quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O assessor (Guilherme Castro)

Antes de conhecer o doutor Herculano, meu ofício era tomar mate com halls na praça, todo santo dia. Acordava seis, seis e meia, punha a chaleira no fogão, limpava a bomba com um grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver o Bom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saía. Até a praça dava o quê?, quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls preto - gosto de chupar halls e tomar mate, dá um choquezinho dentro da boca que é bem bom -, daí tomava meu mate olhando o movimento. Quando não tinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, almoçava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava à praça. Tudo normal.

Defronte à Câmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, ali eu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sessão. Quando não tinha, assistia a chegada dos funcionários, dava no mesmo; importante importante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questão de ir de bicicleta pra Câmara – tá que o partido proibisse mostrar carro na frente da Câmara, mas ele que era exibido – me disse que o doutor Herculano queria gente pra Assessor. Não que precisasse de dinheiro, tenho uma casinha alugada que me basta, todo caso fui até o gabinete do doutor e perguntei sobre esse negócio de ser Assessor.

Fez uma cara de agora é que me lembro e me mandou ficar à vontade. Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate.

“Sabes bater à máquina, Brizola?”. Me chamam assim pelas sobrancelhas, sempre esfiapadas.

“Com um dedo, doutor”, fui sincero.

“Me conta das tuas experiências, então”, ele prosseguiu.

“Olha... Ultimamente tenho mais é tomado mate na praça, doutor.”

“Então és um AMH.”

“Sou?”

“Analista de Movimento Humano”, me explicou o doutor.

“Sim, claro”, achei interessante essa coisa.

“Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?”, pelo telefone, ele pediu à secretária, que logo apareceu com uma folha datilografada.

“Assina aqui, meu Assessor”, me disse ele, riscando um xis no pé da página

Termo de Posse, dizia.

Assinei.

“Agora espera que eu te chamo, tá?”.

Queria saber do salário, quanto era, mas como ele não tocou no assunto, e nem eu, ficou por isso.

Voltei à praça, tinha a térmica ainda pela metade, isso dava o quê?, cinco, seis mates.

*

Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci água, pus erva pra inchar, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor é Sidney Sheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito, oito e meia, saí. Tudo normal.

Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar à Câmara. Gritei: “Ô, chefe!” Com as mãos, me mandou esperar; o portão, que fechava sozinho, me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou Assessor, isso eu sou, pra mim papel assinado é o que conta. Segui tomando meu mate e chupando halls.

Por um mês, mais ou menos, eu gritei ô, chefe! quando via o doutor chegar à Câmara; e ele, com as mãos, me dizia: calma, Brizola!

Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dum incêndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui até o gabinete.

“Grande Brizola!”, me recebeu com festa. “Joice, traz uns coelhinhos, sim?”. A Joice trouxe. Três. Desenhou o mesmo xis no pé das folhas: Folha-ponto, dizia.

“Assina aqui, meu Assessor!”.

Assinei.

“E aqui.”

Assinei.

“Mais aqui”

Tudo assinadinho.

“Te chamo em seguida, fica tranquilo”, ele disse, e já me deu as costas.

Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei lá, alguma coisa. Então ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras: “fica tranquilo!”, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado é o que vale, e nesse dia assinei três coelhinhos.

*

Não sou de me queixar, mas teve a primeira vez. É que fim do mês recebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salário; conseguia me manter o quê?, vinte, vinte e um dias, nem isso.

Fui ao gabinete.

“Tá me faltando erva, doutor”, desembuchei, todo corajoso. Foi mais fácil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um dias folgado; a partir daí, mês de trinta sobrava o quê?, um pacote inteiro de erva. Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei.

O gravador eu já tinha, um portátil da Gradiente; o crachá, mandei imprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor embaixo, num canto a minha foto três por quatro de terno e gravata. A partir daí, se perguntassem qual era o meu ofício, eu respondia: sou Assessor do Doutor Herculano, e ainda mostrava o crachá pra quem não acreditasse.

*

Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar a Pelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos. Missão de Estado.

Cueca, meia, camisa, calça de brim, japona, três ou quatro potes de Minancora – pra mim, desodorante é Minancora -, joguei tudo na mala; a mateira já carregava, e o crachá: raramente tirava do pescoço.

“Mando teu salário pelo ônibus, fica tranquilo”, me disse o Beto.

