no campo, passava longas horas velando a mãe, sentado em uma poltrona puída, como que antecipando um funeral.

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. – ordenou Suri Arantza – o que está acontecendo lá embaixo, lá no rio? Olha com atenção.

- É uma ovelha, mamãe. – respondeu Fermín – Há tempos que está afogada.

Já se contavam três dias desde que a carcaça do animal havia sido trazida, pela correnteza, à margem do pequeno riacho lindeiro à etxalde dos Arantza. Nem Fermín nem os empregados da propriedade haviam tomado qualquer providência em relação àquilo. Pensaram, primeiramente, que os cachorros tratariam de fazer o trabalho sujo, deglutindo os restos da pobre ovelha como bendiria seu instinto ferino. Os ossos, posteriormente, poderiam ser guardados pelos homens para usufruto próprio. Em tempos de penúria como aqueles, a utilidade de todas coisas – até mesmo as mais absurdas e prescindíveis, em outras épocas – era ponderada com seriedade. “É quando o mundo parece se dilacerar”, pontificava Xabier Iturbide, velho amigo e vizinho dos Arantza, “que as coisas se revestem de mais dignidade”.

Os dias iam se seguindo e o sol se punha cada vez mais triste atrás dos dentes do Cantábrico; o fim de tarde vinha sempre acompanhado do monstruoso rufar das hélices alemãs. Fermín Arantza mal e mal comia, importunado como estava não só pelo problema da missa e da subseqüente confissão, mas também pela intermitente ladainha que se ouvia desde o dormitório da sua mãe. Por alguns momentos esquecia daquilo e era como se a fraquejada voz de Suri Arantza ditasse o ritmo do mundo; de fato, aquelas cantigas eram declamadas na língua do nome verdadeiro de todas as coisas, e nada mais adequado ao mundo e à vida do que o nome que cada coisa tem. No entanto, toda vez que se afastava um pouco da velha casa e podia desfrutar de um silêncio mais profundo, era como se outra voz, ainda mais verdadeira, independente dos homens e das suas guerras civis, falasse ao seu ouvido. Longe da mãe, longe de tudo, apenas na companhia dos grilos e dos imprevisíveis sons do vale e do riacho, era como se ouvisse um idioma mais autêntico que o idioma autêntico: o som das palavras sem boca, diretamente coladas nas coisas que definem.

Toda vez que retornava à casa e ao tecido sonoro produzido por Suri Arantza, Fermín sentia-se novamente jogado sobre a realidade. Aquela língua há pouco ouvida como que se dissipava novamente dentro do espectro das palavras corriqueiras, dentro do universo de nomes e verbos produzidos pelo idioma, a língua falada pela sua estirpe desde eras ancestrais. Volta e meia a mãe interrompia os cânticos e, mirando Fermín, fundo nos olhos, lhe perguntava:

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que está acontecendo ali? Olha com atenção.

Não era mais a carcaça da ovelha que atraía seu olhar cansado. Ela já havia sido retirada. A persiana da janela mais próxima é que se mexia freneticamente, por causa do vento, dando secos murros na parede. Como era noite de lua cheia, portanto bastante clara, uma tímida luz vinha de fora. Esta luminosidade parca, acoplada ao vai-e-vem da persiana, produzia sombras fantasmagóricas no dormitório da devota.

- É o vento, mamãe. Tua janela está aberta.

Desde que Suri Arantza havia perdido boa parte da visão, Fermín também fazia as vezes de olhos para sua mãe. Aos vultos que ela via aqui e acolá – sobretudo aqueles do lado de fora da janela – ele dava a digna e honesta interpretação. “Vejo agora através das tuas palavras, Fermín”, dizia ela, sempre agradecida, nos momentos de lucidez em que cessava a cantoria. Eles eram diários e repetiam a mesma forma, como se um demônio meridiano tivesse implantado uma loucura sã, ou uma demência matemática no juízo da pobre velha.

Podia ser às cinco horas da tarde ou às sete horas da manhã. Variava. Fermín chegava ao quarto minutos antes e, silenciosamente, acomodava-se na poltrona de feltro, colocada ao lado do leito de sua mãe. A ladainha religiosa arrefecia lentamente e, de repente, após alguns segundos de calado suspense, ela dizia:

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. Diz-me o que lá se vê. Diz-me com atenção.

