sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Feito homem (Rudiran Messias)

Chora, mano. Pode chorar. Eu sei a dor que tu sente.

E não vou dizer pra ninguém.

O medo é assim; a dor é assim: ninguém entende antes de sentir na própria carne. Essa miséria de tá amarrado sem poder fazer nada. Foi assim que eu me senti todos esses anos, apodrecendo no inferno, sem ninguém pra me consolar. E por tanto tempo, tanto tempo, que eu queria ver se tu era macho de agüentar. Mas tu já chora.

Desde pequeno a vida foi padrasta pra mim. Tu, pelo menos, tinha pai vivo pra te defender se alguém quisesse te ferrar. O Laurindo sempre ali, passando a mão na tua cabeça enquanto eu tinha que me virar do jeito que podia. Quando eu voltava do colégio, ele mal deixava eu almoçar e já me enxotava de casa. Dizia que se ele e a mãe trabalhavam, eu também tinha que fazer a minha parte. Só tu que ficava aqui dentro, na boa: vendo televisão, jogando videogame.

A mãe também tava sempre do teu lado. Era como se tu fosse o único filho que ela tinha botado no mundo, porque tu parecia com ela e eu não. Da mãe, eu não tinha nem os olhos, nem o formato do rosto, nem o cheiro, nem a cor da pele. Então ela olhava pra mim e lembrava dele, aproveitava pra dar o troco. Acho que ela sabia o que o Laurindo fazia comigo, mas tava cagando. Deixava ele me esfolar de tanto bater, depois olhava pra mim e dizia: tu é bem como o traste do Dione. Merece cada uma dessas biaba que o teu padrasto te deu. Então eu chorava, como tu tá chorando agora.

Chorava quando ele aproveitava que a mãe tinha saído e te levado junto com ela. Aí ele me chamava na cama e me amarrava bem apertado, o teu pai. Ele fazia isso comigo. Um dia eu falei tudo pra mãe, mas ela não acreditou e ainda me deu um tapa na cara. Disse que eu só tava inventando aquilo porque o Laurindo tinha me dado uma sova. Depois ainda contou tudo pra ele, que negou e me surrou ainda mais. Ameaçou de me expulsar e falou pra eu não inventar história, pra não usar aquele palavreado na casa dele – ele tava falando desse barraco aqui, que o meu pai construiu com os próprios braços e que foi onde eu nasci. A mãe, do lado dele, só perguntava onde eu tinha aprendido tudo aquilo, se tinha sido com os capangas do Tonho. Mas eu tinha aprendido tudo aquilo era com o Laurindo, mesmo.

Só quem acreditou em mim foi o Tonho. Também foi ele quem me deu trabalho quando eu precisei, porque tinha sido amigo do meu pai. E me deu a faca do Rambo, quando eu contei o que o Laurindo tinha feito comigo. Primeiro me ofereceu um berro, mas eu vi a bichinha brilhando na cintura dele e disse que preferia a matar com faca, porque eu gostava do filme do Rambo. Quando eu disse isso, ele me olhou com orgulho, como só o meu pai já tinha olhado pra mim antes. Então eu voltei pra casa e furei aquele filho da puta do teu pai quando ele tava dormindo. Eu cheguei no quarto e ele tava de bruços, dormindo só de cueca, com aquela bundinha virada pra mim, se oferecendo. Daí eu cravei o aço e o Rambo comeu ele. Mas não demorou pra mãe chegar contigo, e vocês nem pensaram duas vezes antes de me entregar pros porco. Correram daqui chorando, como nunca tinham chorado por minha causa, que nem tu tá fazendo agora.

Chora mano, pode chorar.

A mãe tá lá dentro e não vai acudir.

Ela também não me ajudou quando eu precisava. Só o Tonho que me deu a mão. Ele sempre foi um pai pra mim depois daquele dia. Quando eu fui em cana ele disse pra eu agüentar um tempo lá, enquanto a história esfriava. Disse que assim eu ia aprender a ser homem – e eu aprendi, sofrendo, sem chorar. A cadeia me mostrou que pra ficar vivo a gente tem que ser forte, mano. E agora eu sou forte, por isso o Tonho deu um jeito de me tirar de lá.

Chora, mano, pode chorar.

Mas não tem como ser diferente.

Agora eu saí da cadeia e chegou a vez de provar que eu virei homem. Não adiantou o Laurindo ter feito aquilo comigo. Eu ainda sou macho – e sujeito homem vai lá e faz justiça, não espera que os outros façam. Foi o que o Tonho disse, quando me deu essa pistola.

Tá vendo essa belezinha aqui? Essa arma é o meu ticão, que eu vou meter no teu rabo do mesmo jeito que o teu pai fez comigo, do mesmo jeito que ele fez com a mãe. Aí tu vai ver como foi que o Laurindo fudeu a nossa família.

A mãe entendeu tudo bem direitinho e agora tá lá dentro, dormindo sono ferrado.

Chora, mano. Pode chorar.

Eu não vou dizer pra ninguém.

Vou contar que tu morreu feito homem.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ouvindo a chuva (Paulo de Tarso Riccordi)

Dia ainda claro, do horizonte avançava uma barra escura de nuvens carregadas, quase sólidas de tanta água.

