domingo, 30 de maio de 2010

Recital dos mortos, de Nelson Rego

Tudo estava ruim, mas ficou pior depois que a televisão veio aqui e filmou seu Seis revirando os olhos e recitando sem parar os nomes dos mortos. No início, seu Seis fora apenas o mais doido entre os malucos já contratados por meu pai. Alguns são malucos. Outros, safados fingindo serem médiuns. Eu sei quando eles estão fingindo, eu sinto. E sei quando são doidos e acreditam de verdade.

Seu Seis nunca quis cobrar. Dizia que não se cobra por um dom dado por Deus, não tem preço. Queria jorrar como uma fonte de água pura para todos, era o que dizia. Meu pai convenceu ele a cobrar pelas consultas, em nome de manter a casa. Seu Seis concordou. Cobrava o valor da comissão paga a meu pai e mais um pouco, que era para custear alimentação, luz, essas coisas, já que decidiu ficar morando no quarto anexo ao consultório.

Meu pai tem faro para negócios. Percebeu logo que seu Seis iria render muito. O outro médium, que trabalhava há meses no consultório, continuou atendendo, alternando-se com seu Seis. Por pouco tempo. Era um fingido, mas tinha alguma intuição e compreendeu que o melhor era ir para longe de seu Seis. Meu pai só tem olhos para dinheiro e não viu que, depois de dinheiro, seu Seis traria desgraça.

Tive medo de seu Seis desde que botei os olhos nele pela primeira vez. Inchado como um cadáver, pensei isso. Nunca vi um cadáver dias depois da morte. Sei que é assim porque se fala muito na morte aqui em casa. Meu pai conta piadas e histórias de assombração, debocha. Achei seu Seis estufado como um cadáver apodrecido.

Com o tempo, achei que se tornava a cada dia um pouco maior. Sonhei uma vez que ele inchara até ocupar o tamanho inteiro da sala.

Quando eu era pequena, os médiuns atendiam dentro de nossa casa. Ao perceber que o negócio iria prosperar, meu pai construiu o consultório nos fundos, no pátio. Seu Seis foi o primeiro que preferiu morar no quarto anexo. Movimento de pessoas querendo consultar sempre existiu. Mas só com seu Seis é que se formaram filas.

As pessoas vinham de outros bairros e até de outras cidades. Depois da televisão, passaram a vir de todo o país. Antes, seu Seis dava consultas como qualquer outro médium, só que de um jeito mais impressionante. Revirar os olhos, ele sempre revirou. E os guinchos que solta, antes de falar com aquela voz que vem do fundo de uma caverna, também são os mesmos. O que mudou foi a mensagem.

Seu Seis dava notícias dos mortos. As pessoas ficavam sabendo sobre os planos astrais em que eles recebiam lições, preparando-se para novas jornadas no mundo. Os mortos enviavam conselhos e súplicas, pediam que os vivos acendessem velas para afastar os demônios. As pessoas gostam de levar susto. Quanto mais gente saía de olhos arregalados e dando risadinhas nervosas do consultório, mais gente queria entrar na sala escura. Meu pai fazia fortuna.

Foi então que a coisa começou. Seu Seis desandou a recitar listas de nomes e sobrenomes que ninguém sabia de quem eram. Mal-estar mesmo era causado pelo que ele dizia misturado com as listas. “A bala entrou pelo ouvido esquerdo, os miolos ficaram esparramados pelo chão”. As pessoas trocavam olhares. “A lataria degolou o velho, que nem assim morreu na hora, ficou ali, estrebuchando.” Ninguém entendia nada. “Quatorze anos, quatorze anos, não tinha mais do que quatorze anos.” Misturava essas frases sem nexo com as listas de nomes, repetia sem parar frases e listas. Só se acalmava ao nascer do sol, quando adormecia, recomeçando pelo meio da manhã.

Nessas horas todas falando, bebia apenas uns goles d’água e comia menos ainda, sem sair do transe. Nem por isso deixei de achar que ele continuava aumentando.

As consultas pararam. Ainda vinham pessoas escutar, muitas até, mas ninguém pagava para ouvir listas intermináveis de nomes desconhecidos.