Fiquei mesmo.

Entrei no Embaixador. O ônibus não passava de oitenta, isso dava o quê?, três horas, três horas e meia até Pelotas. Ultrapassado o pórtico de Canoa Branca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindo de se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofício, ter de sair de lá, eu que só deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avó de Camaquã e fui dar em Jaguarão. Todo caso, vida de Assessor é assim, dura, devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, começava eu a sonhar e um piparote do cobrador me acordou.

“Já estamos chegando?”, perguntei, meio dormindo.

“Vai pra onde, Brizola?”

“Pelotas”, respondi.

“Nem do Taim passamos”, ele respondeu. “São vinte reais”.

O doutor havia me dado o quê?, cem, cento e vinte, mais umas quantas bolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigência minha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo.

*

Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodoviária é uma quantidade de táxi esperando, realmente, que tu pague uma fortuna pra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saí a pé e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado à rodoviária, bem bonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a café da manhã e tudo: pão torrado, café preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte, e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados à Baronesa, proprietária e moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do boxe, por segurança. E fui dormir com o celular preso ao elástico da cueca, também por segurança; pânico de cidade grande.

Seis, seis e meia, levantei. Crachá no pescoço, gravador com pilha nova que era pro relatório não desandar na minha primeira manhã pelotense. Não vi o Bom dia Rio Grande - no Naite só tinha rádio -, tomei café, iogurte, e escondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei à Baronesa onde era a praça da cidade.

“A mais próxima?”, me perguntou.

“Ah, tem mais de uma...”

“Olha, daqui? Umas doze quadras”.

Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira.

Resolvi relaxar.

Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate. Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. “Posso?”, perguntou. E eu vou negaciar? Sevei um mate pra ela. Dia seguinte sevei outro. Fui sevando, sevando, todos os mates que ela pedia eu sevava. Às vezes colocava capim cidró na térmica, só porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecido vendo é a conta; porque pra mim, mate, só com halls. Mas tinha uns olhos puxados, a Baronesa, tinha uma boca graúda ela, uma bunda que me segurava pra não beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhor e, no decorrer do quê?, mês, mês e meio, já chamava ela de Barô, só Barô.

Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, é inevitável isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatórios em pastinhas: por turno, dia, mês, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frente do Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampear cartões de visita nos recibos dos hóspedes, que, aliás, eram praticamente dois: seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu.

Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porão do Naite. Duas, três pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa na parede, cartões na praça, unidade pronta. Tirei então da cartola uns quantos coelhinhos pra Barô assinar.

“Que que é isso?”, perguntou.

“Fica tranquila”, eu disse, “é coisa séria”. Beijei a testa dela. Ela amoleceu e começou a assinar, um por um, como uma boa fêmea deve ser, obediente. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola. “Te ligo em seguida, minha Assessora”, disse, apressado, porque o Embaixador saía em quê?, uma hora, hora e meia no máximo. Saí a pé; táxi me nego.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Calma, já vai passar (Augusto Britto)

