terça-feira, 20 de agosto de 2013

Uma estranha noite em Nice, ou Cannes, ou Cap Antibes, enfim, não importa (Ayala de Aguiar)

Jamais vira um orangotango em minha vida. Nem em circo. Nem em zoológico. Não saberia como me comportar diante de um. Era tarde da noite, foi tudo meio que de repente. Eu estava sentada num banco, na pérgola da Promenade des Anglais (ou era na Croisette?) Não importa. Olhava o Mediterrâneo com o respeito religioso com que sempre olho para este mar interior, repositório e túmulo da caminhada da humanidade. Tudo o que se passou às suas margens, sobre suas águas, tudo o que jaz, ou jazeu, sob elas, nos diz respeito.Explica-nos. Como somos, como nos desenvolvemos. Explica nosso caráter. A história, o mito, a lenda, as conquistas, as derrotas, os êxitos, os fracassos. O caráter do homem ocidental se gestou aqui, nas águas deste mar fechado em meio às terras. O Grande Azul.

Um dia, há muito tempo, eu jurara, sobre suas águas, e tendo-as por testemunho, que jamais alguém me haveria de humilhar. Mas isto é outra história.

Alguém sentou-se no banco, a meu lado, trazendo-me de volta à superfície. Era um orangotango.

—“Chose étrange”— diria meu querido e saudoso professor.

Estávamos em Nice, ou Cannes, pouco importa, diante do Mediterrâneo. E o que se vê em Nice, ou em Cannes, não se discute. Viu, está visto. Existe.Se Ionesco pôde ver, por que não eu?

Era um orangotango, sentado a meu lado. E ele me perguntou:

— Madame, por favor, que horas são?

— São 9:15 – respondi.

— Da noite, quero crer?

— Sim, da noite. Não notou? Já está escurecendo.

— Nunca se sabe, madame. Nunca se sabe.

Falava francês com um sotaque estranho. E o que me chamou a atenção é que não era aquele sotaque típico africano:“c’est vrrai, c’est vrrai”.

Esse outro acento eu não conseguia distinguir. Fiquei curiosa. De onde teria saído o diabo deste orangotango com tal sotaque?  Eu tinha duas alternativas: ou me calava, ignorava a presença do orangotango e, discretamente, me afastava dali. Ou ficava. Fiquei. Para puxar o fio da meada e ver aonde ia dar tudo aquilo. Podia render uma boa história.  Estava um pouco insegura, não sabia por onde começar a conversa.Falar do tempo era muito óbvio. Resolvi arriscar. Puxei o fio da meada.

— O senhor não é daqui? – pergunta afirmativa.

— Claro que não, madame. A senhora há de convir que não se veem muitos como eu, neste país, fazendo turismo.

— Ah! O senhor viaja a turismo, não a negócios?

— Sim, digamos que sim.

— Bem, é que, atualmente, com o deslocamento das populações, vê-se de tudo. Quero dizer, muitos estrangeiros, das mais variadas etnias...

– Madame tem razão. Vê-se de tudo. Eu disse à minha mulher, antes de viajar: “Seu marido vai chamar atenção”.

É casado. Uma informação.

— Minha mulher e meus filhos nunca saíram das Ilhas Mauricio, onde vivemos.

– Interessante.O senhor é, pois, africano?

– Não exatamente, madame. Somos indianos. De origem. Meus antepassados se radicaram nas ilhas desde tempos imemoriais. Bem mais recentemente, por volta de 1500, fomos descobertos por navegadores portugueses, depois fomos colonizados por franceses, holandeses, ingleses. Hoje somos um Estado independente.

Este cara está me gozando. Quem foi descoberto em 1500, por portugueses, fomos nós. Onde será que ele quer chegar com esta conversa mole?

— E Madame, de onde vem? Do leste europeu?

Era a minha vez de tirar sarro (ainda se tira sarro?) da cara do sujeito. Está me achando com cara de romena? Albanesa?  Conversa chata, esta.

Respondi, educadamente:

— Não, cavalheiro, ao contrário. Eu venho do extremo ocidente.

Frisei a expressão.

— Interessante. Perdoe-me se não estou a alcançar a localização. Geograficamente, quero dizer.

— O extremo ocidente, acentuei – é do outro lado do Atlântico, senhor.

— Interessante, muito interessante, repetia. É uma região de florestas, de grandes florestas. Meus antepassados eram seres de floresta... Interessante. Madame, tão civilizada, tão bem informada, parece um pouco surpresa por estar conversando com um estranho, e a estas horas.

— Pois não é? Meio tarde. Mas, como dizem na minha terra, se a prosa está boa a gente segue proseando.

Orango avaliava a minha condição de ser civilizado como se no extremo ocidente só houvesse, digamos, primatas. Eu já estava farta de, ao longo de minha vida, me desculpar, de explicar que no extremo ocidente usávamos roupas, comíamos com talheres, íamos a universidades e conseguíamos falar mais de um idioma, além do nosso patuá nativo.

Enfim, não importa. Conversamos sobre muitas outras coisas, a chamada conversa fiada, solta, sem comprometimento. O fio da meada, que eu pretendera puxar, não desenrolou muito além da superfície do novelo. E a mim já não me interessava saber-lhe vida, paixão e morte. As horas iam passando, frente ao Mediterrâneo. Agradáveis, horas plenas, e isso me bastava.

Quando Orango, discretamente,olhou seu relógio de pulso, um magnífico Rolex, na extremidade de seu longo braço, pensei comigo: Se ele tem relógio, por que perguntou-me as horas?

 Simulou, ou, realmente, sentiu um leve susto.

– Macacos me mordam!  São quase quatro da manhã.Como o tempo passou rápido. Hélas! Demasiado rápido, madame. Se eu não correr perco meu voo para Stockholm. Désolé! Preciso voar para o aeroporto. Perdoe-me a pressa. Foi uma honra desfrutar de sua amável companhia nesta noite magnífica, mágica. Pelo menos para mim. Espero revê-la um dia, madame. Adeus!

Disse isso num francês fluente e impecável, sem sotaque, já em pé, acenando para um táxi.

Olhei as horas no meu relógio de camelô: três e cinquenta e cinco.  Na linha do horizonte, à minha esquerda, uma fímbria de claridade começava a se delinear. Algumas horas antes, poucas, eu vira o ocaso sobre o Mediterrâneo. Agora via o alvorecer. Imutável e perpétua marcha do tempo sobre o Grande Azul.

Levantei, dei uns passos para destravar as articulações, me espreguicei.O que se vê em Nice, ou em Cannes, não se discute. É real. Viu, está visto. Existe.

 Enfim, não importa.
 
(Este conto de Ayala Aguiar foi o vencedor do Primeiro Concurso Aleph de Contos das Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda)
 

domingo, 19 de maio de 2013

DesMinudessÊncias (MCeleste Carloto)


Homenagem ao guardião do imenso ínfimo 

Vestido pelas margens de Barros que o velho Manoel trilhou de pé-em-cabeça, Mil 96 anos frutificando sobrancelhas sob a noite de dezembro. Um começo não se sabe quando, desdia não importa. Tímido roseado, estrela-garça tresandejando rio-palavra virgem prenhe, formou-se em Torto a vida toda. Compendiando pássaros, encurtou águas para parir um Jabuti.

Quando um crôvio pingava trevas, manoelilava frases:

Um passarinho tinha vento e rodas de asfalto

QuiQuiQuiQuiviando protesto pelo silêncio envidraçado

Pensamento-gafanhoto: Nem a Primavera virá chuvisquiar peixinhos!