De início, meu pai pensou que a coisa seria passageira e que, após, a fama de seu Seis iria aumentar mais ainda. Pensou que deixar as pessoas assistirem o transe enlouquecido incendiaria o falatório, seria boa propaganda para o estabelecimento.

Depois viu que não tinha jeito, seu Seis não voltaria às consultas rentáveis. Decidiu chamar o pessoal do hospício, para que tratassem de remover o médium, já que ninguém conhecia parente ou amigo de seu Seis que pudesse se encarregar disso.

O azar foi que, no instante em que meu pai colocou a mão no fone para chamar o hospício, uma mulher gritou lá no consultório. Seu Seis dissera nome e sobrenome do sobrinho dela, Rogério Leandro de Oliveira, dissera e repetira, não havia como confundir. E completara com a informação – “baço perfurado”.

A mulher estava histérica e o grupo que a acompanhava, agitado. Seu sobrinho morrera semanas antes num acidente de carro. Ele e outros três, bêbados, haviam se chocado contra a traseira de um caminhão. O ferimento fatal fora perfuração no baço.

“Anota os outros nomes, anota os nomes”, alguém gritava, no meio da confusão de todos falando, da mulher chorando, do seu Seis recitando sem parar. Meu pai, mudo e pálido.

O pior foi em meia hora confirmado. Consultados os parentes das vítimas, três outros nomes correspondiam aos mortos no acidente.

Nas primeiras horas da manhã seguinte, já se formara uma pequena multidão na calçada em frente à casa. Meu pai não queria permitir que fossem escutar seu Seis, mas invadiram o pátio, espremeram-se no consultório, disseram que seu Seis pertencia a todos. Meu pai ameaçou chamar a polícia, mas não chamou.

Ficaram ouvindo seu Seis. Haviam chamado parentes e amigos de pessoas mortas de maneira violenta. Anotaram as frases malucas e os nomes que seu Seis enfileirava.

Passou o tempo. E nada.

Meu pai já estava esperançoso de que fossem embora frustrados. Mas aí aconteceu. Foi como gol marcado em estádio lotado. A vibração começou no consultório, prosseguiu pelo pátio e se alargou pela rua. O ajuntamento era um caldo grosso que a corrente de exclamações atravessava rápida. Andreia Soares, esse o nome reconhecido. Duas amigas dela estavam presentes. Quando seu Seis acrescentou “a facada atingiu o coração” e as duas confirmaram, foi nova gritaria. Até o anoitecer seu Seis marcou uma dezena de pontos, entre centenas de nomes recitados.

Eram também de mortos os nomes não identificados? Para verificar isso, espalharam por todos os modos possíveis os nomes anotados e chamaram mais parentes e amigos de mortos a escutarem o recital. Em dois dias seu Seis alcançou uma centena de pontos. Multidão agigantada tomava a rua, invadia nosso pátio.

A partir daí os acontecimentos são conhecidos por todos. Veio a televisão e depois outras emissoras, e mais rádios e jornais. Seu Seis, meu pai e até eu viramos celebridades. A rua prosseguiu lotada.

Os jornalistas investigaram o passado de seu Seis a partir das informações que ele dera a meu pai. Seu verdadeiro nome seria José Santos. Teria quarenta e poucos anos. Haveria sido casado e comerciante no interior paulista. Há dez anos abraçara a missão a ele confiada por Deus, passando a percorrer o país em nome do Criador.

Nada foi confirmado, seu Seis, que não tinha documentos de identidade, viera do nada.

E tiveram todos que se contentar com a explicação que dera a meu pai sobre seu novo e sagrado nome, Seis: explicação nenhuma. Um segredo entre Deus e ele, segundo o próprio.

Investigaram também a vida de meu pai. Quiseram saber se ele possuía outra renda além das comissões sobre as consultas. Meu pai lhes informou que era aposentado por invalidez. Por que invalidez, se era ainda moço e aparentava boa saúde? Perguntou-lhe um repórter com jeito desconfiado. Meu pai falou dos pulmões, puxou uma tossezinha para demonstrar e desconversou.

Algum vizinho soprou um boato e os repórteres foram averiguar na delegacia policial. Acho que subornaram funcionários para obter registros de denúncias contra meu pai, por estelionato. Coisas de sua mocidade. Nada fora provado, ele nunca estivera preso.

