quarta-feira, 29 de julho de 2009

O diário do Doutor Newmann (Guilherme Behs)

20/01
Hoje fui acometido por outro desses ataques de pânico. Comentando o assunto por alto com um colega, este me sugeriu que escrevesse tais experiências em um diário. Gostei da idéia, mas antes que pudesse fazer um comentário técnico sobre o mesmo, ele me expulsou de seu consultório sob o pretexto de que precisava terminar a consulta com seu paciente, me convidando para um café mais tarde. Um café. Mal sabe ele o mal que me faz a cafeína. No caminho de volta para o trabalho o trânsito estava terrível, lembrava uma artéria com obstrução quase total, e ainda que eu tenha controlado com algum sucesso a taquicardia que se instaurou em meu peito, decidi por deixar um bilhete para meus pacientes na porta consultório e fui para casa. Após o jantar tomei um banho quente para dilatar as veias e vim me deitar. Sinto-me melhor agora que apenas relato tais acontecimentos.


23/01
Hoje evitei utilizar meu carro, fazendo uso de ônibus para ir trabalhar. Péssima decisão! Aquela gente toda amontoada no corredor do veículo lembrava uma artéria com obstrução total. E como tossem e espirram, parecem animais! Me segurei firme e tentei desviar meus pensamentos, já que seria quase impossível passar por aquela parede humana em caso de mal súbito. Enquanto eu tentava formar em minha cabeça a imagem de macieiras ao vento, minha glote foi se estreitando, o coração acelerou e à medida que eu buscava um pouco de ar para oxigenar meus pulmões e reestabelecer meus batimentos cardíacos a um nível abaixo dos de um maratonista, terminei por inalar as hordas de bactérias que impregnavam o ar do maldito coletivo.
Ao chegar ao consultório atendi a Sra. Ana, e evoluímos menos do que eu esperava e menos ainda do que a infecção que progredia sensivelmente em meus tecidos moles superiores.
Mais tarde, já debilitado, atendi o Sr. Ricardo. A amigdalite e leves pontadas no córtex frontal não me permitiram concentrar na terapia. Que enigma este paciente! Há algumas sessões fracasso na tentativa de tirar algo dele, e hoje, não fossem as péssimas condições em que eu me encontrava, acredito que poderia ter conseguido. Ainda assim, saí com a sutil suspeita de que possa estar doente, uma vez que passou a consulta toda conversando comigo e com sua esposa, sendo que apenas eu e ele encontrávamos-nos na sala. Investigar. Sinto-me febril. Medir temperatura ao chegar em casa.


27/01
As consultas de hoje foram reveladoras. Retornando ao consultório após um rápido lanche para combater a hipoglicemia, flagrei o Sr. Ricardo mediando um debate entre um hindu e uma bispa na minha sala de espera. Agora preciso investigar o quanto do que me contou sobre sua vida é real e o quanto é doença. Na volta pra casa senti um desconforto nas costas e me veio a divertida idéia de eu sofrer do mesmo mal que o paciente, o que faria com que o Sr. Ricardo, a exemplo de sua esposa imaginária, não existisse. Apenas a título de diversão pedi a meu vizinho que telefonasse para ele, certificando-me, enquanto a conversa se desenrolava, de que ambos eram reais, exceto se os dois fossem alucinações. Investigar. Aproveitei o ensejo do telefonema e perguntei se havia tomado a medicação, o que me respondeu afirmativamente.


28/02
Hoje o dia foi duro. Descobri que dona Ana chama-se, de fato, Cláudia, e devia ter recebido alta fazem seis meses. Devo ter trocado as fichas ano passado. Aquelas malditas pedras nos rins não me deixavam fazer nada direito. O Sr. Ricardo por sua vez invadiu o consultório desesperado com o sumiço de sua esposa. A medicação está funcionando! Tentei explicar sutilmente o que se passa com ele, mas agora desconfia que sua mulher alugou um quarto em minha casa.


07/03
Hoje atendi o Sr. Cauduro. Ele está tendo enorme dificuldade para superar sua claustrofobia e relata tardes de verdadeiro pavor enquanto desempenha sua função de ascensorista. Contou, às lágrimas, que por vezes implora que alguns passageiros fiquem com ele por mais uns andares, o que está quase custando seu emprego. Desconfortável com seu relato, vesti meu casaco e fui pra casa, acometido de uma tosse terrível.
Nos últimos dias tenho vivenciado a sensação de estar sendo observado. Eu poderia jurar que ontem, enquanto preparava compressas para aliviar o estranho inchaço que se instalou nas minhas pernas, vi uma mulher passando pela sala. Resolvi começar a fazer caminhadas para aliviar as tensões e o estresse a que ando me submetendo.