Vó Neca falou:

- Aí vem temporal.

Luizinho confirmou e logo se surpreendeu. Voltou-se para observar a bisavó. Teria recuperado a visão?! Não. Ela continuava com os olhos pregados no vazio, tão cegos como sempre.

- Como é que tu sabe que vai chover, vozinha?

Ela riu. - Pelo ar. Não sentes os sinais?

- Eu tô vendo o tempo fechar.

- Os sinais da chuva que vem vindo estão no ar. É como um mensageiro que nos traz notícias de longe. A Natureza também fala.

Estendeu a mão e tocou na cabeça do bisneto.

- Fecha os olhos.

Ele fechou.

- O que estás ouvindo?

- Um automóvel.

- Te concentra mais. Não escutas os passarinhos?

- Passarinhos?

- É. Ouve: eles pressentiram o temporal e estão buscando as árvores para não serem pegos pela chuva durante o vôo.

Luizinho, agora concentrado na audição, ouvia, sim, o rebuliço da passarada no arvoredo em torno. Era a mesma algaravia de sempre, mas agora parecia amplificado por sua atenção.

- Agora te concentra com o corpo. O que estás sentindo?

Luizinho sentiu a leve, ainda levíssima, brisa chegar até eles.

- Tá ficando mais fresquinho.

- É, na frente da chuva vem o vento frio. Está correndo para onde o ar é mais quente para ocupar seu lugar.

Ele agora o percebia nos braços e nas pernas, arrepiadas.

- Agora respira fundo. E então?

Ele concentrou-se, nariz erguido.

- Cheiro de capim. E de barro.

- É, já está chovendo nos campos fora da cidade. A chuva vem vindo de lá para cá.

Luizinho entreabriu os olhos e viu a bisavó apontar com o queixo exatamente o rumo de onde vinham as nuvens.

- Agora as plantas estão felizes. A terra está molhada. Elas precisam de sol, mas também de muita água para crescer. Ficam mais fortes, crescem mais rápido. E o gado também fica mais feliz, porque tem o que comer. Não estás sentindo um cheiro de bosta de vaca?

Não, ele não sentia. Era sutileza demais para ele.

- Eu tô sentindo é cheiro de eucalipto.

- É, naquela direção. - A avozinha apontou adiante. - Deve haver uma grande plantação de eucaliptos lá.

Luizinho mais uma vez surpreendeu-se. Avistava a meio caminho da linha do horizonte um mato de eucaliptos. Fechou os olhos e aspirou profundamente o ar impregnado desse perfume familiar. Era costume naquela família ter sempre uma lata com folhas de eucalipto a ferver à beira do fogão a lenha “para desinfetar o ambiente”.

- Ainda estás com os olhos fechados?

- Tô.

- Sentes que o ar está mais pesado?

- Não. Eu tô sentindo é cheiro dágua.

- É, já tem cheiro de umidade no ar. Eu sinto no corpo e nas juntas dos ossos que a umidade já aumentou bastante. Logo isso vai se condensar e formar gotas.

- E aí vai pingar e começar a chuva.

- É, por isso vai chover.

O lençol escuro de nuvens os alcançou, cobrindo o que restava de céu.

- Pronto, o sol se foi. Agora ficou frio mesmo. Vamos entrar para não nos gripar.

A avozinha levantou e arrastou consigo a cadeira, subindo as escadas e avançando pela casa, sabendo onde cada coisa se encontrava, melhor do que se enxergasse. Nunca precisava de auxílio para nada ali dentro.

- Vou preparar um chá de cascas de laranja.

Da janela da cozinha Luizinho ficou olhando a chuva chegar. Era a velha chuva de sempre, e ao mesmo tempo uma completa novidade. Primeiro o vento sacudiu as folhas das árvores do pátio, agitando-as desordenadamente em todas as direções. Depois as grossas gotas iniciais vieram tamborilar nos vidros. Quando a chuva chegou total, veio como uma cortina, avançando rua a rua, casa a casa.

- Luís, tem um pano velho aqui debaixo do fogão. Enrola ele e põe junto à porta, que está entrando água por aí.

Outra surpresa. De fato, a água começava a entrar na cozinha por baixo da porta.

- Como sabias disso, vozinha?

- As gotas estão batendo contra a porta. É sinal de que o vento as está empurrando também por baixo dela. E depois, pelo barulho, o ralo do pátio deve estar entupido.

Ela não confessou, mas isso ela não ouvira, não. Fora a empregada quem, de manhã, dissera que a calha estava entupida de folhas secas e que “amanhã” iria limpá-la.

Ele deixou-se ficar diante da janela, mas com os olhos fechados, deixando que os demais sentidos continuassem a perceber temperaturas, sons.

A lembrança dessa tarde lhe voltaria ao longo da vida, trazida pelo ruído de chuva, pelo perfume de terra molhada e eucalipto, pelo sabor do chá de laranjeira e pelo abraço de um corpo mirradinho de carnes. Nunca mais as chuvas deixaram de trazer notícias das cercanias e do passado.