terça-feira, 3 de maio de 2011

A tulipa descartada (Guilherme Bica)

Descia as escadas da redação com a pressa de quem deixou para trás quatro provas de páginas ímpares e pares para revisar. Uma amiga dela me avisara que ela queria falar comigo, queria acertar tudo, saber se era isso mesmo, se tinha acabado daquele jeito, se já era o fim. Eu passei pela porta do prédio, ganhei a rua e vi Carmela sentada num daqueles toscos exemplares de mesa metálica que normalmente pertencem a botecos malcheirosos, mas ali preenchia a calçada em frente a uma sorveteria. E aquela imagem tão insólita de uma guria tão linda como Carmela recostada num objeto de invariável natureza ordinária, que dava sinais de gasto e perdia a cor branca nas laterais para denunciar a verdadeira pele de um cinza metálico escuro, aquela imagem me causou de pronto uma vulgar estranheza inicial.

Juntei-me a ela, puxando uma cadeira de uma mesa vizinha, e tentei um Oi para avaliar se me respondia. Ao que Carmela suspirou algo que não compreendi e obrigou-nos silenciosos por alguns segundos. E aquele silêncio poderia calar todos a nossa volta: os taxistas narradores de piadas obscenas, o cara engravatado da revenda de automóveis que anunciava a promoção do dia e até o carro de som num volume anormal que convidava a todos para a festa de sábado no clube.

E aí, eu perguntei pra ela, e aí ela sorriu aquele sorriso irônico que só ela sorri, mesmo que com quinze anos poucos saibam o que significa ironia, e me despejou uma centena de lamentos do tipo Tu não tava comigo?, Eu achei que a gente estava começando a se entender, mas agora já não sei, O que tu quer, afinal?, Tem que escolher!, Eu não vou dividir ninguém!, A gente parecia bem, e o tom agressivo foi minguando à medida que ela começou a encolher os lábios para não chorar e eu não me lembro das outras reclamações pertinentes de Carmela, só recordo que tentei pegar em sua mão e fui repelido rapidamente.

Ela voltou a ficar muda e a única coisa que se movia nela era a franja bem aparada, dividida ao meio, expondo a testa e balançando pouco com o vento que não decidia se vinha ou ia embora. Parecia que só eu via a discrepância daquele relacionamento incipiente que não deveria vingar. Eu na faculdade, eu estagiando, eu tomando cerveja, vodca, uísque, eu lendo Neruda, Nassar, Faulkner, eu ouvindo Tom, Chico, Vinicius, eu vendo Glauber, Godard, Antonioni, eu distante tantos anos do colégio. Ela denunciada pela juventude da camisa verde e larga desenhada pelo brasão da escola que encobria o seio esquerdo, ela vestida com a calça preta do uniforme juvenil ainda no corpo, ela refém de toda aquela limpeza que nos tornava tão afastados, a limpeza na boca, nos dentes, nos braços, cabelos e até na voz.

Na volta da mesa da qual recendia uma tensão lúgubre e lúbrica ao mesmo tempo, as sete amigas de Carmela me julgavam e mimetizavam o sorriso irônico, mas sem a propriedade da boca verdadeira. E me deu uma vontade de contrariar tudo o que eu havia demonstrado sem palavras nas últimas semanas – as ligações não atendidas, as mensagens não respondidas –, e me ajoelhar ao lado de Carmela para pedir desculpas e dizer que ela era a mais bela guria que eu já havia conhecido, que eu não estava nem aí para eu ter vinte e quatro e ela nove anos a menos, que tudo daria certo daqui pra frente.

Mas não dava. E foi o que eu disse. Carmela, não dá! Sei que ela ficou surpresa. Porque aqueles olhos cor de tijolo claro e o corpo em sublimada adolescência e fulminado com justificada sede por todos os homens pelos quais ela cruzava – e ela alcançava a idade de tomar consciência disso – não estavam acostumados à rejeição. A minha feiúra discreta cometia a insolência de descartar a beleza de tulipa de Carmela. Ela se recompôs, amparada pelas amigas, e me disse Se mudar de idéia, me avisa, e aquela frase eu sabia que traria comigo por muito tempo ainda, tanto que estou eu aqui a escrever sobre ela, impelido talvez por uma esperança ingênua de que um dia ela leia estas linhas e reflita na pele de um espelho honesto com sua beleza aquele mesmo sorriso limpo e irônico, mas agora com outro sentido, mais autônomo e consciente.

Elas deixaram a sorveteria e encaminharam-se para a esquina, Carmela com os braços entrelaçados nas amigas. Ainda tive tempo de subir as escadas, correr até a sala de meu chefe e esticar o pescoço para fora da janela e vê-la sorrindo e me esquecendo, antes de sumir atrás de um ônibus que resolveu aparecer justo naquele momento inoportuno.