09/03
Estava me sentindo bem com as caminhadas dos últimos dois dias. Hoje tive a impressão de que passei pela mesma mulher que vira em minha sala outro dia e quando fui me virar para abordá-la, torci o pé, o que me obrigou a voltar pra casa. À noite, vi nitidamente a tal mulher passando pelo quarto e me fazendo sinal de positivo. Estou apavorado, devo estar muito doente.


20/03
A maldita assombração não me deixa mais em paz. Estou até me acostumando com ela. Ontem perguntou se eu queria chá. Hoje chamei ao consultório o Sr. Ricardo. Está inconsolável. Aceita, com reservas, que sua esposa é fruto do seu distúrbio. Ainda assim, diz que a ama profundamente e ameaça parar com a medicação para tê-la de volta. Aproveitando o assunto pedi a ele que a descrevesse. Minhas suspeitas se confirmaram. Trata-se da alucinação que anda perturbando minha vida. Chama-se, segundo ele, Letícia. Certamente um caso sem precedentes. Investigar.


27/03
Cancelei todas as consultas e passei o dia estudando, mas não encontrei nos registros históricos nenhum caso de contratransferência como esse. Li livros e mais livros, busquei em artigos, pesquisei na internet e nada. Letícia anotava tudo ao meu lado e até fazia sugestões de pesquisa. Como é prestativa! Ainda que eu anseie pela cura para este estranho problema, devo confessar que é muito bom ter alguém como ela por perto.


05/04
Hoje o Sr. Ricardo permaneceu comigo por mais de uma hora. Mal sabia ele que eu podia enxergar Letícia dentro da sala. Tentei ignorá-la mas, astuta que é, passou a dar petelecos em minhas orelhas e fazer caretas e poses na mesa de centro. Como é brincalhona! Perguntei a ele sobre suas lembranças, e enquanto ele me relatava histórias que viveram juntos, o ciúme corroía minhas veias. Ainda sabendo que tal sentimento é uma completa loucura, não pude controlá-lo. Acabei por confessar que andava vendo Letícia e estava perdidamente apaixonado por ela. Furioso, o Sr. Ricardo me empurrou no chão, pegou de minha mesa uma escultura da torre Eiffel e veio em minha direção. Calafrios correram pelo meu corpo, eu sei bem do que gente doida é capaz. Antevi a peça encravada em meus miolos, mas para minha surpresa, o Sr. Ricardo ergueu o braço, atirando a escultura contra o armário de remédios. Que idiota!- pensei. Mal sabia eu que segundos depois ele iria enfiar em minha boca, à força, os mesmos compridos que eu lhe prescrevera semanas atrás. Estou arrasado!


06/04
Fazendo uma profunda reflexão decidi dar voz ao bom senso. Retirei todas esculturas da sala e novamente chamei o Sr. Ricardo ao consultório. Argumentei que a medicação é fundamental para seu tratamento. Envergonhado, ele concordou em buscar a cura, sob a exigência de que eu também me trate. Não quer que eu fique com Letícia definitivamente. Rindo, lhe respondi que já o estava fazendo, mas ele não acreditou. Por fim, combinamos de nos encontrar diariamente para que ambos tomemos a medicação um na frente do outro, podendo conferir também embaixo da língua três vezes por semana.


15/05
Ricardo é um sujeito legal, e apesar da fossa em que estamos por ter perdido Letícia, nossos almoços têm sido bem agradáveis e o tratamento é um sucesso para ambos. Hoje convidei-o para ir a um bar. O local estava cheio, o balcão parecia uma artéria com obstrução total. Aquela gente fumava, ria e tossia, impregnando o ambiente como animais! Escolhemos uma mesa mais ao fundo e a noite foi bastante tranqüila, exceto pelo ataque de pânico que tive de controlar com respiração cachorrinho e por um garçom que falava e ria o tempo todo sozinho. Corroídos pelo ciúme o levamos para o banheiro, e após uma breve luta, conseguimos enfiar-lhe os comprimidos goela abaixo.