A tarde brotou pedra quando um escorpião mordeu a lata, que gritou azul como um tonto. Ou seria um poeta? No ermo sujo de pisadas humanas, o Senhor de nadifúndios ajoelhou a brisa e desmorreu a concha. Dês-pessoa mutável, cartografou sem-fim vozes do pântano plástico, onde a lata come o rio e o ar racha uma poça de parede, ensandecendo na língua as paisagens, pré-cantiga rupestre para pós-viver.

Fazendo tratados de infinidades, idéiaiara feita de frases e dentes e latas, transvendo ele morreu Bernardo andar-ilh(a) na trama das larvas do entardecer, para nascer desertos em asas de petúnias. Prendeu águas para alumiar o turvo, gotando pétalas abaixo ovas de sapos felizes, escreveu nenhumas para desexplicar os vagalumes.

Minudequenas.

Ântropo de inseto protagonizando chuvas, Bernardo franciscou irmão dos limos, sendo lesma para arvorizar-se. Híbrido de madrugadas e formigas vadias, sub-azul de palavras vareiadas, coisou vida de pedra.

Ontem é para ouvir futuros, agora é ocaso em estado de criança, menino-lúdico, pleno ludimenino. Teve a graça da cigarra e ela não fugiu Verão. Agora já só prisca poesia com joelhos silenciosos, peraltando a vida, porque pesaroso do dia tardo. Quando virar pássaro, será árvore? Tresandando existências, encolhe para a mãe-vida até o limo-primícia. Varejando verde-poesia, na lógica de olhar das aves, continua bebendo copos de sol para contaminar de versos os ossos das moscas.

Pervertendo o traste para virar sabiá, na voz de Bernardo vide Manoel do mato fino e da flor rasteira, apanhador de gotas de rio no canto das lagartixas, um besouro, nascendo pedra, se espicha ao céu. Fazedor de aluminesceres para chãzificar cacos de noite ao sol, beija-vento alimentando flor, fundido na voz da lua agarrando cheiros, tonto de fonte pinga-cor no sentido chão, aponta colarinhos que deixam o rio nu, meandros de vermes e vida desparamentada, um lápis escreve o rio que pinta o poeta. É da natureza do lápis transviar o invisível.

Papito temperado à ináugura frase-palavra, desapre(e)nde rapinando luar. Aspira devagarinho a luz sem suspensórios, verbo sem lantejoula, em decomposição, vaziando um útero pleno por nascer. Para inteliger a transgressão das palavras, prende raios de água nas unhas dos sapos. Desherói de si mesmo, afrodizia o rio em ensaios luminovagos. Descasca alma. Descalca. Ama letras como os lagartos gostam as pedras.

Primogênico de si próprio, Manoel antes letral de que sangue quebrando copos formais. Imaginação e um lápis para envelhecer o dia, colheu folhas decíduas nas veredas pantaneiras, polindo águas de campos pequenos e horizontes vastos. Desenhando voz, despinta na rocha a eternidade.

Cântico de minúsculos infinitos, suculento microcósmico, ascensão de lesma a luar, pesponta metalinguando as margens e os caroços. Delirando verbos, mastingando, anoiteceu guri espirituando árvore, tratando das grandezas insignificantes de um pardal, conversou fósseis com caracóis e sapos e ervas daninhas e deixou o grilo erodir o ponto.

Molda sons desenhados como quem faz cacimbas para conversar absurdez em Solo de Rio nº 2. No infrasilêncio do esquecimento da tarde, há não-eu no olho da pequena Gaia, legível de folhas secas alterincadificadas. É técnica de saber árvore.

Fotografando em alfabeto cursivo as coisas nenhumas da palavra faltante, palavras grossas magras escuras saltitantes, rascunhando fala para não gaguejar escrito. Liberdade é luxúria de corromper palavras até a quimera para escurecer sentidos.

A licenciosidade do Verbo anoitece para acender vagalumes, limpos de inutensílios.

domingo, 14 de outubro de 2012

Barba seca                         
(Rubem Mauro Machado)

Já no primeiro dia ficou claro que seríamos mandados para a guerra.

O Exército vai transformar vocês em homens de verdade, disse o tenente-coronel Bonera, comandante do Batalhão, diante dos recrutas perfilados no vasto pátio cimentado. Uma bandeira se agitava em patriótico frenesi, no alto do poste pintado de branco. Infantaria não tem moleza, continuou, é a arma que vê os olhos do inimigo. E quando esse momento chegar, quero que os olhos que nos enxergam estejam cheios de medo. Medo de vocês.

O Exército não é lugar de molengas e nem de boiolas, muito menos de covardes, completou o capitão Brickman, comandante da nossa Companhia, a II de Fuzileiros, quando mais tarde nos enfileiramos diante do alpendre do alojamento, cada um de nós tendo ao lado um saco de lona com nossos poucos pertences. O capitão caminhava de um lado para outro, peito estufado, batendo com o bastão de comando no coturno bem engraxado. De vez em quando parava e nos encarava feio, de cima para baixo, como se estivéssemos duvidando dele. Vocês são os defensores da pátria e de nossos valores. O inimigo representa tudo o que odiamos; quero que os corações de vocês estejam cheios desse ódio santo. É ele que nos levará à vitória.

Passeou os olhos pelas fileiras, como se buscasse qualquer fraqueza ou hesitação em nós. Atrás dele, os tenentes e sargentos, posição de descansar, mãos para trás, olhavam firmes para frente, por sobre nossas cabeças, todos muito marciais. E eu juro, completou o capitão, que esta vai ser a melhor companhia do Batalhão, nem que para isso eu tenha de arrancar o couro de vocês.

Alguns homens gostaram daquilo tudo. Eles haviam visto muitos filmes de guerra no cinema e na televisão e cada um se imaginava uma espécie de John Wayne. Estavam doidos para começar a dar tiros. No alojamento repetiam que o capitão estava certo: Exército era pra macho mesmo. E quando chegasse a hora do pega pra capar, os homenzinhos distantes que tinham o topete de nos desafiar iam ver o que é bom pra tosse.

Aquele machismo descarado talvez fosse a maneira que alguns encontraram de negar, para os outros e para si mesmos, o medo que nos apertava as entranhas. Embora, eu haveria de descobrir, de fato alguns homens, digamos um ou dois em cem, sejam assassinos por vocação e natureza, tenham gosto genuíno em destruir e matar. E, depois de viciados na adrenalina do combate, não possam mais, como todo drogado, viver sem ela.

Quem parecia não estar entendendo nada era Jones. Pernas arqueadas, uniforme mal ajambrado, jeito de caipira, tinha uma vaga idéia do que os oficiais estavam falando. Sabia que deveria odiar, e que mais tarde iria matar, uns sujeitinhos esquisitos a quem nunca vira e cuja língua não entendia: mas as razões para isso lhe escapavam. Eram inimigos, certo: mas se não estavam nos incomodando, se éramos nós que teríamos que pegar um avião, viajar horas sem fim, atravessar o oceano, como lhe explicaram, para chegar no país deles e mandar chumbo neles e acabar com a raça deles, porque não podíamos ficar nós por aqui mesmo, lavrando a terra em paz, tirando leite das vacas, dando comida pros porcos e pras galinhas, e deixar eles pra lá, cuidando da vida deles? Queriam tomar o que era nosso? Mas tinham eles aviões grandes para cruzar os céus até aonde estávamos? Tinham eles como chegar até nós? Não era melhor esperar por eles, se fosse o caso, e assim que fossem chegando, aos poucos, aí, então, sim, ir acabando com eles, um por um, para que aprendessem a respeitar o país dos outros? Se éramos tão mais poderosos, como o sargento Clark dizia, por que  ter medo deles?

