Os tártaros se aprontavam para invadir o forte quando o ônibus parou. Marcos se levantou a contragosto, marcou a página com o real que sobrara do troco e saiu na manhã fresca. Era o primeiro dia de aula, o campus estava cheio. Subiu a escadaria, observou as mulheres em frente, outro grupo que ria em torno de um banco, as árvores por todos os lados. Gostou dali. Mais adiante viu o bar. Era cedo, ainda, mas já estava aberto. Resolveu entrar e pedir um café.
– Oi, tu é bixo?
Virou. Uma mulher mais alta que ele, magra, bonita, um estojo e um caderno na mão, esperava na fila.
– Sou, disse, um pouco surpreso, enquanto vasculhava uma moeda no bolso. – “Recém entrando no deserto”, e mostrou, satisfeito com o próprio comentário espirituoso, a edição de Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, o verde da cédula a sobressair da página marcada.
– Licenciatura?
– Sim.
– Eu já li esse livro, é ótimo.
Marcos olhou para a mulher. O rosto afilado, o nariz bem feito, sorriso inteligente.
Puxou a nota do meio do livro e pediu mais um café.
– Toma comigo?
– Não sei se dá tempo. Tu já sabe qual é a tua sala...?
– Sei, sim, ele disse, e simulou uma olhada no relógio. – Ainda é cedo.
Sentaram próximos à janela. O bar ficava em desnível em relação à rua. Dali eles só podiam ver os pés das pessoas, de um lado para o outro.
– Oi, tu é bixo?
Virou. Uma mulher mais alta que ele, magra, bonita, um estojo e um caderno na mão, esperava na fila.
– Sou, disse, um pouco surpreso, enquanto vasculhava uma moeda no bolso. – “Recém entrando no deserto”, e mostrou, satisfeito com o próprio comentário espirituoso, a edição de Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, o verde da cédula a sobressair da página marcada.
– Licenciatura?
– Sim.
– Eu já li esse livro, é ótimo.
Marcos olhou para a mulher. O rosto afilado, o nariz bem feito, sorriso inteligente.
Puxou a nota do meio do livro e pediu mais um café.
– Toma comigo?
– Não sei se dá tempo. Tu já sabe qual é a tua sala...?
– Sei, sim, ele disse, e simulou uma olhada no relógio. – Ainda é cedo.
Sentaram próximos à janela. O bar ficava em desnível em relação à rua. Dali eles só podiam ver os pés das pessoas, de um lado para o outro.
– Qual é o teu nome?
– Silvana.
– Prazer, eu sou o Marcos.
– Prazer.
A mulher abriu o estojo e tirou uma caneta.
– Tu vai gostar daqui, Marcos.
– Tu também é bixo?
– Não, eu me formo no ano que vem.
Marcos abaixou o olhar, por um instante.
– Tu já leu o outro livro dele? – ela continuou.
– Não. Como é que se chama mesmo...?
– As montanhas são proibidas.
– Isso, eu tenho esse livro. Tá lá em casa, para ler.
“Só os livros lidos nos pertencem realmente”, ela escreveu na capa do
caderno e virou para ele ler, um sorriso meio triste.
Marcos sorriu desconcertado. Lembrou-se por um momento de Giovanni Drogo, a personagem central de Deserto dos Tártaros, o jovem italiano que se alista numa guarnição de fronteira à beira do deserto e espera com ansiedade, durante anos, o ataque dos tártaros.
– Eu tô lendo o Borges, a Antologia Pessoal, conhece? Tem um conto que é sobre isso tudo aqui, e rodopiou o dedo.
– Isso aqui o quê?
A mulher olhou para os pés na rua, abriu uma página em branco do caderno.
– Tá vendo isso? – com um risco delimitou as bordas da página.
Marcos fez que sim.
– Isso é o deserto. Já aconteceu alguma coisa?
– Aconteceu alguma coisa aonde?
– No livro que tu tá lendo, na história. Já aconteceu alguma coisa de especial, assim, que mude o rumo das coisas, que faça tudo ficar diferente?
Marcos sorveu um gole de café, se endireitou na cadeira, olhou um segundo de novo para o desenho e depois fixou o olhar na mulher.
– A guerra, tá começando a guerra.... depois eu não sei.
A mulher manteve o sorriso, olhou para a janela e ficou mais séria. Tinha um ar decidido e complacente, quase carinhoso. De repente traçou uma reta que iniciou fora do círculo e parou aproximadamente no meio. Aí largou a caneta, cruzou os braços sobre a mesa e disse com o mesmo sorriso complacente:
– Esse é o único livro que não precisa ser lido até o fim.
Marcos não entendeu o que ela queria dizer, e antes que pensasse numa pergunta ela arrematou:
– Não tem guerra nenhuma, Marcos, não vai acontecer nada. Os tártaros não invadem o forte.
Um grupo do lado de fora chegou, parou, riu e se pôs a conversar ali em frente à janela. Marcos pôde ver pelos pés que era um casal: dois pares de All Star de frente um para o outro, bem próximos. O par menor ficava na ponta dos pés, de vez em quando.
– Mas tu não disse que o livro era bom?
– Foi o melhor livro que eu já li.
Silvana tirou um cigarro da bolsa, acendeu-o e olhou para ele com a quietude de uma estátua. A fumaça do cigarro balançou, subiu, ladeou, espalhou-se e aos poucos envolveu a mulher e Marcos, depois a mesa e as cadeiras e, por fim, todo aquele canto do bar.
– O conto do Borges é meio doido, acho que nem ele acreditou muito naquilo. É um grupo de alunos de Letras que no fim da aula descarrega um revólver no professor – e riu.
Marcos riu também. Começava a ficar fascinado por aquela mulher. Tudo que dizia era interessante e misterioso, ela toda era misteriosa, e como era bonita! Pensou em levantar e pedir outro café, perguntar mais coisas, de onde era, há quanto tempo estava ali, o que pretendia fazer, só sabia o seu nome, afinal, mas antes que pudesse tomar uma atitude ela se lançou da cadeira e disse que precisava ir. Arrancou a folha desenhada do caderno e lhe deu.
– A gente vai se ver muito ainda, falou, já quase na escada. – Depois vem o trote, talvez eu possa ser a tua madrinha.
Subiu alguns degraus, virou-se e, por fim, disse:
– Olha, eu tava brincando, é claro que tu tens de ler o livro até o fim.
* * *
O professor Marcos olhou para as mesas e viu que o bar estava vazio. Olhou pela janela, também não tinha mais ninguém lá. Subiu para a calçada.
O sol já estava alto. Pegou a velha edição de Deserto dos Tártaros, folheou-a, abriu-a na última página. Leu a última frase: “Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri”. Com a mesma folha de caderno dobrada, remarcou o livro aleatoriamente.
Um casal passou por ele, em direção às aulas.
– Bom dia, professor.
– Bom dia, sorriu.
Recolheu o olhar assim que pôde. Respirou fundo. Mais um dia, menos um dia.
Seu peito parecia uma fortaleza, naquela época.