Tudo começou quando ele disse que tava com dor, mas acho que a própria vida já dói tanto que aquilo me passou despercebido. Tá doendo, tá doendo, ele continuava repetindo todo dia, e eu, com pena – um pouco dele, um pouco de mim mesma –, dizia: calma, mano, já vai passar, toda dor uma hora passa. Essa frase era repetida constantemente lá em casa. Sempre tem alguém sofrendo, e o tempo sempre passa pra sarar uma dor que não sara nunca. Mas até há pouco eu acreditava que a dor sumia, que a gente um dia ia ser feliz, e por isso continuava repetindo que já ia passar, como conforto pra mim e pra ele. Quando ele disse que tava com dor pela primeira vez eu achei que fosse a dor do filho que vê seus pais se separando, e – como irmã mais velha – eu tentei cuidar dele, dar amparo e carinho. Mas quanto mais eu abraçava o mano mais ele reclamava de dor, e eu ficava sem saber o que fazer, perdida diante de toda aquela situação. O pai e a mãe brigando constantemente, e eu tendo que cuidar do mano, sem saber nem cuidar de mim mesma, que tinha tantas outras preocupações; mas eu tinha que esquecer de tudo, eu sabia, e proteger a gente como dava. Eu reparei um dia em um quadro que ele tinha posto no nosso quarto, e perguntei o que que era, e ele respondeu, é uma foto da Austrália, mana, o irmão do Pedrinho tá lá agora, é bem longe daqui e é tri bonito, e eu olhei pra ele e percebi o quanto ele tava sofrendo com tudo aquilo, como ele tava tentando fugir de tudo de todas as maneiras, e ele continuava, será que um dia a gente vai poder ir pra lá, mana, será que lá o pai e a mãe vão conseguir parar de brigar?, e eu fiquei sem reação; quis dizer o que eu achava, que tem coisas impossíveis, que tem lugares – e sonhos – inalcançáveis, mas silenciei; não podia falar isso pra ele, eu tinha que cuidar dele e dar esperanças, por isso eu respondi, um dia a gente pode ir pra lá, mano, não sei se a mãe e o pai vão, mas eu te prometo que um dia eu te levo pra lá. Eu abracei ele forte, como única coisa que eu podia fazer, e ele de novo repetiu a reclamação, tá doendo, mana, tá doendo muito, e eu, já sem voz e soluçando, disse, vai passar, mano, tudo passa. A gente sempre foi muito unido, mas naqueles últimos tempos a gente tava muito mais próximo, porque ficava sempre nós dois sozinhos, abraçados, enquanto o pai e a mãe brigavam, e eu tentava tapar o ouvido do mano ou falar qualquer coisa pra ele não ouvir nada, mas eram gritos muito altos da mãe, eram berros incessantes do pai, e a gente ficava ali, sofrendo, sozinho. Nossa amizade se intensificava a partir do sofrimento que aumentava e aumentava e não parava nunca, apesar da frase sempre latente de que a dor passa, e que tudo ia passar. Quando o pai e a mãe começavam a discutir sem parar eu levava o mano pra passear, a gente ia no cinema, tomar sorvete, caminhar, só pra tentar fugir um pouco daquilo tudo, mas nunca dava pra fugir, ele sempre perguntava por que que isso tava acontecendo, por que o pai e a mãe tavam brigando tanto, e eu nunca sabia o que responder. E ele cada vez mais falava que tava doendo, e eu me irritava, porque tava doendo em mim também, mas eu tinha que ser forte e aguentar por nós dois, porque eu era mais velha e me sentia responsável. Mas minha força era abraçar ele e tentar não chorar, pra depois chorar sozinha e sofrer sem ter ninguém pra me ajudar, porque a mãe tava já sofrendo muito com a separação, e não queria saber de ninguém, muito menos do pai, aquele filho da puta que me traiu todos esses anos, ela dizia, e me deixou aqui tendo que cuidar de vocês sozinha, mas eu já tinha idade pra perceber que não era bem assim, que ela não tava cuidando da gente, que na verdade eu tava sozinha com o mano e a gente era quem mais sofria por causa de tudo aquilo. E no final de todos os dias era assim: eu e o mano chorávamos sozinhos e unidos, ouvindo a mãe gritando do quarto ódios pra sala e pro pai, que mandava ela calar a boca e dormir, porque no outro dia ele ia ter que acordar cedo e trabalhar pra sustentar a gente, e a resposta da mãe ele nunca ouvia, porque era uma resposta doída em lágrimas e gemidos, e porque o pai nunca foi bom em ouvir o que se fala baixinho. E o mano sempre antes de dormir repetia, tá doendo, mana, tá doendo, e eu às vezes fingia dormir e não respondia, outras vezes abraçava ele, porque achava