Quando Jones, no alojamento, ensaiou em seu vocabulário escasso de homem do campo fazer essas perguntas sem pé nem cabeça, os homens, que desde o início o elegeram alvo preferencial de brincadeiras e sacanagens, deram-lhe respostas jocosas e perguntaram se ele estava com medo, se estava se cagando antes do tempo. Por covardia, calei; mas as dúvidas de Jones também eram as minhas.

O Exército é uma grande repartição pública como outra qualquer, logo constatei. Gastava-se boa parte do tempo com formalismos aborrecidos, nada heróicos. A burocracia se sobrepunha à lógica, o estabelecido não admitia o diferente. A hierarquia derivava não da capacidade individual, mas de fatores variados, como o mero tempo de serviço. Ponderações não eram bem vistas.

Correria e inatividade se alternavam, numa rotina absurda e irritante. Podíamos ficar 40 minutos enfileirados ao sol, à espera de alguma decisão, como se o tempo fosse um bem supérfluo, antes que o capitão chegasse para o tenente com as fatais palavras “última forma”; e anunciasse um novo rumo. E lá íamos, marchando, feito bonecos, engolindo a decepção, perdida toda autonomia.

Pareciam nunca saber exatamente o que fazer conosco. E cada ato nosso, até os mais simples, como se dirigir ao refeitório, era determinado por outrem, sempre em caráter coletivo, ao ritmo do bater de pés. Regulamentos tudo previam. Sob o olho atento do relógio, arrumávamos a cama de manhã, dobrando o cobertor da maneira ensinada. Tínhamos de engraxar os coturnos pelo menos três vezes por semana, polir a fivela do cinto, limpar os fuzis a três por dois; fazer a barba todas as manhãs, às pressas, antes do café; e só havia uma maneira de prender a pá ou a lona da barraca na mochila; ou de se dirigir a um superior; e só uma posição fundamental no início da sessão de ginástica. O corte de cabelo igualava a todos e o manual dizia como cortar a unha do pé. Entrávamos em forma para tudo; só faltava ter hora para ir às latrinas, cobertas pelo cheiro acre de creolina.

Marchávamos até o refeitório para o café e o almoço; e para a sala de instrução, para o estande de tiro, para a ginástica calistênica, para o campo de futebol; isso tudo depois da formatura matinal do regimento, seguida de duas horas de interminável ordem unida, quando a voz de comando nos eximia de pensar ao tomar uma nova direção: obedecer tornava-se uma coisa automática. E no fim do dia, as companhias tinham de alinhar, cada uma diante do seu alpendre, para ouvir a leitura do boletim, quando ficávamos sabendo das eventuais punições por indisciplina no Batalhão; e éramos informados de que no dia anterior nossas heróicas tropas, numa antecipação do nosso trabalho, haviam matado 80, ou 150 inimigos, nas batalhas distantes, notícia que, embora sem comprovação, era saudada com um urro selvagem, festa de contagem de jogo de futebol. E ao cair da noite mais uma vez seguíamos marchando para o jantar. Não passávamos de frações de uma totalidade; não à toa, cada um de nós ganhara ao chegar um número, desde então inseparável do nome de guerra.

Passadas as primeiras semanas, integrara-me àquela rotina. Embora ainda não tivéssemos disparado um tiro, não mais me sentia o recruta perdido que certa manhã, depois de tomar as vacinas para tifo, tétano e febre amarela, e de ter o cabelo derrubado por um cabo improvisado como barbeiro, se viu sentado no alpendre da II Companhia de Fuzileiros, tentando achar, na montanha de coturnos depositada no centro do círculo que formávamos, um par que desse no pé. E que naquela mesma tarde, ao comando do sargento Stone, ficou ensaiando com os colegas durante horas bater continência.

Naquele dia constituíamos um bando ridículo de palhaços verdes, já que nossos corpos magros sobravam dentro dos uniformes ainda à espera de ajuste; e eu olhava com inveja os soldados veteranos que passavam altaneiros por nós, dentro de uniformes bem recortados. Ainda demoraria uns dias antes que, graças ao trabalho de tesouras, agulhas e linhas, nosso ou de mulheres do bairro pobre das redondezas, ávidas para faturar um trocado, ficássemos indistinguíveis das praças veteranas no trânsito movimentado das ruas do quartel. Este era formado por um conjunto de pavilhões amarelos, de um só andar e com um alpendre na frente (a que se subia por quatro degraus laterais), cada qual abrigo de uma companhia de infantaria. Outros prédios sediavam cozinhas e refeitórios, depósitos, a escola regimental – e a cadeia, de portas e janelas gradeadas, repouso dos muito agitados. Nos fundos, para além da planície cimentada das formaturas matinais, ficavam o estande de tiro, o paiol, a pista de atletismo e o campo de futebol. A testa do complexo era constituída pelo único edifício de dois andares, com o imponente portão de entrada cavado em arco no seu ventre, vigiado eternamente por uma sentinela. No andar superior ficavam os alojamentos dos oficiais solteiros; no térreo, o corpo da guarda. A cidadela, masculina, era cercada por um muro caiado de branco, que nos separava do grande mundo lá de fora, o mundo da normalidade, de que estávamos excluídos, quem sabe para sempre.

O capitão Brickman cumpriu a promessa de nos arrancar o couro. As horas de marasmo, em que ficávamos à espera não sabíamos bem do quê, ou aquelas dedicadas à instrução teórica, quando, depois do almoço, sentados numa lona estendida sobre o chão do alpendre, ainda no processo de digestão da comida difícil, lutávamos para que os olhos não fechassem ao som da cantilena monótona do tenente Knapp a nos falar dos ângulos de tiro dos morteiros, eram intercaladas por furiosa atividade física: ordem unida, ginástica com armas e propriamente dita, práticas desportivas, travessias de obstáculos pendurados em cordas, marchas diárias e noturnas; e por exercícios exaustivos no campo de instrução, situado fora da cidade e que alcançávamos caminhando em linha dos dois lados da estrada por nove quilômetros, dobrados sob o peso do equipamento.

 Lá, avançávamos contra um inimigo hipotético, urrando um ódio que tentávamos aprender, dando tiros de festim, jogando-nos no chão e rolando ao apito do instrutor, não importa houvesse à frente pedras ou espinhos que nos deixavam contundidos e arranhados.

O pior de tudo para mim era vir na corrida e, com uma raiva inteiramente nova, enterrar a baioneta calada em bonecos recheados de palha. Eu não queria pensar na possibilidade de um dia a palha se fazer carne, de ter de furar um ser humano, em um ser repleto de sangue que espirraria longe – e muito menos que alguém fizesse aquilo comigo.

No combate à distância atira-se numa sombra sem identidade, que se desloca e cai. É muito diferente do combate corpo a corpo, quando você percebe nos olhos do outro a surpresa e o terror, capta o cheiro de suor e medo que emana do corpo à frente – e sente a resistência macia da carne que sua lâmina perfura no impacto da corrida, até chocar-se contra a dureza de um osso. Lâmina que você torna a libertar erguendo o pé e empurrando o corpo do inimigo com a sola do coturno, como quem se livra de um fardo incômodo.