Mesmo assim, denúncias e a aposentadoria precoce, que colocaram sob suspeita, serviram para por lenha na fogueira das matérias que indagavam se a casa dos médiuns não explorava as crendices e as dores do povo.

Porém o povo já estava com a sua convicção formada. Para a multidão, seu Seis era mensageiro de Deus. Estava acima de meu pai, livre de contaminações.

Ninguém soube explicar como, mas em poucos dias estabelecera-se um culto, com organizadores, regras e crença. Quando seu Seis dizia o nome de uma vítima de acidente, assalto ou outras violências, se parente ou amigo do morto estivesse naquele momento presente, valia por uma poderosa vela acesa no plano astral. Auxiliava a vítima a liberar-se do trauma e evoluir em seu karma. O benefício estendia-se aos vivos que houvessem testemunhado o momento em que a boca santificada de seu Seis pronunciara o nome.

Daí porque a romaria que tomava a rua e invadia o pátio tornara-se constante. Mães desesperadas, órfãos, legiões de sofredores faziam fila rezando em voz baixa. Esperavam horas pelos instantes em que estariam no grupo com permissão para entrar no humilde santuário de seu Seis.

A maioria saía da sala sem a recompensa desejada. Mas, a cada dia, diversos eram os que saíam exultantes, abençoados pela audição do nome aguardado. Dádiva completa era quando o nome vinha acompanhado do bônus extra da frase com informações exatas. “Derrapou na pista e capotou até descer pelo barranco”, e uma viúva desatava em prantos. “O ônibus bateu de frente contra o caminhão, a menina estava dormindo, sim, estava dormindo, estava dormindo a menina, ainda está para acordar, vai acordar no céu” – os avós iam embora enlaçados, rostos suavizados pelas lágrimas misturadas com o sorriso. “Dois tiros à queima-roupa, agonizou um dia inteiro”, os pais se retiravam quase dispostos a perdoar o assassino.

Testemunhar que muitos eram abençoados incentivava os desafortunados a voltarem nos dias seguintes em busca da mesma dádiva. A crença afirmava que o consultório montado por um salafrário fora o lugar escolhido por Deus para abrigar a missão de seu Seis, num sinal dos misteriosos caminhos através dos quais se realiza a vontade divina. Na sala santa deveria permanecer seu Seis em transe, em respeito à vontade suprema.

Meu pai bem que tentou chorar miséria, fazer-se de inocente e pedir uma moeda por visitante, mas percebeu em seguida que corria o risco de levar uma surra.

Os organizadores do novo culto colocavam ordem nas filas, controlavam o tempo de permanência dos grupos dentro da sala, anotavam nomes e sobrenomes recitados, divulgavam as listas, chamavam o povo. Providenciavam as flores e os incensos. Registravam as preces de agradecimento enviadas pelos sofredores. Revezavam-se dia e noite na vigília em torno de seu Seis. Baniram qualquer pagamento na entrada do consultório, em nome de romper com o passado suspeito da casa. Apenas aceitavam donativos dos abençoados com a escuta dos nomes queridos. Essas coisas todos sabem. Viram na televisão, escutaram no rádio, leram no jornal. Sabem que na rua surgiu e cresceu um comércio ambulante de flores, velas, pedras mágicas, retratinhos de seu Seis e camisetas estampadas com a imagem dele, livros de preces, escapulários, churrasquinhos e lanches rápidos.

Sabem que sou bonita, pois me viram na TV, dando entrevista na frente do portão da casa, declarando que gostaria que aquilo tudo terminasse, e que nunca seu Seis pronunciara nome e sobrenome de minha mãe na lista dos mortos. Assistiram, na reportagem que fizeram no colégio, a estúpida da minha professora dizendo que às vezes chegam até a ficarem assustados com minha inteligência, mas que a lástima é que poucas vezes estou disposta a esforçar-me e tirar melhores notas.

E todos viram, ouviram, leram padres, pastores e líderes espíritas condenando o novo culto. Tomaram conhecimento de psiquiatras explicando que esquizofrênicos podem desenvolver uma memória psicótica, capaz de armazenar inacreditável quantidade de informações sobre o tema de sua obsessão. Acompanharam os jornalistas investigando os quatro mil nomes acertados por seu Seis e verificando que, quase todos, haviam tido suas mortes violentas noticiadas.

