terça-feira, 20 de agosto de 2013

Uma estranha noite em Nice, ou Cannes, ou Cap Antibes, enfim, não importa (Ayala de Aguiar)

Jamais vira um orangotango em minha vida. Nem em circo. Nem em zoológico. Não saberia como me comportar diante de um. Era tarde da noite, foi tudo meio que de repente. Eu estava sentada num banco, na pérgola da Promenade des Anglais (ou era na Croisette?) Não importa. Olhava o Mediterrâneo com o respeito religioso com que sempre olho para este mar interior, repositório e túmulo da caminhada da humanidade. Tudo o que se passou às suas margens, sobre suas águas, tudo o que jaz, ou jazeu, sob elas, nos diz respeito.Explica-nos. Como somos, como nos desenvolvemos. Explica nosso caráter. A história, o mito, a lenda, as conquistas, as derrotas, os êxitos, os fracassos. O caráter do homem ocidental se gestou aqui, nas águas deste mar fechado em meio às terras. O Grande Azul.

Um dia, há muito tempo, eu jurara, sobre suas águas, e tendo-as por testemunho, que jamais alguém me haveria de humilhar. Mas isto é outra história.

Alguém sentou-se no banco, a meu lado, trazendo-me de volta à superfície. Era um orangotango.

—“Chose étrange”— diria meu querido e saudoso professor.

Estávamos em Nice, ou Cannes, pouco importa, diante do Mediterrâneo. E o que se vê em Nice, ou em Cannes, não se discute. Viu, está visto. Existe.Se Ionesco pôde ver, por que não eu?

Era um orangotango, sentado a meu lado. E ele me perguntou:

— Madame, por favor, que horas são?

— São 9:15 – respondi.

— Da noite, quero crer?

— Sim, da noite. Não notou? Já está escurecendo.

— Nunca se sabe, madame. Nunca se sabe.

Falava francês com um sotaque estranho. E o que me chamou a atenção é que não era aquele sotaque típico africano:“c’est vrrai, c’est vrrai”.

Esse outro acento eu não conseguia distinguir. Fiquei curiosa. De onde teria saído o diabo deste orangotango com tal sotaque?  Eu tinha duas alternativas: ou me calava, ignorava a presença do orangotango e, discretamente, me afastava dali. Ou ficava. Fiquei. Para puxar o fio da meada e ver aonde ia dar tudo aquilo. Podia render uma boa história.  Estava um pouco insegura, não sabia por onde começar a conversa.Falar do tempo era muito óbvio. Resolvi arriscar. Puxei o fio da meada.

— O senhor não é daqui? – pergunta afirmativa.

— Claro que não, madame. A senhora há de convir que não se veem muitos como eu, neste país, fazendo turismo.

— Ah! O senhor viaja a turismo, não a negócios?

— Sim, digamos que sim.

— Bem, é que, atualmente, com o deslocamento das populações, vê-se de tudo. Quero dizer, muitos estrangeiros, das mais variadas etnias...

– Madame tem razão. Vê-se de tudo. Eu disse à minha mulher, antes de viajar: “Seu marido vai chamar atenção”.

É casado. Uma informação.

— Minha mulher e meus filhos nunca saíram das Ilhas Mauricio, onde vivemos.

– Interessante.O senhor é, pois, africano?

– Não exatamente, madame. Somos indianos. De origem. Meus antepassados se radicaram nas ilhas desde tempos imemoriais. Bem mais recentemente, por volta de 1500, fomos descobertos por navegadores portugueses, depois fomos colonizados por franceses, holandeses, ingleses. Hoje somos um Estado independente.

Este cara está me gozando. Quem foi descoberto em 1500, por portugueses, fomos nós. Onde será que ele quer chegar com esta conversa mole?

— E Madame, de onde vem? Do leste europeu?

Era a minha vez de tirar sarro (ainda se tira sarro?) da cara do sujeito. Está me achando com cara de romena? Albanesa?  Conversa chata, esta.

Respondi, educadamente:

— Não, cavalheiro, ao contrário. Eu venho do extremo ocidente.

Frisei a expressão.

— Interessante. Perdoe-me se não estou a alcançar a localização. Geograficamente, quero dizer.

— O extremo ocidente, acentuei – é do outro lado do Atlântico, senhor.

— Interessante, muito interessante, repetia. É uma região de florestas, de grandes florestas. Meus antepassados eram seres de floresta... Interessante. Madame, tão civilizada, tão bem informada, parece um pouco surpresa por estar conversando com um estranho, e a estas horas.

— Pois não é? Meio tarde. Mas, como dizem na minha terra, se a prosa está boa a gente segue proseando.

Orango avaliava a minha condição de ser civilizado como se no extremo ocidente só houvesse, digamos, primatas. Eu já estava farta de, ao longo de minha vida, me desculpar, de explicar que no extremo ocidente usávamos roupas, comíamos com talheres, íamos a universidades e conseguíamos falar mais de um idioma, além do nosso patuá nativo.

Enfim, não importa. Conversamos sobre muitas outras coisas, a chamada conversa fiada, solta, sem comprometimento. O fio da meada, que eu pretendera puxar, não desenrolou muito além da superfície do novelo. E a mim já não me interessava saber-lhe vida, paixão e morte. As horas iam passando, frente ao Mediterrâneo. Agradáveis, horas plenas, e isso me bastava.

Quando Orango, discretamente,olhou seu relógio de pulso, um magnífico Rolex, na extremidade de seu longo braço, pensei comigo: Se ele tem relógio, por que perguntou-me as horas?

 Simulou, ou, realmente, sentiu um leve susto.