Passada a tempestade, nos dias que se seguem você se pegará criando uma biografia, inventando um nome, um trabalho e uma família para aquele infeliz. Vai pensar, nos momentos mais inesperados, ao acordar de manhã, enquanto faz a barba, no meio de uma conversa, ou enquanto dá uma garfada no prato de comida, na dor que sua vítima sentiu no momento fatal; e a que a família dele terá sentido ao receber a notícia de sua morte, o espanto do pai, os gritos da mãe, as lágrimas das irmãs. Vai imaginar como devem ser as tardes calmas da cidade ou aldeia natal daquele desconhecido, que veio para sempre e de maneira inesperada tornar-se parte de sua vida e da sua lembrança; no que ele achava graça, se gostava de música ou de assobiar, se tinha um gato ou um cachorro, se gostava de alguma garota, se era inteligente ou estúpido, alegre ou melancólico, se pensava na morte, se fabricava para si um futuro: e tudo isso por que você terá visto seu rosto de menino; e por que no fundo ele não é tão diferente de você. E nunca mais você deixará de ser perseguido pelo grito ou gemido fundo daquele segundo fatal, pelo som do choque da baioneta contra o osso; e não haverá sabão que consiga lavar de si o sangue que sujará as suas mãos e o seu uniforme de matador.

Não, eu na era adepto de baionetas. E tampouco me entusiasmei quando pouco antes de deixarmos o quartel rumo a um novo destino, cada um de nós foi presenteado com um punhal de dois gumes, afiadíssimo e ligeiramente recurvo, que a partir dali levaríamos sempre à cintura, como parte do equipamento. Como no caso da irmã maior, ele apresentava uma reentrância longitudinal no centro da lâmina que, descobri, tinha por finalidade provocar hemorragia interna.

Ainda bem que ao voltar para o alojamento à noite, depois do jantar, desmaiávamos de cansaço ao nos jogarmos nas camas; se tinha pesadelos, não conseguia me lembrar deles depois da noite que parecia tão curta, violentada pelo precoce toque de alvorada, já no esforço de abrir os olhos, sob o castigo das palmas e gritos de “levanta, levanta” dos sargentos, ainda escuro lá fora. E você mal tinha tempo de entender onde estava, antes de começar a correr, para não se atrasar.

Os momentos de folga eram gastos com cochilos: sempre havia alguém a imitar um cadáver de boca aberta nos nossos beliches duplos, um fio de baba escorrendo pelo canto da boca, morto para os que se dedicavam a costurar uma peça de uniforme, lustrar a fivela do cinto de lona, ou apenas mirar um ponto fixo no teto, nuca pousada na palma das mãos; ou que, sentados no chão frio do alojamento, se empenhavam num barulhento jogo de cartas: gritar e discutir é um dos modos de espantar o medo.

Nessas horas ociosas, em que éramos por um curto tempo donos de nós mesmos, Jones sofria com as piadas e provocações:

– Ei caipira, é verdade que lá na roça vocês trepam com as vacas e as galinhas?

No começo Jones ainda dava um risinho amarelo; com o tempo foi se fechando cada vez mais, afundando no mutismo, na perplexidade de ter sido lançado sem consulta num mundo hostil, que apesar do esforço tinha pouca possibilidade de entender. Mais do que maldade, eu sentia, havia nos homens a vontade de se sentir superior a alguém que parece inerente a todos nós. Éramos todos ali pobres, fodidos em maior ou menor grau, no máximo remediados: e mesmo assim ainda não tínhamos percebido que os ricos não iam para a guerra. Mas ser da cidade parecia uma boa vantagem em comparação com um camponês bronco.

Por pena e solidariedade e também pelo acaso de que Jones era de meu pelotão e seu beliche ficava próximo do meu, fui aos poucos me aproximando dele, puxando conversa, iniciando uma improvável amizade. Numa tarde morna de domingo em que a maioria dera uma escapada para a cidadezinha próxima, na esperança de uma trepada e de embebedar-se, e os restantes, afora os que engraxavam sapatos e coturnos, roncavam abraçados ao colchão de seus beliches, Jones, numa prova de que eu ganhara sua confiança, ou por pura necessidade de comunicação, aproximou-se de onde eu deitado tentava ler um livro, puxou uma foto rachada do bolso e me mostrou:

  – Eu e Bolota.

À frente de um galpão e de um terreno arado, Jones abraçava-se ao seu cachorro vira-lata. Partilhou comigo a contemplação enternecida e compreendi, mais do que dos pais e dos irmãos, ele sentia falta do seu cachorro.

 – Você acha que, se eu ficar muito tempo fora, ele vai acabar esquecendo de mim?

 – Claro que não, Jones. Os cachorros nunca esquecem seus donos. O dia em que você voltar pra casa, vai ver só os pulos que ele vai dar.

Então me contou como Bolota era esperto e como ficava assanhado quando o via pegar o caniço para ir pescar no riacho: seguia na frente ao longo da trilha, sacudindo o rabo de contente.

 – Soldado, chão. Vinte flexões de braço; rápido, vamos lá!

Tínhamos de estar sempre alertas (sobressaltados?). Qualquer hesitação, qualquer demora em compreender uma ordem, qualquer retardo em pegar um objeto, em arrumar a cama, sair do chuveiro ou entrar em forma, era punido pelos sargentos e oficiais com flexões de braço ou com “cangurus”, movimento em que, dedos entrelaçados na nuca, tínhamos de descer e subir, alternando as pernas. Não se tratava de sadismo, eu sabia: a agilidade de reflexos poderia nos salvar a vida no campo de batalha. O último a entrar em forma era sempre punido, ainda que necessariamente sempre tivesse que haver um último. Tudo isso é para o nosso bem, eu me consolava.

O problema é que o tempo de Jones não era o nosso. Custava a entender o que se esperava dele. Gestos lentos por natureza e por cultura, era alvo da irritação, fingida ou verdadeira, de oficiais e graduados, o que só contribuía para que ficasse ainda mais aturdido, cometesse mais erros. Tornou-se o campeão em nossa Companhia de flexões e cangurus, o que estimulava os homens, mais tarde, a fazerem piadas sobre ele e a inventarem-lhe diferentes apelidos. Eles avaliavam que os homens do campo, por sua lerdeza, são todos uns pamonhas. Mas eu, depois de passar uma temporada numa fazenda, sabia por experiência própria que sua natural lentidão embutia profunda e inata sabedoria: é que no mundo rural os trabalhos são tão pesados e as distâncias a percorrer sempre tão grandes, que se eles executassem suas tarefas na velocidade a que nós citadinos nos habituamos, tombariam em breve de exaustão.

Um dia o tenente Porrada, como havíamos apelidado o tenente Anderson, num sintoma claro de que nossos superiores estavam sempre nos avaliando e conversando a nosso respeito, o advertiu, meio rindo:

  – Jones, se molengas tivessem penas, você seria um peru.

A partir daí meu novo amigo ganhou o apelido de Jones Peru, e era saudado por uma sinfonia de glu, glu, glus em falsete, sempre que entrava no alojamento. A sua revanche, involuntária, veio pouco depois, por ocasião de um exercício noturno no campo.

Tínhamos de penetrar rastejando num perímetro defensivo, percorrido por patrulhas armadas de lanternas. À medida que os atacantes eram achados no meio do capim, caíam prisioneiros. Nossos corações batiam com violência, a ponto que temíamos pudessem nos denunciar, quando os “inimigos”, atraídos por algum ruído, parados junto a nós, quase nos pisando, vasculhavam o entorno com o facho de luz e, para nossa incredulidade, não nos descobriam, na noite sem lua. Mas cedo ou tarde tínhamos de nos mover; e fomos caindo, um a um.