Conhecem a controvérsia que se seguiu. Seu Seis fora leitor das páginas policiais em suas horas de folga do ofício mediúnico, antes de afundar no transe ininterrupto. Desde quando poderia estar acumulando informações? Por que não pronunciava nomes de pessoas mortas após sua entrada no transe definitivo? Seus poderes, por acaso, teriam data de validade? E aqueles outros nomes não confirmados, que formavam uma legião muito maior, quem eram? Nomes inventados? Essas evidências e perguntas sem respostas não indicariam que a explicação dada pelos psiquiatras seria verdadeira?

Souberam do mesmo modo que suspeita alguma abalou o ardor dos novos crentes. Como seu Seis poderia lembrar de quatro mil nomes e sobrenomes e, de uma parte destes, saber informações precisas sobre as circunstâncias de suas mortes? Por que ter mais fé na possibilidade de uma fantástica memória do que no milagre da comunicação com os mortos? Quem explicaria a paz celestial que inundava os abençoados com a escuta dos nomes queridos? Viram, ouviram e leram organizadores do culto e parentes e amigos das vítimas dando testemunho de sua fé.

O que não sabem era o que acontecia comigo. Nem o que se passou entre mim e seu Seis enquanto tudo definhava.

A primeira vez foi no metrô. O trem estava atulhado de mortos. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação do tipo que eu pudesse controlar. E era nítida. Nítida demais. A primeira vez foi no metrô. Depois aconteceu na rua, no supermercado, no ônibus, na sala de aula. Fui no estádio e ele estava lotado, de mortos. Fiquei olhando aquela gente ensangüentada, empilhada nas arquibancadas e pensei: esses são os que morreram em acidentes de trânsito no ano passado. Subi no elevador espremida entre rapazes de cabeças furadas, os que foram desovados no lixão durante o carnaval. Desci do ônibus cheio de suicidas. Não queria voltar ao metrô, mas fazer o quê? Não podia deixar de andar pela cidade e ver a multidão de cadáveres descendo as escadas para dentro das bocas negras das estações. E os trens? Eu me apavorava. Mas era até divertido.

Por quanto tempo se prolongaria o novo culto? Eu fazia cálculos. Lembrava de ter lido que, desde décadas, morriam trinta mil, quarenta, cinqüenta mil em acidentes de trânsito todo ano. Isso somava um milhão ou dois, por aí. Os mortos em assaltos, em disputas do tráfico, em brigas de rua ou de bar, em brigas de família, os esfaqueados, os fuzilados e os espancados eram o dobro dos mortos em acidentes de trânsito. Só nos festejos do último Ano-Novo haviam se ralado não sei quantos. E tinha mais uns punhados de soterrados por desabamentos, de fuzilados por engano pela polícia, de mulheres mortas depois ou mesmo antes de serem estupradas, sei lá. Seu Seis iria dizer os nomes de todos esses milhões? Eu duvidava, a tal da memória psicótica não poderia ser assim tão poderosa, nem poderia ter lido todas as páginas policiais, nem todos os mortos eram noticiados. Mas qual o número que ele teria conseguido guardar?

Não deixava de ser engraçado voltar da escola e abrir passagem entre o grupo de defuntos que se apinhava no portão da casa, entrar e fazer meu lanche de final de tarde. Meu medo diminuía, até mesmo no trem. Em troca, crescia o tédio. Sempre ouvira falar em morrer de tédio, agora começava a entender que isso poderia ser mais do que um jeito de falar.

Quando alguém levaria seu Seis embora? Meu pai não ia no juiz pedir a remoção de seu Seis por medo de que os crentes, em represália, exigissem do poder púbico a revisão de sua aposentadoria. Eu não tinha para onde ir, casa que me recebesse. Na verdade, nem queria. Eu me consolava assistindo a desgraça de meu pai, sujeitando-se à situação por causa da aposentadoria mixuruca, temeroso não sei de quais outras represálias. Bem feito, pensava.

Sabia que seu Seis sairia do transe quando esgotasse o estoque de mortos identificáveis. E quando isso acontecesse, algo mais aconteceria, eu sabia, sentia. Mas o quê? E quando?