Para a mulher do vizinho Iturbide, o ritual diário não passava de mais uma manifestação do sagrado coração de Cristo, indício de que Suri Arantza necessitava o quanto antes se confessar para sua redenção. Tais coisas oprimiam o coração de Fermín como um cruel torniquete. Antes que achasse uma solução viável para o problema, temia enlouquecer de vez. O vento que sopra do Mar Cantábrico em direção à península, assim que bate nas encostas de Navarra, retorna sobre Euskadi com a úmida força de uma resignação abatida. Em todas as direções que olhava, Fermín Arantza via indícios de seu mundo acabando. A ovelha que encontrara em seu riacho, tomara ciência posteriormente, havia sido abatida por fogo humano, impiedoso. Da guerra das pessoas, também os bichos estavam padecendo. A guerra chegara naquele ponto do mundo que quase ninguém havia conseguido transpor. A língua de Fermín e das ladainhas da sua mãe só havia resistido por força destas contingências, meio naturais, meio humanas, que preservam resquícios da fundação do mundo aqui e acolá. Assim que terminasse a guerra, temia Fermín, também terminaria a sorte de sua gente.

A ininterrupta corrente das efemérides era cada vez mais permeada pela angústia de Fermín e ritmados pela cantilena a São Tiago Apóstolo, às Virgens de Covadonga e Begoña, Santo Antônio e São Sebastião. Os Iturbide, comovidos com a situação do rapaz, trataram então de emprestar-lhe um bem valioso, para que pudesse ouvir, de quando em quando, outras melodias que não aquelas da sua mãe. O enorme rádio de botões circulares foi posicionado ao lado da cama de Suri Arantza, para que também ela pudesse variar um pouco a monotonia dos pensamentos. Naquela altura dos acontecimentos, qualquer mudança de tom representaria um temporário alívio.

Pois que os resultados de tal empresa não foram os melhores, tendo em vista os planos ainda vivos na cabeça de Fermín de cruzar o cerco dos soldados e chegar ao Padre Xabier a tempo de operar a salvação da alma materna. Após um estafante dia de trabalho na plantação contígua à casa da etxalde, Fermín Arantza levou à mãe, como de costume, uma pequena ração de leite, biscoitos e café. Ao entrar no quarto, deparou-se não com as costumeiras cantorias religiosas, mas algo muito pior; muito mais difícil de ser aceito e passar imperceptível pelos aquilinos ouvidos da soldadesca. Com força surpreendente para uma velha entrevada, Suri Arantza, um tom acima da sua voz normal, cantarolava as malditas palavras:

Eusko gudariak gara


Euskadi askatzego


Gerturi daukagu odola


Bere aldez emateko...

Fermín Arantza conhecia muito bem aquela melodia. Quando a sua mãe ainda freqüentava o baile dos humanos sãos, ele volta e meia se dirigia, após as lides na propriedade, para a única cantina do povoado, tendo como objetivo consumir uns tragos. De quando em quando, gente de Bilbao aparecia propalando, numa ridícula versão pomposa do idioma, idéias tão absurdas quanto imaginar um morto insepulto feliz. Era um fato, conhecido e acreditado, que Fermín Arantza nunca gostara muito de gastar sua língua com castelhano e com a gente que o falava naturalmente. Todavia, reconhecia como sacrossanta a união das foralidades de sua gente e Reis Católicos. Questionar tais coisas parecia, para sua mente aldeã, tão sacrílegas quanto jogar aos porcos o sangue eucarístico. Uma das grandes irritações suas com o mundo daqueles dias era justamente o fato dele parecer estar se dilacerando através da suspensão destes liames sagrados; a fidelidade a certos princípios estava impressa em sua alma. “Quando ovelhas mortas aparecem boiando em riachos e pobres velhas são impedidas de se confessar, é porque tudo, absolutamente tudo está perdendo lentamente o seu sentido” – assim dissera Fermín Arantza para o amigo Iturbide, um pouco antes de regressar à casa depois de se aconselhar sobre a novidade da mãe.

O fato preocupante não era agora o idioma em si: era o conteúdo das novas ladainhas da sua mãe. Fermín conseguia imaginar com perfeição a sua carroça avançando pela estrada, sua mãe escondida como podia, nada conseguindo abafar a cantilena que vem da sua boca. O primeiro soldado os aborda. Do fundo da carroça se escuta:

Eusko gudariak gara


Euskadi askatzeko...


Nós somos os soldados bascos


Que a Euskadi libertaremos...