Quando por volta de uma hora da manhã os apitos dos oficiais assinalaram o fim do exercício, só três homens haviam conseguido entrar no perímetro. E um deles era Jones, ainda por cima o primeiro a atingir o ponto designado. Ou seja, no momento em que tínhamos de nos comportar mais ou menos como um bicho arisco e astuto, um felino capaz de enxergar no escuro, Jones, integrado em seu elemento, com a velha experiência de caçador, fora autor da melhor progressão individual de toda a Companhia, o que lhe valeu o primeiro elogio dos superiores em todos aqueles meses. Os sargentos não perderam a oportunidade para gozar com a nossa cara:

– Quem diria, hein: o matuto deu um banho em vocês, que se acham muito espertos!

O inverno chegou, recebemos ceroulas e japonas. Abandonar pela manhã a quentura dos cobertores tornou-se mais difícil; e com o acréscimo de cobertas a arrumação da cama demorava dois ou três preciosos minutos a mais, os lençóis, bem esticados, não podiam ter uma ruga, os cobertores por cima deles desenhando meias luas. Os atrasos matinais aumentaram e as punições começaram a ficar pesadas.

Certa manhã Jones demorou-se arrumando a cama e não teve tempo de fazer a barba. O sargento Clark não percebeu a sombra mais escura no seu rosto. A Companhia marchou batendo forte o pé no chão até o pátio cimentado, para a formatura diária do Batalhão. Depois da continência à bandeira comandada pelo toque de clarim, e da arenga do tenente-coronel Bonera, nós, posição de descansar, fuzil ao lado do corpo, cabeça erguida, aguardamos que o sub-comandante, major Clay, acompanhado de outros integrantes do Estado-Maior, percorresse as fileiras, examinando-as em busca da menor falha. A ansiedade subia dentro de nós nesse momento, por mais confiantes estivéssemos de que não tínhamos nenhum botão faltante no uniforme, de que as fivelas dos cintos faiscavam, e de que nossos coturnos podiam ser usados como espelhos. Até que o olho treinado do major detectou Jones na fileira do fundo, a dos baixinhos.

Encaminhou-se até ele:

 – Soldado, nome e número!

Jones apresentou-se.

 – Não fez a barba hoje, soldado?

 – Não fiz, não senhor.

 – E pode-se saber por quê?

 – Não tive tempo, senhor.

A tensão tomava conta de nossa Companhia, como se a falta de um se comunicasse de algum meio misterioso a todos. Até o capitão Brickman à testa de nossa unidade parecia mais rígido do que o normal.

A uma ordem do major, Jones saiu de forma. O sargento Stone o conduziu até um pequeno estrado de madeira situado ao lado do palanque, à frente da tropa. Um cabo recolheu o fuzil e o capacete do faltoso.

 – Não podemos admitir o menor desrespeito às ordens recebidas. E todos sabem que têm de fazer a barba todas as manhãs – declamou o tenente-coronel ao microfone – O soldado aqui ao lado, para exemplo da tropa, vai fazer a barba agora, na frente de todos.

Postado na fileira da frente, vento frio congelando o nariz, pensei aflito, porra, por que tanta rigidez? Sabíamos que na zona de guerra todo mundo cagava para regras e regulamentos: os soldados, cerveja grátis à vontade e ao alcance da mão, viviam bêbados, ou drogados, com a conivência dos superiores. Mas ali, longe dos combates, do medo e do horror, o que imperava era o rigor dos princípios, as etiquetas da caserna, o formalismo dos códigos.

Jones subiu no estrado. O cabo entregou-lhe um espelho de mão e uma navalha. Sem água ou sabão, nosso companheiro – sim, nesse momento mais do que nunca Jones era nosso companheiro, era cada um de nós, que se imaginava em seu lugar – começou a raspar a face, o queixo, o pescoço, fechando por vezes os olhos, torcendo a boca num rictus involuntário: era o castigo a que dávamos o nome de “barba seca”. O frio da manhã que corava os rostos deixava a pele sensível, tornava ainda mais difícil a raspagem, realizada em meio a um silêncio de igreja, como se ali não estivessem reunidos mais de 700 homens. Dava para ouvir a bandeira se debatendo. Os minutos se alongavam, aquilo parecia não ter fim.

Quando terminou, o rosto de Jones, que nunca me parecera tão ingênuo e juvenil, recobria-se de uma camada fina de sangue: um palhaço pronto para o picadeiro. Consegui perceber como seus olhos haviam se enchido aos poucos de lágrimas, de dor e humilhação. “Chega, está bom”, decretou o sargento Stone, que ao pé do estrado acompanhava a operação. Jones devolveu o espelho e a navalha, recebeu de volta o fuzil e o capacete, retornou às fileiras. Desfilamos diante do palanque batendo firme o pé no cimento, a formatura chegou ao fim.

No alojamento, o sargento enfermeiro secou com gaze e cuidado o rosto retalhado de Jones, passou uma pomada cicatrizante. Nesse dia pouco se ouviu a voz de alguém em nosso alojamento. Ao fim do expediente, ao nos recolhermos, a bagunça habitual foi substituída por uma estranha contenção, como se alguém houvesse morrido.

Se antes falava pouco, a partir desse dia Jones passou a falar só quando convocado, em geral monossílabos. Na mesa, mal tocava a comida. Os homens não mais o chamavam por apelidos ou faziam piadas a seu respeito. A cada momento alguém, puxando conversa, fingindo naturalidade, se aproximava dele para oferecer chicletes ou repartir uma barra de chocolate: Jones apenas sacudia a cabeça. Quando tentei falar com ele sobre Bolota e contei em voz alta para os soldados Perez e Smith, vizinhos de beliche, algumas façanhas do cachorro, “nem parece bicho, parece gente, vocês não acreditam”, não consegui qualquer envolvimento da parte de Jones, que parecia escutar minhas palavras sem ser atingido por elas.

Chegou por fim o grande momento do juramento à bandeira, quando oficialmente deixávamos de ser recrutas, para ser considerados soldados de verdade. Já havíamos feito a essa altura exercícios de tiro real, e mergulhado em estreitas trincheiras que blindados atravessavam velozmente, provocando uma fina chuva de terra sobre nossos corpos encolhidos no fundo. Ao longo daqueles meses participamos de patrulhas noturnas, aprendemos a instalar minas, a camuflar posições, atiramos de metralhadora e morteiro, transpusemos riachos pendurados em cordas, rastejamos sob emaranhados de arame farpado. Em longas marchas de até 35 quilômetros suportamos nas costas o peso de metralhadoras ponto 30, de placas-base de morteiro, capacete de aço nos amassando o cabelo, enquanto o suor escorria pela testa e nos queimava os olhos. Sob o sol que nos assava a parte posterior do pescoço, até fazê-lo parecer um naco de lombo mal passado, ou envoltos pela névoa fria da manhã, tomamos o rumo de horizontes que pareciam se afastar, enquanto bolhas rebentavam nos pés e frieiras esfarelavam a pele entre os artelhos: um caminhão na retaguarda ia recolhendo os estropiados, para vergonha dos fracos.

Dentro de dois dias embarcaríamos para um campo de treinamento, num Estado distante e quente, onde completaríamos nossa diplomação na arte de matar e morrer, antes da Grande Viagem. Muda excitação atravessava todos como uma corrente de eletricidade, nos deixava a boca seca e um vazio na boca do estômago. Só Jones, olhar perdido, parecia cada vez mais indiferente a tudo.

Nessa noite tive um sonho ou, pelo menos, pela primeira vez me lembrei de um sonho ao acordar: nós nos afastávamos pela estrada, em meio à noturna escuridão, iluminados pelos reflexos das chamas que consumiam nosso quartel.

Manhã de formatura festiva, ânimo inaugural, sentimento de aproximação de momentos decisivos, marchamos para o pátio cimentado: era a despedida do local que fora o nosso lar nos últimos meses. O capelão, equipado com uma Bíblia e ostentando a patente de capitão, nos abençoaria e às nossas armas. O general Taylor em pessoa estaria presente e uma banda militar executaria o Hino Nacional.