– Macacos me mordam!  São quase quatro da manhã.Como o tempo passou rápido. Hélas! Demasiado rápido, madame. Se eu não correr perco meu voo para Stockholm. Désolé! Preciso voar para o aeroporto. Perdoe-me a pressa. Foi uma honra desfrutar de sua amável companhia nesta noite magnífica, mágica. Pelo menos para mim. Espero revê-la um dia, madame. Adeus!

Disse isso num francês fluente e impecável, sem sotaque, já em pé, acenando para um táxi.

Olhei as horas no meu relógio de camelô: três e cinquenta e cinco.  Na linha do horizonte, à minha esquerda, uma fímbria de claridade começava a se delinear. Algumas horas antes, poucas, eu vira o ocaso sobre o Mediterrâneo. Agora via o alvorecer. Imutável e perpétua marcha do tempo sobre o Grande Azul.

Levantei, dei uns passos para destravar as articulações, me espreguicei.O que se vê em Nice, ou em Cannes, não se discute. É real. Viu, está visto. Existe.

 Enfim, não importa.
 
(Este conto de Ayala Aguiar foi o vencedor do Primeiro Concurso Aleph de Contos das Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda)
 

domingo, 19 de maio de 2013

DesMinudessÊncias (MCeleste Carloto)


Homenagem ao guardião do imenso ínfimo 

Vestido pelas margens de Barros que o velho Manoel trilhou de pé-em-cabeça, Mil 96 anos frutificando sobrancelhas sob a noite de dezembro. Um começo não se sabe quando, desdia não importa. Tímido roseado, estrela-garça tresandejando rio-palavra virgem prenhe, formou-se em Torto a vida toda. Compendiando pássaros, encurtou águas para parir um Jabuti.

Quando um crôvio pingava trevas, manoelilava frases:

Um passarinho tinha vento e rodas de asfalto

QuiQuiQuiQuiviando protesto pelo silêncio envidraçado

Pensamento-gafanhoto: Nem a Primavera virá chuvisquiar peixinhos!

A tarde brotou pedra quando um escorpião mordeu a lata, que gritou azul como um tonto. Ou seria um poeta? No ermo sujo de pisadas humanas, o Senhor de nadifúndios ajoelhou a brisa e desmorreu a concha. Dês-pessoa mutável, cartografou sem-fim vozes do pântano plástico, onde a lata come o rio e o ar racha uma poça de parede, ensandecendo na língua as paisagens, pré-cantiga rupestre para pós-viver.

Fazendo tratados de infinidades, idéiaiara feita de frases e dentes e latas, transvendo ele morreu Bernardo andar-ilh(a) na trama das larvas do entardecer, para nascer desertos em asas de petúnias. Prendeu águas para alumiar o turvo, gotando pétalas abaixo ovas de sapos felizes, escreveu nenhumas para desexplicar os vagalumes.

Minudequenas.

Ântropo de inseto protagonizando chuvas, Bernardo franciscou irmão dos limos, sendo lesma para arvorizar-se. Híbrido de madrugadas e formigas vadias, sub-azul de palavras vareiadas, coisou vida de pedra.

Ontem é para ouvir futuros, agora é ocaso em estado de criança, menino-lúdico, pleno ludimenino. Teve a graça da cigarra e ela não fugiu Verão. Agora já só prisca poesia com joelhos silenciosos, peraltando a vida, porque pesaroso do dia tardo. Quando virar pássaro, será árvore? Tresandando existências, encolhe para a mãe-vida até o limo-primícia. Varejando verde-poesia, na lógica de olhar das aves, continua bebendo copos de sol para contaminar de versos os ossos das moscas.

Pervertendo o traste para virar sabiá, na voz de Bernardo vide Manoel do mato fino e da flor rasteira, apanhador de gotas de rio no canto das lagartixas, um besouro, nascendo pedra, se espicha ao céu. Fazedor de aluminesceres para chãzificar cacos de noite ao sol, beija-vento alimentando flor, fundido na voz da lua agarrando cheiros, tonto de fonte pinga-cor no sentido chão, aponta colarinhos que deixam o rio nu, meandros de vermes e vida desparamentada, um lápis escreve o rio que pinta o poeta. É da natureza do lápis transviar o invisível.

Papito temperado à ináugura frase-palavra, desapre(e)nde rapinando luar. Aspira devagarinho a luz sem suspensórios, verbo sem lantejoula, em decomposição, vaziando um útero pleno por nascer. Para inteliger a transgressão das palavras, prende raios de água nas unhas dos sapos. Desherói de si mesmo, afrodizia o rio em ensaios luminovagos. Descasca alma. Descalca. Ama letras como os lagartos gostam as pedras.

Primogênico de si próprio, Manoel antes letral de que sangue quebrando copos formais. Imaginação e um lápis para envelhecer o dia, colheu folhas decíduas nas veredas pantaneiras, polindo águas de campos pequenos e horizontes vastos. Desenhando voz, despinta na rocha a eternidade.

Cântico de minúsculos infinitos, suculento microcósmico, ascensão de lesma a luar, pesponta metalinguando as margens e os caroços. Delirando verbos, mastingando, anoiteceu guri espirituando árvore, tratando das grandezas insignificantes de um pardal, conversou fósseis com caracóis e sapos e ervas daninhas e deixou o grilo erodir o ponto.

Molda sons desenhados como quem faz cacimbas para conversar absurdez em Solo de Rio nº 2. No infrasilêncio do esquecimento da tarde, há não-eu no olho da pequena Gaia, legível de folhas secas alterincadificadas. É técnica de saber árvore.

Fotografando em alfabeto cursivo as coisas nenhumas da palavra faltante, palavras grossas magras escuras saltitantes, rascunhando fala para não gaguejar escrito. Liberdade é luxúria de corromper palavras até a quimera para escurecer sentidos.

A licenciosidade do Verbo anoitece para acender vagalumes, limpos de inutensílios.