Os soldados entendem rudimentos do idioma. Em todo caso, mesmo não o entendendo, saberiam identificar a melodia republicana. Maldito dia em que os Iturbide haviam lhe emprestado aquele rádio. Melhor seria que os franquistas escutassem Done Jakue e “santo santo santo é o Senhor” do que aquelas palavras que ele mesmo não via razão de serem. A própria palavra gudariak não existia na sua língua normal, herdada dos avós e bisavós. Como bem lhe informaram alguns, tratava-se de mais um dos verbetes criados pela gente de Bilbao para falar de coisas que no mundo de antanho não existiam, mas que como a pólvora, a espingarda, a metralhadora de repetição e a bomba de fósforo, passaram a habitar o mundo das coisas conhecidas e demandavam nomes para si.

Em meio a tudo isso, chegara o frio, e Suri Arantza fora acometida de uma violenta gripe que a colocou por algumas semanas mais próxima da morte do que da vida. Paradoxalmente, a doença acabou dando a Fermín Arantza uns dias de paz, uma vez que a cantoria - agora política - e não religiosa, havia trazido para a etxalde novamente o calar-se das coisas inertes. Temia, no entanto, que a mãe retornasse do silêncio proferindo outras verborragias, quem sabe insultos e palavrões. O medo acabou não se concretizando, mas assim que retornara ao pouco de lucidez que lhe restava, Suri Arantza apenas lhe perguntou:

- Levanta-te menino, põe-te de pé. O que é esta claridade lá fora?

- É a neve, mamãe. O inverno chegou.

Fermín apreciava muito o brancor gelado que cobria os campos naquela época do ano, mas em tempos difíceis, nada pior do que a chegada do frio. O racionamento de víveres tinha se tornado ainda mais cruel. Os nacionalistas que bloqueavam a Estrada Grande haviam organizado, na semana anterior, uma campanha de recolhimento de todo tipo de tecido e peles, nas etxalde dos arredores, para o esforço de guerra. A propriedade dos Arantza não havia ficado de fora. Fermín e os empregados conseguiram esconder apenas uns casacos seus e umas mantas puídas de velhos tempos, de modo que patrão e empregados – os homens – faziam um rodízio semanal de agasalhos para organizar a penúria de modo mais ou menos decente. Na visita dos soldados, Fermín escondera a mãe no galinheiro, para que os castelhanos não ouvissem seus cantares revolucionários. Por vezes sentia toda aquela situação como ridícula, mas há muito as coisas perdiam sua seriedade e modo grave de ser.

Assim que foram embora, percebera que um dos soldados deixara um enorme pala vermelho com as insíginias dos Reis Católicos sobre as almofadas do sofá. “Bem feito, filho da puta”, pensara de si para si em foro íntimo, e ajuntou a nova coberta ao leito da doente mãe. A gente do povoado tornara-se, naquele inverno, uma pequena população de inventores. A miséria fizera com que os objetos ainda não consumidos pelos esforço de guerra se tornassem polivalentes, servindo em todos os lares para muito mais funções do que aquelas em vista das quais vieram ao mundo. Esta situação derivou numa mudança de mentalidade por parte do vizinho Iturbide, que abandonara sua doutrina da dignidade ampliada dos objetos em tempos difíceis e adotara a máxima de que, por força da matança sem sentido, “os objetos haviam todos se prostituído”.

Assim que a primavera deu os primeiros indícios da sua chegada, colorindo pouco a pouco o campo da etxalde com pequeninas flores branco-e-amarelas, Suri Arantza pareceu um pouco mais disposta e aventurou-se para além da cama em passos tímidos e contidos, debruçando-se sobre o parapeito da janela. Fazia tempo que não via o mundo desde aquela perspectiva. Embora conseguisse mirar o exterior desde a sua cama, daquele ponto de vista o mundo de fora ocupava todo espectro do visível, por pior que fossem suas capacidades de distinguir a realidade dos borrões que via aqui e ali. Fermín Arantza a observava desde a poltrona com uma pequena alegria estampada na alma; freqüente nos momentos em que a mãe cessava o torpor melódico e retornava ao mundo das conversações normais.

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que é isto que se move lá?

Fermín levantou-se um tanto abruptamente. Da poltrona, via uma figura humana crescendo em direção à casa desde o exterior. Cambaleava. E parecia estender a mão. Da janela, pode enxergar melhor. Antes de correr para fora, respondera:

- Mamãe, é um rapaz que chega à nossa casa. Parece exausto!