A tropa postou-se ante o palanque, onde o tenente-coronel Bonera conversava com outros oficiais à espera do general. Caniços metálicos, dois microfones de pedestal aguardavam as vozes de estímulo dos grandes chefes. À direita do palanque perfilava-se a banda, instrumentos no chão; à esquerda, via-se o pequeno estrado de madeira, palco da humilhação de Jones. Enfurecida como nunca, a grande bandeira tremulava no mastro. Posição de descansar, fazíamos o que um soldado mais faz, esperar.

E então, para surpresa geral, percebemos com o canto do olho Jones adiantar-se, passar por entre nossa formação, abandonando as fileiras. Caminhou em linha reta em direção ao estrado, num passo firme e decidido. Tomado de surpresa, o universo imobilizou-se. Os oficiais no palanque pararam de conversar, sem entender o que aquele soldado estava fazendo.

Meu coração disparou, meus olhos arregalaram-se: meu pobre companheiro havia enlouquecido? Eu só pensava na punição a que estava sujeito, por sua atitude fora de propósito.

Jones encostou o fuzil no estrado de madeira, tirou o capacete. Subiu no estrado, encarou a tropa por segundos. Todos os olhos estavam fixos nele. Puxou do cinto o punhal que recebêramos há pouco mais de uma semana e ainda assim demorou uma fração de tempo para que todos entendessem o que pretendia. E então ouvi o grito estrangulado de Ismael a meu lado, enquanto oficiais e sargentos próximos do palanque corriam em direção ao estrado. A voz do tenente-coronel Bonera soou com energia no alto-falante, em meio a um sussurro que ameaçava alastrar-se pela grande mancha verde:

– Ninguém se mexe. Silêncio!

Engoli o grito. Senti a vista embaralhar, o enjôo subiu forte do estômago. Achei que ia desmaiar, o sangue me fugindo; disse a mim mesmo que não tinha o direito de mostrar fraqueza. Agüentei firme, cabeça levantada. Eu agora era um soldado.

domingo, 1 de julho de 2012


Pastel

(Evelyn Grabin Herbstrith) 

Ele continuava comendo o pastel. Um daqueles pastéis sebosos, tipo de rodoviária, do tamanho de um prato. Mordida após mordida ele tornava-se mais e mais insaciável e o pastel parecia cada vez menos suficiente. A gordura pingava na mesa de plástico, essas da Pepsi-Cola, forrando-a como uma toalha gordurosa. Ela colocou a mão delicada na coxa dele e sugeriu:

- Amor, talvez a gente devesse conversar...

Ele a ignorou. Não de uma maneira bruta, ele não era assim, mas com um simples gesto da mão, que indicava que ele precisava acabar o pastel. Como se o pastel fosse uma espécie de digestor da conversa, era ele mesmo que sempre dizia que não se deve discutir de barriga vazia ou de cabeça quente... Se bem que de boca cheia também não era uma boa ideia. Ele seguia comendo o pastel em um alvoroço inacreditável – estaria ela passando vergonha até ali naquele botequim? - e, por isso, Amandinha contentou-se em juntar as azeitonas e ovos despedaçados e caídos ao redor do prato. Percebeu, olhando no olhar dele, diria ela mais vazio do que nunca, que ele não estava postergando a conversa, mas somente com fome.

- Tudo bem... – ela deu um risinho e finalmente concordou.

Quando ele terminou seu pastel (e como fora grande esse pastel), limpou as mãos em um “espalhanapo”, esfregou-as na calça, analisou-as brevemente e pegou as de Amanda com o seu jeito estranho e um pouco grotesco de dar carinho.

- Fala, Mandinha, estou pronto pra ouvir você.

- Bem... – ela pensou em fazer uma pausa dramática - faztempoqueeuvenhopensandonissomasvocêsabecomoeusoueunãoconsigoesconderascoisaspormuitotempoentãoeurealmenteacheimelhorelaborarumjeitodetefalarissosemmuitosrodeiossabeporqueeuseiquevocênãogostadissoe…

- Mandinha, fala.

Era sempre assim. Em casa tudo parecia extremamente coerente, enquanto ela repetia com a voz esganiçada as palavras em frente ao espelho. Uma auto-confiança bem peculiar, contudo, no fim das contas, ela acabava enrolando e criando todo um caso ao redor do que era totalmente trivial. Nem tão trivial assim, sabe como o amor é para os jovens, mas não custaria tanto a falar.

- Mandinha? – ele indagou-a com os olhos também, apertou as suas mãos como um estímulo para que falasse logo. Ela podia sentir o óleo ensebando suas mãos.

- Eu te amo!

As palavras saíram duras de sua boca, mais altas do que o planejado e talvez um pouco mais estridentes que o normal, e ela sentiu como se, naquele exato instante, a ligação entre os dois tivesse ficado muda, os créditos do orelhão haviam acabado – ou haveria o outro soltado o telefone?. Ela esperou alguma reação. Ele coçou a barriga por baixo da camiseta e manteve os olhos duvidosos mirando os dela. Ela esperava, no mínimo, que ele agradecesse se não fosse retribuir o sentimento, pois se ele apenas agradecesse ela poderia ir embora menos mal-amada e transtornada, precisaria comer menos chocolates, apenas uma caixa de bombons quem sabe.

Mas, e se nem isso ele fizesse? Ou se pior, recusasse todo amor que ela tinha para dar? Achasse o sentimento asqueroso... Ela já estava transtornada. Procurava não pensar nisso, sua mãe dizia que pensamento negativo atrai coisas ruins, que ela devia imaginar como se ele já estivesse falando que também a ama e talvez até escolhessem os nomes dos filhos naquela mesma noite.

- Nossa, Mandinha… – ele hesitou por fim.

- Sim? – ela pressionou esperançosa, quase como uma pedinte, enquanto era desconfortavelmente interrompida por um enorme ronco.

Então, aconteceu. De uma maneira inevitável, quando ele abriu a boca novamente tudo veio à tona. Tudo. O pastel e a carne moída e o ovo e a azeitona e a salsinha e uns respingos de óleo turvo. Assim, em cima da mesa, esparramados com a jura de amor de Amandinha. Ele não disse nada mais além daquele vômito um tanto quanto significativo... Mas também não precisavam mais palavras. Amandinha levantou-se, enxugou a borda da saia, deixando um borro marrom gosmento, e foi embora, engolindo, como um vômito que voltava-lhe ácido ao estômago - um refluxo, todas as palavras que havia dito.

terça-feira, 27 de março de 2012

Mesa de bar (Nanda Barreto)

Eu teria dito que largaria tudo, que mal me importavam aquelas pessoas todas conversando amenidades em volta da gente. Teria levantado e te olhado estridente enquanto todas as outras bocas calavam. Devia ter aproveitado o momento de sigilo absoluto, quando até o tilintar dos copos guardou silêncio pra te receber. Eu deveria ter ido até tua mesa onde você sorria aquele riso suave de já quem bebeu doses pares. Aquele riso inebriado, de boca escancarada, libertador das vontades mais dissimuladas.

Teus dentes no meu peito, eu ficava imaginando, enquanto te olhava pateta, a dois metros de ti. Devia sinceramente ter me atirado no teu colo logo quando tu chegastes. Ter te feito entender que eras meu. Mas eu já sabia. Sabia que a gente se amaria loucamente, que seríamos líquido noites inteiras. E sempre acordaríamos secos um do outro. Sempre querendo mais. Sabia de ti na minha cama. Das minhas roupas no teu armário. Dos meus cds confundidos nos teus. Dos livros que ninguém mais saberia de quem eram.