que isso era só o que eu podia fazer. Eu me sentia tão impotente e abandonada e infeliz e confusa que não me dei conta de que eu podia fazer alguma coisa. Mas logo eu, uma guria de dezessete anos, que sofria tanto com tudo o que tava acontecendo, que tinha que pensar no que eu ia fazer da vida, em como passar em medicina no vestibular, em como me ajudar, tinha que ajudar o mano, dar carinho pra ele, e ainda mudar alguma coisa? Não tinha como eu mudar nada. Já tá dormindo, mana?, ele me perguntava, e eu ouvia que ele não conseguia não chorar, mas eu não falava nada: queria dormir, queria estar dormindo. Mãe, o mano tá com dor, ele não para de reclamar, eu falava pra ela no almoço, o único momento em que eu podia falar com ela, mas eu ouvia sempre a mesma resposta, agora não, eu acabei de acordar, tou com dor de cabeça, outra hora a gente conversa. Era fácil pra ela falar aquilo, não era ela que ouvia ele reclamar o dia inteiro de dor, não era ela que tava sofrendo por ver ele sofrendo, não era ela que pensava nele, que tinha que sair do cursinho no meio da tarde pra ir buscar ele no colégio porque ele tava com muita dor – assim eu não ia nem ter chances de passar em medicina, a mãe sabia, mas parecia que ela não dava bola, parecia que só existia ela e só ela que tava sofrendo –; não era ela que via ele chorando e não podia fazer nada, e chegava no colégio dele pra ouvir da diretora que ele tava com muita dor na perna, que era melhor levar ele no médico, eu, com dezessete anos, que tinha que estudar pro vestibular, buscar e levar ele no colégio, sair com ele, cuidar dele e ainda por cima sofrer, como é que eu ia fazer tudo isso?, mas a diretora não tava mais ouvindo, ninguém tava ouvindo, e o mano tava chorando muito, dava uma pena, e mesmo assim eu não podia fazer nada, e só naquele momento que eu olhei pra ele e vi que ele tava magrinho, que ele parecia tá sem forças. Por que tu não disse que a dor era na perna, guri?, eu perguntei irritada, mas depois me arrependi, porque o coitado do mano tava sofrendo muito, dava pra ver, e eu tinha que cuidar dele, e não colocar a culpa nele, e quando ele disse, porque eu não queria te incomodar, eu chorei e não soube mais o que fazer, porque vi que na verdade era ele que tava cuidando de mim esse tempo todo, e disse, desculpa, mano, eu vou te levar pro médico, tudo vai passar, tudo passa, daqui a pouco tu vai tá bem de novo, tudo vai dar certo, mas eu falava aquilo sem convicção nenhuma, porque eu aos poucos tava me dando conta de que talvez a dor não passasse nunca: que talvez a vida fosse mesmo doída desse jeito, pra sempre. A gente chegou em casa e o pai e a mãe tavam brigando, mas o mano era mais importante que a briga infinita deles, por isso eu tentei interromper, disse, mãe, pai, mas eles me mandaram calar a boca, disseram que era pra gente ir pro quarto ou sair de casa, pra eu levar o mano pra algum lugar, mas eu disse que não dava – eles não queriam ouvir –, não dava – eles não queriam ouvir –, não dava, e eu já tava quase chorando quando eles perceberam que tinha alguma coisa errada, e eu falei gaguejando que o mano tava com dor, que algum deles ia ter que nos levar pro hospital, e eles fizeram silêncio quando eu disse essa palavra. Dava pra ver que eles não sabiam o que fazer – acho que eles nunca souberam o que fazer. Eu levo vocês, o pai disse, tá tudo bem contigo?, ele perguntou pro mano com uma indiferença que me assustou, e aquilo tudo me doía cada vez mais, especialmente quando o mano respondeu tranquilamente, tá, pai, se tu não quiser me levar agora não precisa, pode acabar de conversar com a mãe, não quero atrapalhar vocês, e aquela consciência e lucidez do mano me atordoaram, e eu olhei com nojo pro pai e pra mãe e não soube de onde ele tinha tirado aquele respeito, porque eles nunca tinham pensado senão neles mesmos, e eu senti asco quando o pai respondeu, não tem problema, vamo lá, a conversa com a tua mãe já acabou, como se só por causa da incomunicabilidade dos dois ele ia ser pai e pensar na gente. No carro eu fui atrás com o mano, como se o pai fosse só o motorista mesmo, como se fosse só nós dois no mundo e a gente fosse enfrentar tudo sozinhos – sempre sempre sozinhos –, mas apesar da solidão eu já me sentia melhor, a gente tava indo resolver aquele problema, e quando o mano colocou a