- Dê ao moço água e pão. Casa com visita, casa com Deus.

Fermín não parecia tão disposto a seguir à risca o ancestral preceito da sua mãe. Naqueles dias, uma visita também poderia significar o inferno de uma casa. Saiu para encontrá-lo, portanto, bastante receoso. Sempre tinha um revólver no coldre por precaução. Ao dar-se de cara com o visitante, percebeu que não se tratava nem de um galego, nem de um castelhano, cântabro ou basco; o surrado uniforme denunciava ser ele um membro das brigadas, inimigo dos nacionalistas e possivelmente estrangeiro. De fato, seus louros cabelos de visigodo e os profundos olhos azuis denunciavam qualquer coisa nórdica; para efeito de satisfação identitária, Fermín decidiu considerá-lo um alemão.

- Que queres aqui? – perguntou em castelhano.

- Água. Comida. – respondeu o visitante, possivelmente dando voz à metade do seu vocabulário em espanhol.

- Me acompanhe.

Fermín sentiu que o gesto para segui-lo havia sido mais eficiente que as palavras ditas.

Conduziu-o até a cozinha. Lá, preparou café forte e deu-lhe duas fatias de pão branco; um punhado de manteiga, o pote de açúcar. “Presunto?”, “Agradecido”. “Geléia?”, “Deus lhe pague”. Para si, Fermín serviu-se de café com um bocado de leite. Percebeu que fazia três anos que não dividia a ampla mesa de madeira com alguém de fora da etxalde.

- Brigadas?

- Sim – assentiu o outro.

- Como você veio parar aqui? Não há um bloqueio dos nacionalistas logo aqui a frente?

- Amorebieta caiu. Divisão italiana matou tudo nacionalista, pá, pá, pá! – esclareceu o visitante, gesticulando, com forte sotaque germânico – Eu perdi meu Kommandant. Escondido na floresta... dois dias caminhando até casa de bom homem.

Enquanto o estrangeiro comia, Fermín Arantza reparava nas cicatrizes que seu corpo de normando sustentava, talvez como troféus. O sujeito comia como se nunca tivesse visto um prato de sopa em toda a sua vida. Tristes tempos, em que um mísero pedaço de pão provoca as mesmas reações que uma barra de ouro.

- O caminho agora está livre? Daqui até Amorebieta não há nacionalistas?

- Não. Amorebieta caiu. Kaputt. Wir haben es geschafft.

- Amigo – disse Arantza após respirar fundo – se você é grato pela minha solidariedade, gostaria de lhe pedir um favor. De gente honesta para gente honesta.

- Por favor.

- Escolte a mim e à minha mãe até a Igreja de São Tiago Apóstolo em Amorebieta. É questão de vida ou morte.

O outro não estava em condições de recusar qualquer pedido. Ao final da tarde já estavam com tudo pronto para a viagem. O coração de Fermín Arantza, pela primeira vez em anos, desde o início daquele cerco sem sentido, via-se pleno de alguma esperança. Cumpriria com orgulho sua função de bom filho: encomendaria de modo justo e decente a boa-morte de sua mãe. Viajariam durante a noite, por ser mais seguro. Embora os franquistas tivessem sido vergonhosamente abatidos por uma força tarefa de voluntários alemães, franceses, argentinos e italianos, era bem possível que alguns deles ainda perambulassem pela mata, humilhados e ansiosos por tomar o sangue de qualquer coisa que viesse a cruzar o seu caminho.

A carroça avançava lentamente pelo curso da Estrada Grande. Cada vez mais longe da etxalde, Fermín Arantza conseguia compreender melhor o estrago sobre o mundo que o fratricídio ibérico estava causando. Não havia árvore, não havia bicho, não havia casa arruinada ao longo do caminho que não gritasse: “salvem-me, pois também sou vítima desta barbárie”. Fermín pensou então em Cristo e o sagrado mistério do sacrifício. Se um homem morre pela humanidade inteira, por que em alguns casos a humanidade inteira parece morrer por força de uns poucos homens?