Eu intuía teu cheiro. Horas a fio numa atmosfera que só nos dois poderíamos compreender. Poesia, marxismo, lirismo, budismo. Psico isto e aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou grafia. E haveria tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de seio e pescoço. Sabia que tu terias ciúmes do meu ex-namorado. Que perguntaria se ele me amava tão bem quanto tu. Depois disso, brigaríamos e eu te taxaria machista, insensível, calhorda. Sabia que em seguida irias embora e levarias alguns cds meus ou teus. Sabia que voltarias. E que irias e que voltarias muitas e muitas vezes.

Vozes intermediárias anunciavam a noite em que eu te ligaria dizendo que não, iria me atrasar, não poderia te acompanhar naquele jantar na casa do teu amigo muitíssimo enfadonho de longa data. E te pouparia do adjetivo enfadonho por nada a mais do que esse cinismo hipereducado que a gente adquire para economizar o outro dos nossos pensamentos mais limpos. E, antes de desligar o telefone, te perguntaria se estava tudo bem. E tu dirias que sim, estava tudo certo. Uma resposta cansada e aborrecida, como se tudo o que esperasse de mim fosse a decepção. Como se eu te prorrogasse a vida.

Antevia o momento demasiado em que passado e futuro se tornariam carregados demais e esqueceríamos, eu e tu, de gozar o presente. Nos tornaríamos esquivos e evasivos como toda a gente. E criaríamos a defesa. Emergiriam as culpas. Supus as amarras. E nossa ânsia paralela de desviar. Fugir das cortesias sem apreço. Dos abraços sem calor. Dos talões e cartões. Do crédito. Do débito. Das contas. E tantas outras correntes.

Já atinava minha insegurança diante do teu poder de fazer interesse nos outros. Teu amor inseduzível. E eu sofreria tanto. Choraria no teu peito. E seria menina de novo aos domingos no parque contigo. Previa os prazeres. As delícias a dois. A velha cegueira da verdade única. Sabia exatamente o que de haveria de vir. Em nome da razão, mesmo sem perceber, tiraríamos proveito da fraqueza um do outro. E enumeraríamos cada um dos nossos defeitos, didaticamente.

Segunda-feira, a gente ali no bar. Dois metros ou cinco segundos de ti. Distante uma palavra do nosso futuro amor. Prestes ao que fosse. Eu realmente teria dito que mal me importava aquela gente toda, teria me lançado nas tuas mãos vazias de mim. Eu teria dito que largaria tudo. Mas quis nos livrar do perigo. Achei melhor não. Longe de tudo, pedi mais uma dose sem gelo, caprichei no katchup da batata frita e fiquei lendo teus lábios, enquanto percorria meus medos.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O stripper (Mariano Mendonça Neto)


O meu negócio é tirar a roupa. Ficar de sunga e escancarar os dentes para as coroas. Tudo é feito de maneira profissional. Gilete para depilar e academia todo o dia. Não gosto da depilação, mas é o meu trabalho. Dostoievski entenderia. Leio sempre o mestre russo. Entre uma e outra apresentação avanço nas páginas de seus romances. Reconheço que minha classe é de iletrados. Homens toscos. Embrutecidos pela musculatura avantajada. Dependemos desta estética apolínea. Trabalhamos com o olhar, com o desejo, com o imaginário das pessoas. Sou free lancer. Faço shows em casas noturnas e atendo na casa das clientes. Antes das apresentações, um banquinho de cozinha me basta. Fico ali, vestido de comodoro, de índio apache, de bombeiro, lendo os romances, esperando para entrar em cena. Minha vida profissional de stripper começou por acaso. Trabalhava numa destas livrarias de shopping. Nos intervalos fumava um cigarrinho, lia um livro. Daiane, minha colega, fazia o mesmo. “Olha, Paulo. Presta atenção. Os caras escreveram demais. É muita ideia, muita sacanagem. Não dá para ler tudo de bom que foi escrito. Escolhe só o filé mignon. A carne de pescoço, o Sidney Sheldon deixa no balaio.” Assim foi feito. Às vezes eu pisava na bola. Daiane me encontrava com um Paulo Coelho, com um Dan Brown. Aí eu tinha que ouvir. “Porra, eu já falei. Lê os russos, os franceses, os caras que cagam grosso.” Daiane havia conhecido um professor universitário que a iniciara na grande literatura. Se o professor comia? Eu não comi. Mas graças a Daiane meu vocabulário aumentou. E foi também graças a ela que pude desenvolver minha arte. Estava no almoxarifado, coçando o saco, lendo “Crime e Castigo“ quando Daiane me perguntou: “Paulo, você vai quebrar um galho para mim. Tirando esse monte de cabelo do seu peito, você serve. Tem o tipo apropriado para o serviço.” Nesta época, eu estava matando cachorro a grito. Recebia o salário da livraria que quase não pagava o aluguel da pensão. Daiane fazia bicos de vez em quando. Trabalhava de garçonete ou recepcionista em feiras agrícolas. Sabia o caminho das pedras. “Olhe, Paulo, eu vou te dar um endereço. Você vai fazer uma substituição. O cara adoeceu, pegou uma pereba no tico. Estão precisando de alguém com o teu porte. Alguém com músculos e alguma iniciativa. Vai lá que acaba entrando um trocado.” Imaginei logo o tapete vermelho estendido, pessoas agitadas na fila e eu duro que nem uma estaca, fazendo a segurança de um bar. Mas a encrenca era maior. “Pensa bem, Paulo. É só tirar a roupa e fazer cara de gostoso. Um bando de mulheres insaciáveis querendo se divertir. É só isso.” Eu quis ponderar sem muita convicção. “Eu sou um pouco tímido. Não sei se levo jeito para a coisa.” “Paulo, é pegar ou largar. Tem uma grana boa.” Peguei o endereço e li: “Rua das Acácias 98. Falar com o Baixinho.” Perguntei ainda para Daiane se eu tinha que levar alguma roupa especial, vestir algo mais adequado. “Não, Paulo. A jogada é ficar nu. Entendeu? Nu, porra!” Terminado o expediente, peguei o ônibus e me acomodei no fundo. Fiquei observando as pessoas. Seus silêncios, suas dissimulações. O velho russo gostaria de sentar a bunda no plástico, numa temperatura de 40 graus e eviscerar a alma dos homens. Dostoievski era batuta. Sua narrativa caótica, seus personagens desesperados, sua religiosidade inalcançável eram também ferramentas de um stripper. Uma espécie de stripper da alma humana. Um revelador, um exibicionista do melhor e do pior do espírito humano. Mas, ali, naquele momento, era o suor bruto que se revelava. E um ou outro espertinho dando uma coxeada nas balconistas e estudantes que voltavam para casa. Consegui ler mais algumas páginas do romance antes de descer na parada. Fui caminhando tranquilo pela rua. Eu conseguira dar uma lavada nas axilas e renovara o desodorante. Para enganar a torcida. Estava anoitecendo e não foi difícil encontrar o endereço que Daiane me dera. Uma luz forte iluminava o painel onde se lia “Lady’s Club”. No guichê, uma velhinha de cabelo azul tricotava algo. Levantou os olhos, que também eram azuis, e perguntou: “Trouxeram a cidra? Não vão me quebrar as garrafas. Eu esperava vocês mais cedo. É pelo corredor ao lado. Cuidado com o cachorro!” ”Sou o substituto. Foi a Daiane quem me mandou.” “Baixinho, o rapaz que veio substituir o Marcelão chegou.” Logo a porta se abriu e um sujeito que parecia um halterofilista em miniatura surgiu na minha frente. “Está atrasado. Entra logo que eu tenho que explicar o nosso esquema.” Entrei no salão e o Baixinho me puxou pela manga. Era um bar com mesas e cadeiras. Estavam dispostas ao redor de uma passarela que partia de um pequeno palco ao fundo. Caixas de som estavam estrategicamente localizadas pelo salão. Uma escadinha dava acesso à passarela. Baixinho subiu com dificuldade, mas subiu. “Presta atenção, pois não tem mistério. Hoje a função é para despedida de solteira. São meninas de família, pessoas educadas, distintas. Vai tirando a roupa devagarzinho, com manha, vaselinando no olhar. Dá uma requebradinha e tira uma perna da calça, dá outra requebradinha, tira a outra. Botão de camisa é mais um detalhe. Ajoelha e oferece o botãozinho para as clientes abrirem. Porra, esse teu peito tem cabelo prá caralho. Parece um urso!” Cheguei a me examinar. Estava lendo um romance forte, denso. Nunca se sabe. Mas estava tudo igual.