cabeça no meu peito e disse baixinho, pra que só eu ouvisse, tá doendo, mana, eu abracei ele com amor e respondi, calma, mano, a gente tá indo pro médico, ele vai te curar, tudo vai passar, já, já, repetindo sempre a mesma ideia desgastada, mas que naquele momento me pareceu – mais do que nunca – verdade, e deve ter parecido pro mano também, porque ele deu um sorriso, e a gente ficou ali, sabendo que tudo ia passar, que a dor ia enfim passar. Quando a gente chegou no hospital, o pai foi direto falando que queria um médico, porque o filho dele tava com muita dor e não podia esperar mais, e eu fiquei pensando se era o mano que não podia esperar mais ou ele que queria que tudo acabasse logo pra poder voltar pra casa de uma vez. É só preencher a ficha e aguardar, a mulher disse, e eu logo entendi que quem ia preencher a ficha era eu, e o pai falou mesmo, preenche essa ficha que eu vou no banheiro, filha, e se virou pro mano e passou a mão na cabeça dele e disse, pode ficar tranquilo, filhão, o médico já vai nos chamar, e saiu e deixou a gente ali, sozinhos. O ambiente era tenso, e eu comecei a ficar aflita, parecia que tudo exalava dor, e isso deve ter lembrado o mano da dor dele também, porque ele disse, tá doendo, tá doendo, e eu respondi que já ia passar, que eu ia preencher a ficha e o médico ia nos chamar a qualquer momento, que tudo ia ficar bem, só que dessa vez a ideia me soou ridícula e falsa, mas era a única que eu sabia e podia falar, e eu tinha que dar segurança pra ele, mesmo que eu me sentisse a pessoa mais insegura naquele momento, e eu disse, senta aqui, mano, eu vou entregar a ficha pra moça ali, e fui, enquanto o mano ficou quietinho, e quando eu virei pra trás me deu uma pena de ver ele sozinho e corri pra poder voltar logo pra ele, porque ele só tinha a mim, eu não podia decepcionar o mano, eu tinha que cuidar dele, e eu voltei e abracei ele, e logo depois o pai voltou, e depois mais o médico nos chamou, e eu tava agoniada com aquele hospital e aquela gente doente indo de um lado pro outro, e a minha vontade foi de ir correndo, mas o mano tava com dor, por isso a gente foi devagarinho, e eu falei como que falando pra mim mesma, não precisa ter pressa, se for pra ficar bem a gente pode esperar o tempo que for, não tem problema, mas não tava tudo bem, eu sabia, e o médico examinou o mano e disse que ele ia ter que fazer uma radiografia pra ver o que que tinha acontecido, e eu acompanhei ele, sempre em silêncio, eu e ele, e o pai ficou perguntando sem parar coisas inúteis pro médico – acho que foi só naquele momento que ele se deu conta de que tinha um filho e que ele tava doente. O mano fez a radiografia e a gente ficou sentado esperando o resultado, sem saber o que esperar, e eu tava com muito medo, e abraçava o mano, eu e ele sentados, e o pai ali, de pé, e eu percebi que ele tava louco por um cigarro, mas agora devia tá com vergonha de deixar os filhos sozinhos, tava andando de um lado pro outro, como que um acompanhante somente, um motorista, porque a dor não tava nele, ele tava sofrendo só agora, a dor tava no nosso abraço, no mano, na perna do mano, mas já ia passar, já, já, ia passar, só que ele não me perguntava mais e eu também não falava nada – o silêncio como um pacto, espantando o que não se quer ouvir. O médico nos chamou de volta, agora com a radiografia, e eu entrei na sala apavorada, e acho que o mano percebeu, porque ele apertou forte a minha mão e disse, agora a dor vai passar, mana, a gente vai voltar pra casa, mas logo quando a gente se sentou eu vi na cara do médico que não tava tudo bem, e quando eu vi uma radiografia, mesmo sem entender nada do que ali era mostrado, eu soube de imediato que as coisas não iam passar, que o mano ia continuar sentindo dor, e quando o médico falou em tumor eu fui fraca e chorei, e o mano, que não tava entendendo nada, disse, calma, mana, calma, e eu me senti pior ainda, porque era ele que me amparava e cuidava de mim de novo, e o pai perguntou, como assim tumor, doutor?, câncer?, e o médico respondeu que sim, que a princípio era o que mostrava a radiografia, que o mano ia ter que ficar ali internado pra no outro dia já fazer uma biópsia pra comprovar e ver com qual tumor especificamente o mano tava, porque não dava mais pra perder tempo, e eu ouvia aquilo tudo com dor, era uma notícia doída, e