Adivinhava que continuaria enxergando mortos enquanto seu Seis morasse nas peças nos fundos da casa. Já não sentia medo. Nem no trem, espremida pela multidão sendo devorada pelos vermes. E deixara de achar engraçado. Tudo era hábito, não sentia nada. A única coisa que me interessava era saber quando seu Seis iria embora.

Um dia tive uma iluminação. Minha pergunta estava errada. Não era quando. Era o quê. O que seu Seis queria para ir embora? Mal pensei isso e um defunto se virou para mim. Não posso dizer que me olhasse, já que no lugar dos olhos tinha a fenda aberta por uma machadada. Movia os lábios devagar, falava baixinho. Não consegui entender o que dizia, mas tive uma intuição.

Naquela noite, como em todas, fui ao consultório. Depois que o expediente das visitas terminava, permaneciam com seu Seis apenas dois ou três dos organizadores. Revezavam-se na vigília de proteção ao santo, anotavam os nomes e frases que ele continuaria pronunciando até o nascer do sol. Eu levava bifes e arroz, sanduíches e café para eles. Essa era a forma que meu pai encontrara de ainda ganhar uns trocados com seu Seis. Negociara com os organizadores que eu providenciaria todas as noites as refeições e eles pagariam uma taxa pelo serviço.

Às vezes eu permanecia na sala, observando seu Seis, enojada. Ele suava sempre, pegajoso, melento. Sentia cheiro de carne podre desprendendo-se do homem enorme.

Sabia que seu Seis parara de alimentar-se apenas nos primeiros dias do transe profundo. Depois, durante a noite, em segredo, os vigilantes o alimentavam com parte das refeições que eu preparava com fartura, obedecendo à exigência deles. Ninguém me contara isso. Eu sabia. Para o público eles mantinham a imagem milagrosa de que seu Seis apenas ingeria goles d’água e quase nada de comida. Eu imaginava seu Seis cagando durante a madrugada e aqueles cretinos limpando o asqueroso em transe. Desejava que o consultório, o quarto, o banheiro pegassem fogo.

Era comum os vigilantes abandonarem a tarefa de anotar os nomes. Seu Seis repetia várias vezes as listas antes de iniciar novas. Os vigilantes cansavam. Retiravam-se para um canto, conversavam em voz baixa.

Naquela noite permaneci mais tempo na sala. Sentada no chão diante de seu Seis esparramado sobre a poltrona, revirando os olhos, recitando as listas.

Seu Seis passou a pronunciar mais devagar os nomes, fazia breves intervalos. Os vigilantes prosseguiram em sua conversa em voz baixa, no canto da sala.

Então eu vi. Seu Seis fixou seus olhos nos meus e moveu devagar os lábios. Não emitiu som, mas entendi o movimento. Ele pronunciara o nome de minha mãe. Retornou de imediato ao recital, no momento em que os vigilantes interromperam a conversa e voltaram seus rostos para nós, alertados pelo intervalo de silêncio mais prolongado.

Saí da sala sem sentir paz celestial alguma por ter lido nos lábios repulsivos o nome de minha mãe, não me senti como os outros, que se consideravam abençoados pela audição de um nome aguardado.

Para mim acontecera de modo diverso. E diferente deveria ser o significado do acontecido, pensei. Tive outra intuição. Passei a ler todos os dias as páginas policiais. No sexto dia aconteceu: a reportagem sobre uma mulher de nome e sobrenome iguais aos de minha mãe, assassinada de modo idêntico. Seu marido estava assistindo futebol na TV, à noite. Esvaziara todas as garrafas e queria mais. Não iria deixar de assistir o jogo para buscar as cervejas no bar, quadras adiante. Mandou a mulher, que sumiu no trajeto da rua escura. Encontraram seu corpo na manhã seguinte, num terreno baldio, degolada, de bermudas arriadas. A polícia confirmara que havia esperma em seu ânus. Do mesmo exato modo como meu pai mandara minha mãe para a morte, seis anos antes.