Guilherme Behs.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Está tudo bem, querido? (Ricardo Morales)

Sábado. Morales e Vitória há algum tempo não saíam para se divertir. Estavam presos a uma mesmice que se restringia ao emprego e o retorno para a casa. Clara contava com quase cinco anos e durante o dia ficava com a avó materna. Naquela noite, a menina tinha ido dormir com a mãe de Vitória, pois Morales decidira aceitar o convite de um colega para um jantar-baile no clube de oficiais do exército. Não era o tipo de festa que lhe agradava, mas pensou que poderia ser a quebra da rotina por ambos desejada em silêncio.

A mulher, depois da faculdade de pedagogia, obteve aprovação em um concurso público e passou a trabalhar em uma escola de ensino médio. Alimentou planos para prosseguir os estudos a fim de entrar no corpo docente da universidade do Estado. O projeto se desfez nos primeiros meses após o retorno à vida acadêmica; os motivos foram o ciúme e a gravidez. Por isso, por vezes, sentia-se como castigada. A estagnação em sua vida profissional e o casamento, um tanto tedioso, ainda que o marido fosse um bom homem, a aborreciam. Daí imaginar que o tal baile serviria como uma chance de diminuir a tensão cotidiana.

Morales presumia que ele e Vitória entendiam com perfeição um ao outro, ao menos no que é possível para um casal maduro se entender. Na visão dos amigos era o modelo do casamento perfeito, as pessoas acreditavam naquilo e os dois, segundo ele pensava, gostavam de ser vistos assim. Além disso, Morales supunha que compreendia a si mesmo – o que podia fazer, até onde seria tolerado, o que lhe era proibido, quais as medidas que deveria tomar diante de determinados fatos; tudo por achar que conhecia muito bem as suas possibilidades e as suas limitações. Mais do que tudo, julgava gozar de elevado conceito na categoria de marido, cujo padrão conseguira ao longo dos anos, pois não se furtava de lavar a louça, acordar a mulher com um café na cama, presenteá-la de surpresa, só para vê-la satisfeita.

Os dois diziam se considerar um casal pleno, exceto por uma única ponta de tristeza por conta da interrupção do mestrado de Vitória, que Morales reputava como algo menor, que deveria ficar no passado. Mesmo que não quisesse admitir, às vezes, voltava a pensar no assunto, ultimamente, com maior freqüência e intensidade crescente, acompanhada por imagens horríveis, obscenas e inimagináveis onde a mulher o traía com um colega de curso.

Chegaram em casa perto da uma da manhã; cedo para quem pretendia se divertir como nunca, como dissera Vitória ao chegar no salão de baile. Corpos cansados e cabelos com o cheiro da noite. Quem nunca foi a uma festa, em um ambiente fechado, talvez estranhe, mas, de resto, é assim mesmo, é ficar poucos minutos e a roupa, os cabelos e as narinas cheiram a cigarro e a suor.

O anormal era a tensão calada que os envolvia sempre que ficavam juntos. Morales havia tomado algumas doses de uísque. Não apreciava as bebidas destiladas, mas influenciado pelas companhias agradáveis permitiu-se alguns excessos.

Sentaram-se na sala de estar. Vitória esparramou-se no sofá. Percebeu que o marido, com o passar dos anos, tornara-se um pouco mais introvertido. Recusara-se a dançar com ela, mas jantou e conversou com o amigo Sérgio e com dois militares e suas esposas com quem dividiram a mesa. Nada além disso. No fundo, Vitória sentiu-se um tanto desprezada, pois ele não se importou que ela dançasse duas músicas com o Sérgio, cuja acompanhante exibia uma barriga de sete meses. O fato lhe trouxe alguma frustração, pois gostaria de ter desfrutado da festa junto com Morales. Além disso, subitamente, ele anunciou que queria ir embora.

Vitória estava distraída entre as recordações recentes quando uma pergunta lhe trouxe para o presente.

“Gostou da festa?”

“O que é que houve? De repente, tu resolveu ir embora?”

“Não foi nada. Cansaço, só isso.”

“A comida estava quente e a bebida boa, não é?”

“Mais ou menos, mas a música... Desculpe, mas não deu pra dançar, faltava alguma coisa.”

“E o Sérgio, coitado. Ele não dança nada.”

Morales fez silêncio. Recuou, em segundos, cinco anos. Uma prática cada dia mais comum e dolorida. Relembrava a época em que Vitória estudava; o curso noturno, as horas em casa aguardando o retorno da esposa, o dia em que olhou entre as persianas do apartamento e a viu saindo de um carro vermelho. “Carona de um colega”, ela disse.