eu fiquei muito preocupada com o mano, porque ele não tava entendendo direito que que tava acontecendo, mas eu não podia explicar pra ele, não podia dizer, mano, tu tá muito mal, não, eu tinha que ser forte e passar confiança pra ele, mas já não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer nada. Por mais absurdo que pudesse parecer nos falaram que a gente tava com sorte, porque naquela noite tinha um quarto vago pro mano ficar. O pai tava completamente atordoado, não sabia o que fazer, e eu ia resolvendo tudo enquanto ele ficava feito um abobado do meu lado, e já no quarto eu me irritei, pai, liga pra mãe e avisa tudo pra ela, vai lá fora que aqui pega mal o celular, eu queria era ficar a sós com o mano, e o pai foi correndo, certamente louco pra fumar um cigarro e pensar no que tava acontecendo, e foi bom, porque ali ele não ia ajudar em nada, e pelo menos ele se dava conta do problema do mano, e a gente ficou sozinho ali, e eu não sabia o que falar, até que o mano falou, relaxa, mana, a dor já tá diminuindo, e era ele de novo cuidando de mim, eu não podia admitir isso, e eu dei a mão pra ele sem saber como ajudar, como amparar ele, eu, tão angustiada com aquilo, e só consegui dizer, desculpa, mano, e ele ficou em silêncio, e eu chorei naquele quarto de hospital que me sufocava, que nos sufocava, e o mano chorou também, e éramos nós dois, sozinhos, chorando diante daquela situação cada vez mais doída, e ficamos nós dois um esperando que o outro dissesse o que nós dois queríamos tanto ouvir mas ninguém dizia: nada passava, nada ia passar, e a gente tinha medo dessa certeza, e o pai logo depois voltou com a mãe, e os dois entraram chorando e abraçando o mano, e eu imaginei uma cena em que dois pais disputam amor em beijos e abraços, querendo cada qual se mostrar mais doído com a dor do filho, se importando sempre com aquela briga que não acabava nunca, enquanto o mano – e eu chorava só de pensar nisso – talvez acabasse, e como era injusto tudo aquilo que acontecia naquele quarto, e eu me irritava e queria logo que eles fossem embora e nos deixassem os dois ali, como sempre sozinhos, e eu odiava eles naquele momento, colocava a culpa de tudo neles, que tinham me impedido de ver tudo antes, mas também sentia uma culpa doída em mim e pedia desculpa, desculpa, desculpa pro mano sem dizer, só apertando a mão dele e olhando bem no fundo dos olhos molhados de lágrimas dele, e aquele retrato era um retrato doído, cuja dor eu sabia que não se extinguiria nunca. Quando tava acabando o horário de visitas uma discussão se instalou no quarto – uma discussão que pela maneira com que era travada já há muito vinha sendo ensaiada: quem dormiria no hospital?, só que a resposta pra mim o pro mano era óbvia, não tinha como ser diferente, mas pro pai e pra mãe não, e parecia que a discussão não era só pra responder a pergunta, era pra responder quem era o melhor pai, mas o mano – com uma sabedoria que me deixou atônita – entendeu isso, e quis logo resolver tudo, não precisam discutir, eu quero que a mana fique, ele disse, e eles me olharam como que se dando conta da obviedade da questão, como que se dando conta de que eles ali não ajudariam em nada, mas isso eles não devem ter pensado, eles nunca pensavam, e saíram mudos, e ficamos, de novo, eu e o mano, sozinhos, pra encarar mais uma noite doída de choro, mas que ia doer muito mais que qualquer outra noite, e eu sabia que eu não ia conseguir dormir, mas tentei pelo menos fazer com que o mano dormisse, ia ser bom pra ele, mas ele não parecia com sono, e mesmo assim eu apaguei as luzes e deitei no sofá dando boa noite pra ele, mas logo depois – ele sabia também que eu não ia dormir nem ia fingir que dormia – ele perguntou, mana, sabe o que que eu tava pensando?, e eu tive medo de perguntar por uma resposta que eu não sabia qual era, mas sabia doída, no quê?, eu perguntei finalmente, e ele respondeu, tava pensando que a gente podia ir pra Austrália quando eu sair do hospital, o Pedrinho me disse que o irmão dele falou que lá é tri legal, e eu abafei meu choro no cobertor, e ele continuou, que que tu acha, mas deve ter se dado conta de que eu chorava, porque ficou em silêncio por um bom tempo esperando uma resposta que eu não sabia qual, mas eu tinha que responder, e falei, sim, mano, tá combinado, quando a gente sair