Seu Seis não me dissera um nome do passado. Dissera o futuro. Pensei isso um minuto antes de escutar uma mudança no vozerio habitual que vinha da rua. Deixei o jornal sobre a mesa da cozinha. Lavei a louça do meio-dia antes de sair à rua. Não sentia pressa. Era reconfortante ouvir aquela mudança para um tom aflito nas conversas da multidão de peregrinos. Eu adivinhava qual seria a novidade.

Fui até os fundos. Minha entrada no consultório era sempre permitida pelos organizadores. Seu Seis interrompera o recital. Permanecia balançando devagar a cabeça, mirava o teto. Tinha uma mistura de riso silencioso e careta medonha na cara. Alguns peregrinos observavam a cena. Talvez agora enxergassem a verdade, eu pensava, olhando para seus rostos pasmos.

O recital de seu Seis nunca fora em solidariedade aos mortos. Ele sentia necessidade de estar rodeado de tanta dor. Sentia prazer. Eu sabia.

Prolongara com nomes falsos a expectativa pela audição dos nomes aguardados. Nenhuma vela fora acesa em outros planos pela salvação dos mortos, quando um nome fora recitado.

Seu Seis é doido de atar. Mas não é apenas doido. Ele se comunica de verdade com alguma coisa. Demorei a entender isso. Foi só naquele momento, depois de ler que uma mulher de nome igual ao de minha mãe fora assassinada do mesmo modo, olhando para o riso medonho do monstro, que eu soube.

Eu olhava para os rostos dos tolos, tentando adivinhar se eles enfim enxergariam a verdade. Mas, não. Eles estavam assustados. Perdidos. A verdade, eles não queriam encontrar.

O que aconteceu depois todos assistiram na TV, ouviram no rádio, leram nos jornais. Sabem que o culto definhou, que agora poucas pessoas permanecem em frente à casa, esperançosas ainda de que seu Seis volte a recitar os mortos.

Acabou o noticiário, e todos lembram dessa história, pois foi há menos de um mês que iniciou o declínio do culto.

O que nunca souberam é o que acontecia comigo. Eu retalhava porções de carne a cada noite, preparando os bifes que levava com arroz, sanduíches e cafés para os vigilantes, que alimentavam o santo em jejum. Minha mão tornava-se mais destra a cada noite, forte, ágil, incisiva no corte. A faca longa e afiada passara a ser um prolongamento de meus dedos. Eu me perguntava se o novo transe de seu Seis, sorrindo para o teto, seria profundo a ponto de impedi-lo de defender-se de um golpe.

Seguia minha rotina. Continuava enxergando os mortos, amarrada ao tédio com cordões e laços fortes. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação que eu pudesse controlar. Assistia o espetáculo. A diferença era que, agora, os mortos pareciam ter medo de mim. Não viravam em minha direção seus rostos. Mantinham distância respeitosa. Retiravam-se aos poucos do local em que eu estivesse. Até o metrô tornava-se rarefeito. Sei que era imaginação minha. Mas, nítida demais.

Eu levava as refeições todas as noites até os fundos. Os vigilantes não tinham mais o mesmo ânimo. Até dormir, dormiam. Ouvira eles comentando que esperariam mais uma semana ou duas. Se o santo não voltasse a recitar milagres, seria removido para o asilo.

Meu pai se lamentava pela perspectiva de perder a venda das refeições. Repetia para mim, como se esperasse que eu inventasse uma solução, que a credibilidade fora perdida, não seria possível reativar a casa com outros médiuns. Meu consolo era assistir seu tormento.

Prosseguia em minha rotina. Esperava por algo, sem saber o quê. Ficava observando seu Seis, uma noite após outra. Os imbecis dos vigilantes permaneciam conversando no fundo da sala. Dormiam. Eu me perguntava se, durante esse tempo todo, nenhum deles percebera que seu Seis continuara a crescer. Cada vez mais alto, mais inchado.

Todas as noites levava as refeições e permanecia um tempo diante do monstro. Ouvira os vigilantes comentando que não existiam motivos para adiar a remoção do seu Seis. Só que eu já não desejava isso. Não enquanto tudo não estivesse, de verdade, terminado.

Eu sabia, sentia, que deveria escrever sobre os acontecimentos. Escrevi isso tudo na noite retrasada, sem parar.