De olhos fechados, tentou recriar os fatos, reconstruir a história de outra forma, imaginando a si mesmo indo buscar a mulher na porta da faculdade, emprestando o carro e lhe dando dinheiro para que colocasse o automóvel em um estacionamento pago.

“Tome querida, não vá se atrasar... Ah, não, não peça carona pra esse cara... Ora, se não gosta de dirigir à noite, não tem problema, vou te buscar!”

Nesse momento, o relógio parecia paralisado. Morales poderia ficar uma hora remoendo e recriando imagens sem perceber. Ele sabia que aquilo não era bom, nem saudável, porém, não conseguia livrar-se do exercício infernal, das seqüências em reprise. Era verdade que nunca tivera a certeza inequívoca, definitiva e imutável do que ocorrera. Sabia que Vitória de uma hora para a outra havia desistido de prosseguir com os estudos. Sim, Morales reclamou das caronas. Mesmo que lhe fosse conveniente deixar de sair tarde para buscar Vitória, não podia concordar com aquilo. Um mal-estar havia se instalado naquele tempo. Morales não acreditava que um homem pudesse ser amigo de sua mulher. Ela era grande, como ele gostava. Seios firmes. Pernas rijas. Olhos castanhos. Cabelos longos e bem cuidados. Sempre vaidosa com as roupas e com o corpo. Não estava enganado ao expor aqueles temores para Vitória. Essa era a sua convicção. É claro que jamais havia pretendido prejudicar a esposa em seus projetos, não a proibira de fazer o que quisesse, mas não admitia ser iludido.

O certo era que ao final ainda persistia a interrogação, a dúvida e a insegurança que andava surda entre os dois. Porém, sem qualquer aviso, em meio ao diálogo despretensioso durante o começo de madrugada, tudo aflorou como se aquela noite, perdida no passado, estivesse suspensa no tempo.

“Aquele teu colega... Ele dança bem?”

“Quem? O Fred? O do curso?”

“Tu ainda lembras?”

“Nem penso nele.”

“Ele dança?”

“Como posso saber? Nunca dancei com ele.”

“Mas tu saiu com ele!”

“Não... Olha, nós já conversamos sobre isso.”

“Eu preciso... Por favor.”

“O quê? Não aconteceu nada. Nada demais.”

“Como nada? Ele tentou. Isso tu tens que admitir. Já faz tempo, eu sei. Mas, somos adultos, pode falar”.

“Não. Vamos deixar como está. Não há nada pra contar, querido.”

“Vitória, meu bem, nós não precisamos de segredos. Eu nunca escondi nada, não é? Me conta, por favor. Nós nem vamos ver mais aquele cara.”

A mulher ficou um instante em silêncio. Para Morales foi a eternidade. Ele fixou o olhar nela, depois passeou pelo sofá, contou os quadradinhos no desenho do tapete e refez o caminho de volta. Quadradinhos, tapete, sofá, rosto da mulher.

“Bem... Tá certo. Tu não vais ficar brabo? Já faz muito tempo...”

“Tudo bem, afinal, sou eu quem quer saber.”

Morales procurava manter-se calmo, mas em seu íntimo crescia um sentimento sufocado. As malditas imagens em velocidades surpreendentes se reproduziam uma após a outra. Vitória sorrindo, o carro vermelho, Fred, o casal se beijando, Fred dirigindo com a mão sobre a perna da mulher, os dois rindo dele, Morales espreitando atrás da persiana, Clara de vestido amarelo correndo em uma praça.

“Ele me beijou... Nós nos beijamos... Só isso. Nada mais.”

Ele permaneceu quieto por alguns momentos. Precisava digerir a notícia, processá-la, absorvê-la e controlar a luta entre o instinto de preservação da auto-estima e o desejo de saber o que ocorreu.

“O que mais tu tens pra me contar?”

“Não aconteceu mais nada, já disse. Não fomos além disso. Só um beijo e nada mais.”

“Só isso? Tu achas pouco, então?”

“Calma, amor, nem penso mais nele. Não foi nada sério. Eu errei, eu sei.”

Vitória reviu a noite em que retornou para casa de carona com o colega. Os olhos e o tom de voz de Morales eram os mesmos. Ela pressentiu que viveria a mesma cena e as mesmas indagações que agora ecoavam em sua cabeça. “Quem é aquele cara, Vitória? Onde vocês andaram? Sabes que horas são?” A repetição da antiga trama. Os punhos fechados do marido, o chute na cadeira da sala que voou contra a porta da rua, a voz quase inaudível.