daqui a gente vai, cuidando pra não revelar tristeza na voz, e ele disse, e a gente vai poder surfar lá, mana?, quando eu melhorar da perna eu vou querer surfar lá, porque parece que lá é tri bom de surfar, e eu respondi que sim, mas que por enquanto o melhor era dormir pra ficar bem descansado pro outro dia. E no dia seguinte cedo vieram pro nosso quarto pra levar o mano pra fazer o procedimento, e eu fiquei apreensiva sozinha, sentindo falta da companhia dele e temendo a falta que eu fazia pra ele, e o médico depois veio nos informar – pro pai e pra mãe, que tavam ali de novo – que o resultado ia sair em no máximo dois dias e que ia dizer exatamente qual o tumor que o mano tinha e a partir disso o tratamento que ia ser feito, e aquelas quarenta e oito horas foram absurdamente desgastantes, nós, que há muito esperávamos que tudo passasse, sabíamos que quanto mais o tempo passava mais tudo piorava, e tínhamos medo do resultado que ia chegar, e eu fiquei o tempo todo com medo, esperando, e não pensei em momento algum em tudo que tava me fazendo sofrer antes, porque quando acontece uma coisa assim a gente revê o que nos dói, e a mãe ficava ali toda hora também, saía só de noite, e o pai ia sempre que podia, quando não tava trabalhando – ou com a vagabunda, a mãe continuava repetindo, mas nem eu nem o mano dávamos bola mais – e eu chorava frequentemente, e o mano também tava sofrendo muito, aqueles dias foram horríveis como nenhum outro dia tinha sido antes, apesar de todas as dores doídas até então, e quando o médico chegou com o resultado as batidas do meu coração emudeceram qualquer palavra que eu pudesse querer falar, e eu escutei quieta ele falando que o tumor era agressivo, que se chamava Sarcoma de Ewing, e que era um tumor ósseo de péssimo prognóstico, e que, como tumor agressivo, o tratamento também tinha que ser agressivo, e que portanto, como o tumor tava localizado na tíbia, ele ia ter que amputar a perna do mano pra poder tratar e retirar o foco do tumor, tentando impedir uma metástase que era extremamente perigosa, e a mãe ouvia tudo aquilo como se só agora entendesse que o filho dela tava morrendo, e eu ouvia aquilo quieta, impotente até pra falar, estática, e o mano não entendia direito, porque ele perguntou chorando, eu vou perder a perna, mana?, e o médico disse que sim, que ia ter que amputá-la assim que desse, e que depois o mano ia ser encaminhado para um oncologista pra iniciar a quimioterapia, e o mano não parava de chorar ouvindo aquilo, e eu abracei ele e depois a mãe nos abraçou, e o médico saiu nos deixando ali, completamente abatidos, e foi nesse momento que o pai chegou e voltou toda a choradeira, e eu não queria que aquilo acontecesse, ninguém queria, mas tinha que ser, e a gente ficou no quarto – o sofrimento em um abraço unido – esperando algum milagre, mas não veio, veio só o médico no dia seguinte falando que a sala de operação já tava pronta, que ele ia ter que ser levado pra fazer o procedimento, e aquilo tudo era muito doído, eu tava chorando muito, e ele foi, enquanto a gente ficou numa sala de espera, esperando não sei o quê, porque nada significava mais nada naquele momento, eu não sabia mais o que fazer, e o médico voltou pra falar que a operação já tinha sido finalizada e que em breve a gente ia poder entrar na sala de recuperação, que era onde o mano tava, por um tempo, só pra ver como ele tava, falar um pouco com ele, e aquele tempo era só angústia, e eu só vi que o tempo tava passando quando o médico voltou e falou que se a gente quisesse a gente podia entrar na sala de recuperação agora, e a gente entrou lá pra ver ele sem a perna, sem a perna, sem a perna, e a gente não sabia como reagir, eu tentei transmitir confiança, mas a quem eu queria enganar?, tudo era horrível, ele tava morrendo, ia morrer, e eu chorava muito, a dor não passava pra ninguém, só piorava, era tudo mentira, tudo falso, e o mano me chamou pra perto e sussurrou no meu ouvido que tava doendo, que continuava doendo, e eu perguntei onde, e ele respondeu que continuava doendo a perna, a perna que tinha sido amputada continuava doendo e que tava doendo muito, muito mais do que antes, e eu olhei pra ele e sofri, porque não consegui falar pra ele o que ele queria tanto ouvir, não tive coragem de dizer que já ia passar, que toda dor uma hora passa.