Ontem à noite o demônio falou em voz baixa comigo. Os vigilantes estavam distraídos no canto da sala, jogando baralho. Eu permanecia em pé diante de seu Seis, observando seu inchaço. Imaginava se ele não explodiria como um balão se fosse furado. Estava com os olhos fixos em seu estômago, saltado sob a camisa, quando senti um formigamento na testa. Antes mesmo de levantar a cabeça, adivinhara: o olhar de seu Seis estava cravado ali. Sei que não era apenas reflexo do único abajur aceso no canto da sala, havia mesmo um brilho próprio saindo de seu olhar, um brilho de coisa ruim. Seus olhos pareciam duas cabeças de cobras encarando-me desde cima. Seu olhar foi baixando. O monstro estava me admirando. Seu olhar deliciou-se com meu umbigo, deixado à mostra por minha calça de cintura baixa. Sua língua asquerosa fez movimentos para fora da boca como se lambesse, enquanto fixava meus pés descalços. Chupou meus dedinhos à distância, um por um. Ele demorou o olhar em meus peitos, salientes sob o tecido da camiseta branca. Então começou a mover os lábios em silêncio. Não consegui ler o que diziam. Aproximei-me para entender, mesmo sabendo que aconteceria o que aconteceu. A mão suada de carne podre acariciou meu braço, enquanto eu lia e relia nos lábios do pestilento o nome do meu pai.

Os dois vigilantes abobados nada viram. Mal responderam ao boa-noite que desejei ao me retirar. Nem perceberam que, na porta, ainda me virei para seu Seis e mandei para ele um beijo prolongado.

Não duvido mais de seus poderes. Sei que ele pode chamar forças obscuras para produzir acontecimentos. E entendi a troca que ele me propôs. Sei que ele pode prever o futuro. Mas não todo o futuro. Ele também se deixa cegar.

Passei a noite em claro. Em alguns momentos pensei em recuar, porém me foi nítido que, quando fraquejava, o tédio, ou a raiva, ou o medo, sei lá, tornava-se tão grande e pavoroso que não sei se era uma enchente que vinha do fundo de mim para me afogar ou se era um mar de ondas gigantes vindo de fora, do mundo.

Passei outra noite em claro. Mas estou sem sono. Escrevo essas últimas linhas agora pela manhã. Meu pai tomou cerveja em vez de café. Saiu sem me dizer palavra. Notei que o bolso de sua calça estava estufado por um bolo de dinheiro e que a ponta de uma nota de cinqüenta estava à mostra. Ele já não sabe mais o que faz. Sempre se achou esperto, sequer percebe o quanto está débil. Foi jogar sinuca no boteco, fazer apostas. Em sua ilusão, pensa que vai voltar para casa com mais dinheiro do que saiu. Não vai voltar para casa. Vai ser assaltado. Vai reagir. Vai ser morto. Foi a última vez que o vi. Eu sei.

Voltei da rua faz meia hora. Só vi as pessoas de sempre, as que vivem suas vidinhas. Os mortos desapareceram. Em instantes meu pai vai se juntar a eles. Minha mente está expandida. Compreendo tudo como nunca havia compreendido. Estou sem medo, sem sono. Estou desperta como jamais estive.

Os dois vigilantes abobados bateram na porta da cozinha. Vieram me dizer que vão sair mais cedo. Os dois outros não demoram a chegar. Não preciso me preocupar com seu Seis, ele está dormindo um sono pesado, tão cedo não acorda.

Na verdade, os outros dois vigilantes vão demorar. Eu sei. Depois de todos esses meses, estaremos só eu e seu Seis na casa. Eu, aqui na cozinha. Ainda agora, retalhava a carne. Ele, lá nos fundos. Dormindo, acreditaram os dois abobados. Só eu e ele.

Um comentário:

  1. Nelson Rego, depois de vários anos de obstinado rigor, depois de trabalhar com determinação os seus contos nas minhas oficinas, prepara-se para o lançamento de um novo livro, o primeiro feito sob o meu exigente método.

    "Recital dos mortos" é uma amostragem do novo Nelson. Uma paródia cáustica sobre a fé popular, sobre a manipulação de milagreiros e quejandos.

    Um conto para entrar na história dos textos sobre religiosidade.

    Charles Kiefer

    ResponderExcluir