“Meu Deus, o que mais aconteceu? Eu acho que sou um trouxa, isso sim.”

“Não faz assim, Morales. Foi só um beijo.”

“Pra mim, já é o suficiente... Tu não tens noção? Um beijo. NEM AS PUTAS BEIJAM. UM BEIJO É MAIS ÍNTIMO DO QUE UMA TREPADA.”

Vitória não sabia o que fazer. O tempo parecia desandar. Tudo aquilo deveria ter acabado há muito tempo. Ela procurou apoiar-se na razão. Levantou-se do sofá, tentou abraçar Morales, demonstrar que tudo estava bem. Ela tocou os seus lábios nos dele, que ficaram imóveis.

Não havia mais controle; Morales não podia parar. O que antes era uma suspeita, uma micro-certeza, tornava-se real. A mulher o traíra. A vergonha de ser um homem enganado tornava ridícula a história de casal feliz propagandeada entre os amigos. Talvez isso fosse até motivo de piada, talvez todos soubessem do caso. Ele ruminava em silêncio se agira corretamente. Reprovava a si mesmo por não ter interferido logo quando suspeitou. Deveria ter ido falar com ele, esperá-la na calçada, ameaçá-lo, se necessário. Mas não sabia até onde poderia ir. Ninguém desejaria estar em tal situação. Quem, nessas circunstâncias, saberia o que fazer? Logo Vitória, tão doce, tão bela e inteligente. Não queria acreditar. Um beijo, para ele, era muito mais importante que o sexo. Era pessoal, lascivo e, ao mesmo tempo, terno.

Morales sentia como se tivesse levado uma bofetada. Com um empurrão afastou Vitória.

“Ele colocou a língua na tua boca.”

“Por favor, chega.”

“Já imagino o que aconteceu depois...”

Morales apanhou as chaves e dirigiu-se à porta.

“Aonde tu vais?”

“Não interessa!”

Ele entrou no carro e rodou sem rumo. A bebida, o movimento, a dor de cabeça e a confirmação de Vitória o fizeram vomitar. Conseguiu estacionar e colocar a cabeça para fora. Agora, a realidade era material, definida. A suspeita soterrada, o esquecimento fingido pelo regular exercício de retirar da memória havia sido desvelado. O choque com a verdade; o tijolo atirado contra a vidraça.

Morales seguiu em frente, andou por vários lugares. Passou pela Farrapos e se viu entrando em uma das casas de shows da avenida. Pegaria uma qualquer para fazer a sua vulgar vingança. Desistiu, pois não teria como deletar a história daquele jeito. Terminou na Lima e Silva. Uma mesinha de ferro na calçada, público variado, jovens, bêbados, pessoas comuns e, também, gente estranha. Todos conversavam, sorriam sem preocupações, sem amores ou infidelidades.

Pediu uma cerveja, que permaneceu intacta até que a espuma quase sumisse e o líquido ficasse morno. O dia já ameaçava clarear quando Morales fez um sinal para o garçom. Num minuto, trouxe-lhe um copo com gelo, limão e uma bebida mais forte que ele sorveu em pequenos goles para alcançar a coragem que sabia não possuir. Quem o olhasse à distância não teria ideia do que se passava. Ele parecia tranquilo. Absolutamente sereno.

Morales não podia esperar mais. Pediu a conta, largou duas notas sobre a mesa e levantou-se. Enquanto andava quase tropeçou numa pessoa deitada sob uma marquise. A manhã nascia gelada e dois cachorros estavam encostados ao homem coberto de jornais, entre sacos, entulho e garrafas de plástico. Poderia ficar ali, cair em qualquer canto. Quase desejou não ser mais lembrado, esquecer-se de quem era e de como estava a sua vida.

Ele precisava reunir forças para voltar para casa. Pensou na filha, Clara, que possuía as feições da mãe. Era linda e ficaria mais bonita quando crescesse. Aos domingos, gostava de apanhar o jornal e deitar-se com o pai. Pedia que Morales lesse o Caderno de Televisão, as tiras dos quadrinhos. A menina viera ao mundo depois daquela pequena tragédia conjugal. Ela, na certa, ignorava os fatos; tão pequena, tão inocente e sem culpa. Sim, alguém tinha de ser o culpado, alguém tinha que ser o responsável por aquilo.

