quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Pequenos milagres (Berenice Rheinheimer)

Não podia evitar: tinha pavor de aves. Pombas, patos, araras, sabiás ou flamingos; não importava o tipo, o fato é que padecia deste medo há muitos anos, como se sua própria existência dependesse de manter distância das penosas. Tentou, sem sucesso, algo que lhe ajudasse a encontrar a coragem perdida há tantos anos. Fez análise, tomou florais, submeteu-se a simpatias e até freqüentou um terreiro de candomblé, tudo sem resultado. Seu pânico continuava tão inabalável, que Celeste acabou por seguir o conselho do último terapeuta, de aceitar e conviver com seus temores. Era complicado, precisava evitar os parques, vitrines de pet shops e até propagandas de televisão, sequer a imagem de um pássaro conseguia suportar.


Foi consciente de suas limitações que pisou no terraço naquela manhã. O assombro era maior que o medo. Precisava saber o que era aquilo se debatendo na piscina suja. Celeste herdara a cobertura, mas por seus hábitos noturnos, motivados pela fobia, quase não usava a parte externa do imóvel. Ali jaziam vasos, desprovidos de qualquer verde, plenos de terra seca que levantava vôo com facilidade, criando poças barrentas ao menor chuvisco. Junto ao deck de ardósia encardida, havia uma pequena piscina, mantida com água apenas para não danificar a fibra, a qual Celeste mandava limpar uma ou duas vezes por ano. Por este motivo, o corriqueiro era que a água se encontrasse verde e mal cheirosa. Sob a luz mansa de um dia nublado, Celeste teve dificuldade em distinguir o que se lamentava na água rasa e apodrecida. Viu que era um negro, muito escuro, de tez quase azulada, caído de lado e apesar de seu empenho, não conseguia levantar-se, porque não equilibrava suas grandes asas. Parecia um mendigo de cabelos muito brancos e olhos de catarata. Suas asas imundas boiavam no charco repleto de limo em que a piscina havia se transformado.

Celeste rendeu-se ao impossível, tinha de admitir tratar-se de um anjo. A possibilidade do divino não amenizava o inconveniente: havia penas espalhadas por todo deck. Com esforço, o anjo conseguiu erguer-se um pouco e sentar na borda da piscina, o que fez Celeste gritar. Alheio, não tomou conhecimento da presença dela, e falou. Pronunciou algo que ela não pode compreender, talvez uma língua antiga, a voz rouca e mansa de anjo confabulando. Refeita da surpresa, compreendeu que era necessária uma atitude. Pegou a peneira da piscina e cutucou a criatura, enxotando-a. Só conseguiu fazê-lo porque entre ela e o anjo havia a longa distância do comprimento da haste de alumínio. O máximo que logrou, para seu desespero, foi fazer o anjo bater as asas peladas, perdendo o pouco de penas que lhe restavam. Ela decidiu entrar, estava atrasada. Talvez ao longo do dia, aquilo (seria mesmo um anjo?, perguntou para si mesma) desaparecesse. Ele não surgiu do nada? Então o fenômeno podia repetir-se.

No final do dia, na entrada do edifício, o síndico a esperava com o semblante contrariado. Reclamou da água escura que respingou durante roda a tarde, sujando os vidros dos andares inferiores. Ignorou quando Celeste tentou falar da inesperada visita, apenas frisou:

- Vazamentos dentro do imóvel são de responsabilidade do condômino.

Celeste praguejou, irritada com a inutilidade de um anjo sem milagre, entrou em casa decidida a seguir as orientações da vigilância sanitária. Orientações antes negligenciadas, mas agora tinha a esperança de que o aversivo usado para espantar os mosquitos da dengue pudesse também afastar o anjo. Então jogou dez quilos de sal grosso dentro da piscina. Tinha muitos pacotes em casa: cada vez que recebia uma notificação, comprava os dois quilos de sal recomendados, mas adiava as saídas no terraço, esquecendo-se de usá-lo. Assim como com os cutucões, num estupor de peru, o anjo ignorou Celeste. Ela começou a chorar, gritando xingamentos nada devotos, e furiosa, não percebeu a ausência do medo quando algumas penas voaram em redemoinho. Resolveu dormir um pouco, no outro dia poderia pedir auxílio a algum religioso: reverendo, professor de catequese ou, talvez, alguém da Universal.

Após poucas horas de sono desassossegado, acordou preocupada. E se aquilo resolvesse entrar no apartamento? E se chamasse outros como ele, saídos de algum tipo de geriatria do reino dos céus? Andou até a sala e espiou pelo vidro, o anjo continuava sentado no deck, as pernas penduradas dentro da piscina e as asas desplumadas jogadas no piso. Num destempero típico da madrugada, Celeste lançou para perto da piscina três frascos acesos de Jimo fumegante. A única conseqüência foi fazer o ser alado tossir e espumar. Arrependida, Celeste estava a ponto de chamar a Eco Salva, quando os estertores do anjo diminuíram. Bastou que ele, com a mão em concha, lavasse o rosto na água escura. Depois, iniciou um ritual como quem se benze, o tronco e as asas num balanço ritmado, molhava os dedos na água e passava-os pela testa.

Vencida, Celeste voltou a se deitar, aceitando o que o céu lhe impunha. Se fosse o caso de ter um anjo domesticado, qual outra solução, senão aceitar? Com o passar dos dias, acostumou-se com a presença de mais alguém em casa, mesmo que o anjo permanecesse alienado. Alimentava-se de larvas crescidas na piscina, também de pequenos insetos ou trevos e outras ervas daninhas que insistiam em brotar da terra seca.

Na segunda semana ela capitulou e ofereceu a ele uma cesta de frutas, e como prova definitiva sua rendição, um envelope com sua matrícula no curso de esperanto. Contou ao anjo que começaria a frequentar as aulas na semana seguinte. Ele a olhou pela primeira vez e deu-lhe um sorriso de dois dentes. Celeste sentou-se no banco de madeira, já sem verniz. Não se lembrava de ter passado mais de cinco minutos no terraço na última década. Viu no tronco que fora uma palmeira, uma orquídea pronta para florir. Olhou o pergolado vazio e sentiu falta da lágrima- de- cristo de antigamente. Os vasos de temperos ainda tinham as placas pintadas por sua mãe. Celeste fez questão de olhá-las de perto: hortelã, alecrim, manjericão. Teve saudades dos aromas de sua infância.

Saiu com pressa e voltou carregada de mudas de flores, sementes de ervas aromáticas, adubo e um grande regador. Sob o olhar do anjo, pôs-se a repovoar os vasos, disposta a restituir a vida do lugar. Ainda tinha guardados os bebedouros de beija- flor de seu pai: pendurou-os, e também as casinhas de madeira que as curruíras ocupavam na primavera. Descobriu duas bromélias sobreviventes e, em cima da treliça que um dia sustentou uma buganvília, um ninho de sabiás. A fêmea trazia no bico a refeição dos filhotes, uma minhoca ainda se contorcendo. Satisfeita com os pequenos milagres do cotidiano, afastou-se para permitir que a mãe alimentasse a prole, enquanto ela se punha a adubar as mudas recém plantadas. Viu que o anjo se movimentava. Num arrastar de asas ele suspendia o regador, ajudando Celeste em sua tarefa de cuidar das folhagens.