Os raios de sol já surgiam desde os cumes cantábricos quando sua diligência adentrara às portas da cidade recém tomada. Amorebieta ainda cheirava à peste; o fedor de pólvora, misturado com sangue e madeira queimada impregnava suas vias nasais. O estrangeiro, feliz pela retribuição paga, deixou-se ser levado mais uns metros pela carroça da família Arantza. Simpatizara com aquela velha louca, porém bondosa, que cantara a viagem inteira o hino da Internacional. Antes de se alistar em seu país natal, havia ouvido que não há lugar na península mais pitoresco e verdadeiro que aquelas terras do norte, espremidas entre o mar e a montanha, entre Deus e o Diabo, entre a Espada e a Cruz. Tal raça não parecia habitar a face da terra. Não, pelo menos, no mesmo registro que os demais povos ao redor. A viagem de escolta ao lado dos Arantza havia apenas confirmado esta impressão.

Das poucas ruas de Amorebieta não tomadas pela ocre lama da destruição, a praça central pareceu a Fermín Arantza a mais apropriada para estacionar a carroça e fazer descer, com segurança, sua pobre mãe. Dali até a igreja do Apóstolo eram uns poucos passos. Nada que as pernas de Suri Arantza, num sacrifício final, não estivessem aptas a fazer. Apesar do lento apagamento do mundo, o céu estava, naquele dia, assustadoramente azul. Traços brancos da aeronáutica alemã cruzavam sua imensidão lembrando aos mortais que o terror ainda persistia. Pelo menos para Suri Arantza, as coisas pareciam se encaminhar para um desfecho mais feliz.

Subitamente, mãe e filho escutaram zumbidos de todos os lados. Vozes, muitas vozes, gritavam ordens em duas, três, quatro, infinitas línguas, de infinitas partes do mundo; de todas as partes da Terra, ao menos, que haviam enviado um pouco da sua gente para ter suas vísceras expostas naquela guerra de horrores. “Viva a República!”, ouvia-se à esquerda; “Es lebt die spanischen Republik!”, assoprava o vento à direita; “Por Franco, por España!”, de todos os lados; até mesmo um familiar “Gora Euskal Herria! Gora Euskal Herria askatuta!” conseguiram captar. Os zumbidos das balas eram cada vez mais próximos. Sem poder apressar o passo, Fermín Arantza tentou cobrir a mãe como pôde, puxando-a de um lado para o outro, de porta em porta, janela em janela, procurando defender a ambos da rajada de chuva prateada que os atinge e desperta: ou bem enfrentam o trovejar da guerra, ou bem Suri Arantza morre sem se confessar.

De pronto, avistaram a Igreja de São Tiago Apóstolo cercada de anarquistas. Também ela havia sido tocada pelas balas. Do alto de um buraco na parede, outrora ocupado por um vitral, um soldado atirava na estátua de Cristo Rei. Rapidamente ele os avista, mãe e filho, Fermín coberto por um pala vermelho com a efígie dos Reis Católicos. Cumpridor de ordens, o soldado não titubeia. “Franquista!”, grita, e Suri Arantza suspende a respiração. Seus olhos não conseguem identificar nada mais que movimentos incertos, apenas a imagem de Fermín, jogado ao chão, destaca-se, visível, na tessitura do seu olhar.

- Levanta-te, menino. Põe-te de pé. O que está acontecendo aí frente? Que vozes são estas e que línguas são estas que eu não compreendo?

- É o mundo, mamãe. São as palavras novas, mamãe. Nem elas, nem o mundo, nos pertencem mais.

11 comentários:

  1. Às vezes, meus alunos de oficina se contentam com pouco. Escrevem contos curtos, simples cenas, sem muita profundidade, sem "ousía", diria o Aristóteles, com linguagem correta mas sem textura. E eles, certamente, me acham um chato, por cobrar-lhes mais fôlego, maior envergadura, maior pretensão literária.

    Sou chato mesmo. Faço questão de ser.

    Professor bonzinho, em geral, gera aluno bobinho. Professor exigente, além de inimigos, conquista grandes talentos. Caetano Sordi é um deles. Meu aluno na PUC, de Oficina de Criação Literária. O conto que publico aqui é um primor. Sordi não se contenta com a superfície, é peixe de águas profundas, tanto no eixo dos procedimentos construtivos quanto no eixo dos meios expressivos.

    Leiam, vale a pena. Eu gostei muito.

    Charles Kiefer

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  2. Nossa! Deixa eu tomar fôlego! Será um novo "Gabito" que está vindo aí?