Domingo. O sol já ia alto. Morales estacionou o carro e entrou no prédio. Abriu a porta com cuidado. O jornal havia sido colocado sob o tapete. Foi até o quarto e viu que a porta estava entreaberta. Vitória, deitada de lado, parecia dormir. Ele desejava um banho, um pouco de privacidade e alguma coragem. Tirou a roupa e abriu o chuveiro, regulando para que ficasse bem quente. Os vapores e o calor aconchegante do jato d’água na nuca fizeram com que relaxasse por um momento, mas a imagem projetada ainda era a mesma: Vitória murmurando abraçada a um outro homem sem rosto. Mais! Mais! Mais! Ele ouvia mentalmente quando abriu os olhos e pensou como as coisas haviam saído dos trilhos; sabia que estava errado e que, de alguma forma, tinha falhado, que não compreendera a mulher. Talvez ele não tivesse agido corretamente e, talvez, fosse ele o culpado, mas agora não havia mais nada que pudesse modificar. De repente, ouviu a mulher do lado de fora.

“Morales, tudo bem?”

“Que é?”

“Está tudo bem, querido?”

“Já vou.”

Nenhuma outra palavra foi dita. Depois de secar o corpo, Morales saiu do banheiro, foi para o quarto e viu a mulher sob os lençóis. Rapidamente, deitou-se para se encostar em Vitória. Ela voltou-se para ele e com suavidade passou a mão em seu rosto tenso. Ele tentou resistir, manteve-se imóvel, contudo não a afastou. Esperou quieto e ela, sem dizer uma palavra, acomodou-se sobre seu corpo.

Morales não pôde deixar de lembrar do outro. Em como teria acontecido, naqueles encontros que povoavam a sua imaginação e, estranhamente, um desejo insano se instalou. Vitória deu-lhe um beijo ardente, cheio de paixão e piedade, enquanto comandava as ações e os quadris. Quando não pode mais suportar, abraçou-a e quase juntos tiveram um orgasmo.

A esposa, em seguida, aninhou-se em seu ombro. Morales lentamente permitiu que os pensamentos fossem se apagando. Afrouxou os músculos doloridos até que adormeceu para sonhar que voava de braços abertos sobre a cidade. Ele via o movimento nas ruas, as luzes das casas e dos edifícios, enxergava os rostos conhecidos, as pessoas andando nas calçadas, e sabia que ninguém poderia vê-lo ou tocá-lo. Sentia-se leve.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Minicontos (Esmeralda Kiefer)

Herança
Comprou um terreno no céu e deixou a conta para a filha.

Investimento
Converteu-se para seduzir o pretendente. Ganhou o inferno.

Injusta
Ao se inclinar para ouvir os amigos, desalinha a balança.

Com todo respeito
Ajeitou a gravata. Alisou o casaco. Colocou as flores.

Sinal
Perdeu o braço na parada do ônibus.

Lavanderia
Levou o rosto para passar.

Dividendos
Ganhou tempo. O marido morreu logo.

Classificados
Idoso, viúvo, com casa própria, procura irmã para ler o Evangelho.

Amor
Estava na cara que ela não enxergava bem, mas ele preferiu não ver.

Cegueira
O bebê não fitava ninguém. Mas a babá viu que os pais estavam cegos de amor.

Vingança
O vizinho careca trouxe tantos problemas que a síndica ficou grisalha.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Minicontos (Luiz Ohlson)

Diagnóstico

O médico deu-lhe um ano de vida. Devolveu no dia seguinte. Sem uso.


Jogatina

Feliz no jogo, infeliz no amor, suspirou, enquanto jogava a segunda esposa por sobre o parapeito.


Sintaxe

Tinha sérios problemas com o Português. De concordância, principalmente. Já com o Espanhol, seu amante...


Alguém explica?

– Doutor, eu sonhei que sua mulher me amava.
– Eu também – suspirou o psicanalista – eu também.


Debaixo da lona rasgada

Divertiu-se com as palhaçadas, temeu pela vida dos equilibristas, comoveu-se com os bichos. Fechou o jornal e foi ao circo.


Heróis e Mitos

1
– Como foi de viagem, querido?
– Nem te conto, Penélope, nem te conto.

2
– Sabe do Kronos?
– Mandou dizer que hoje não volta mais.

3
– E o pagamento, Caronte?
– Adiantado e em dinheiro.