    Maoris Stock

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  3. Fui "nocauteado" pelo conto de Caetano antes mesmo de ter concluído a primeira leitura. Devido a falta de tempo, só poderei terminar de ler pela noite, já que não posso rasgar uma página do monitor e nem mesmo imprimir o conto, pois minha impressora encontra-se sem tinta.

    Senti em certo ponto que o conto dialogava com areia, brancura, algo, que porosamente era despertado em meu inconsciente, coberto por uma névoa que só dissipou-se com a chegada do forasteiro da brigada - nota, parei a leitura neste momento para escrever aqui, pois Cronos lembra-me que tenho que sair de casa para cumprir minhas obrigações antes das 14 horas. - Enfim, com a chegada do Forasteiro formou-se um rosto em contra-ponto aos cabelos loiros e olhos azuis, tratava-se de era Luiz melodia, e com a canção que coloquei aqui e com uma rápida pesquisa na "memória moderna google" lembrei-me o nome do filme que senti dialogar com o conto. Trata-se de Casa de Areia com participação de Fernanda Torres e Fernanada Montenegro no núcleo da trama. O filme aborda a tragetória dessas duas mulheres, mãe e filha que encontram-se completamente isoladas, cada uma delas com sua delicada solidão. Limitadas ao convívio com apenas duas poucas pessoas que restaram na aldeia se não me engano. O imaginário da fome, da solidão, e da desertificação da alma é o ponto de partida do filme de acordo com o meu olhar leigo ou superficial, pois assisti o filme uma única vez e já faz um bom tempo. Notei no conto de tamanha riqueza, o diálogo com a loucura vindo da voz-alma-ou-situação-extrema que encontra-se o filho da senhora enferma que possui o desejo de se confessar com um religioso de sua confiança que encontra-se longe e inacessível devido a guerra. Gostaria de fazer outras considerações, mas agora, realmente meu tempo está estourado, então deixo aqui dos excertos que me tocaram de alguma forma.

    São esses:

    "Eles eram diários e repetiam a mesma forma, como se um demônio meridiano tivesse implantado uma loucura sã..."


    "Uma das grandes irritações suas com o mundo daqueles dias era justamente o fato dele parecer estar se dilacerando através da suspensão destes liames sagrados; a fidelidade a certos princípios estava impressa em sua alma. “Quando ovelhas mortas aparecem boiando em riachos e pobres velhas são impedidas de se confessar, é porque tudo, absolutamente tudo está perdendo lentamente o seu sentido” – assim dissera Fermín Arantza para o amigo Iturbide, um pouco antes de regressar à casa depois de se aconselhar sobre a novidade da mãe.

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  4. ...O fato preocupante não era agora o idioma em si: era o conteúdo das novas ladainhas da sua mãe. Fermín conseguia imaginar com perfeição a sua carroça avançando pela estrada, sua mãe escondida como podia, nada conseguindo abafar a cantilena que vem da sua boca. O primeiro soldado os aborda. Do fundo da carroça se escuta:
    Eusko gudariak gara
    ..."

    Belo conto... terminarei de ler pela noite.

    Parabéns ao Caetano.

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  5. Deus te abençoe e conserve, Caetano. Um beijo, ana

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  6. Também gostei muito! E faço eco com a Ana..."que Deus te conserve", pra seguir produzindo estas maravilhas.
    Monique

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  7. Caetano, que belíssimo conto. Ponto de vista do narrador, temporalidade, linguagem e, o que mais gosto, conteúdo, tudo muito bom, robusto, exuberante, transbordante. Parabéns, diga adiante, sempre.

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  8. Caetano, que belíssimo conto. Ponto de vista do narrador, temporalidade, linguagem e, o que mais gosto, conteúdo, tudo muito bom, robusto, exuberante, transbordante. Parabéns, diga adiante, sempre.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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  10. Muito obrigado pelos comentários de todos que leram! Fico feliz que o conto os tenha tocado de alguma forma. É muito rico e gratificante saber que a história de Fermín e sua mãe vive agora também em outras mentes... de algum jeito, portanto, as palavras e o mundo retornam a estas personagens.
    Agradeço ao Charles, igualmente, pela oportunidade de compartilhar o texto com todos.

    Um abraço!

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  11. Parabéns Caetano!
    Um belo conto que certamente foi tecido com dedicação, que é como traças tua própria existência. Mais que tua amiga, sou também tua admiradora.
    Continues, por favor, a escrever. Que o papel em branco sempre te dê mais fôlego para produzires em latitude e longitude.

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