Passamos pelo palco e entramos naquilo que poderia ser chamado de camarim. Três sujeitos conversavam animadamente. Baixinho fez as apresentações e continuou o seu curso rápido para stripper. “Tocou a música e já entra dançando. Não raciocina. Entra rebolando, sem afobação. Vai se soltando aos poucos, sem pressa. Vocês entram juntos na primeira música, depois vem o número solo. Aí tira tudo, cueca, sunga, lente de contato, o que for. Ô Luizão, alcança aí a roupa de gladiador romano.” O Luizão era um cara alto, forte, com uma barba que lembrava o Falcon. Abriu o armário e puxou lá de dentro um cabide com umas tiras de couro. Era o equipamento de gladiador. Baixinho pegou a fantasia e a avaliou por instantes. “Vai funcionar. Essa aqui é para o primeiro número. O smoking, ali na cadeira, é para a apresentação solo. Vamos arrebentar essa noite.” Peguei o cabide e comecei a me fantasiar de stripper. Os outros dois caras vieram me oferecer um gole de cachaça. Partilhavam uma garrafa que já estava pela metade “Caralho, ô meu. Repara nesse peito, Gledson. O cara é um porco-espinho!” Gledson fez uma cara de espanto. Pegou um frasco que estava no armário e me entregou. “Coloca essa loção na pele, no corpo todo. É loção de amêndoas. É para dar um brilho debaixo da luz. Não vai me gastar todo o frasco.” Logo percebi o movimento frenético do salão. Nossas freguesas começavam a chegar. O ruído era intenso. Foi Luizão quem tomou a iniciativa. Pediu para que déssemos as mãos em círculo. Uma pequena oração foi feita, quase que sussurrada. Havia entrega e concentração naquela modesta homília. Instantes depois já estaríamos nus, plenamente nus. A corrente se fortalecera. Estávamos prontos. O Baixinho voltou e fez a sua última recomendação. “Olha, o troço não tem segredo. Faz o que eles fizerem. Vai imitando o Luizão. Olha para o público e ri, ri muito. Na hora do smoking, abusa um pouquinho mais. Provoca que vai abrir e não abre. Prá arriar as calças também. Não entrega o ouro de cara. Vai arriando com classe, com estilo.” Foi então que comecei a refletir um pouco. Meu desejo era entrar logo naquele salão, tirar a roupa e sair correndo com a grana no bolso. Sem muita frescura. Apenas entrar e ficar nu. Mas logo eu descobriria a arte de tantalizar. Soltar a isca com paciência. Cultivar o olhar alheio através de um encantamento sinuoso, uma hipnose lasciva que promete, mas não realiza. É duro quando se é jovem. Há tanto para se aprender. E logo eu aprenderia, digamos, na carne. Começamos a ouvir a voz do Baixinho no sistema de som. Fazia as primeiras apresentações e garantia uma noite inesquecível. Uma despedida de solteira sem voltas. As freguesas gritavam, batiam os pés, assobiavam com força. Eu sabia. A partir dali, não tinha volta. Eu estava enrascado. O sistema de som largou a primeira música. Entramos os quatro no palquinho balançando as bundas no ritmo acelerado. Entrei por último e acabei ficando na ponta direita, jogando recuado. Fui seguindo a rapaziada, embromando ali com as tiras de couro. De vez em quando, um de nós avançava na passarela e rebolava um pouco. Tirava o traje de combate e ajoelhava no milho. Ficava ali fazendo biquinho para as freguesas. Um ou outro trocado era enfiado na sunga. Peguei logo o jeito. Avancei decidido pela passarela e encarnei o gladiador romano. Era comigo mesmo. Já fui tirando o saiote, o dólmã de couro e se tivesse lentes de contato tirava também. As freguesas deliravam com a minha performance. Comecei a inventar novos passos de dança. Ampliava o movimento dos quadris e oferecia o sexo com impudica irresponsabilidade. Os gritos aumentavam a cada passo, a cada provocação que eu fazia. Consegui ouvir o Baixinho no microfone. ”Pode tocar, mas não arranca pedaço! Esse é o fabuloso elenco do Lady`s Club! Artistas renomados, com experiência internacional.“ Fomos para o camarim e logo vesti o smoking. Na minha vez, já entrei esparramando as pernas, gingando com malícia e estendendo as mãos para as clientes. Baixinho estava na plateia, ao lado da garota que se despedia dos bons tempos. O mestre de cerimônia usou o microfone de novo. Pedia que eu descesse até eles. Queriam minha presença ali, bem pertinho. Desci pela escadinha e me aproximei da garota. Fui fazendo um gingado malemolente, bem debochado. Cheguei perto e lasquei um beijo na boca. Um beijo bem molhado. E ainda ofereci os botões da camisa para que fossem violados. Logo tinha mais gente em volta metendo a mão. Queriam mesmo era arrancar um naco do bacana aqui. Não tive dúvida. Puxei a garota pela mão e a levei para a passarela. Lá em cima realizei os últimos movimentos de minha apresentação. Fiquei dançando nu, me esparramando em volta dela. Os aplausos vieram em seguida. Curvei-me ao estilo dos atores de teatro tal qual um menestrel desnudo. Desejei boa sorte à futura noiva e retirei-me de cena como um experiente stripper. Na coxia, Luizão esperava-me com um robe de chambre e uma taça de cidra. “Fez tudo certo, campeão. Já pode fazer parte da trupe.” Peguei a taça e fui para o camarim. Meus colegas se revezavam agora nas apresentações. Trocavam de roupa e voltavam rápido para o palco. Sentei numa poltrona toda esburacada por pontas de cigarros. Fui relaxando até que acabei tirando uma pestana. De repente acordei e vi Baixinho diante de mim. “Foi bom. Se quer continuar, vai ter que usar um Presto Barba nesse peito. Vamos lá, rapaz. Todo mundo já foi embora.” Puxei um cigarrinho e fiquei ali fumando, pensando na vida. A noite fora lucrativa e isso me bastava. A velhota do cabelo azul apareceu de repente. Estávamos sozinhos no teatro. “É uma pouca vergonha! Com o troço todo para fora! Essa juventude não respeita mais nada! Veste, veste logo a calça e vai embora.” Vesti minha roupa e deixei a velhota cacarejando no meio das fantasias. A noite estava quente e soprava uma leve brisa. Eu tinha recebido o suficiente para pegar um táxi. Levantei o dedão e o carro estacionou na calçada. Sentei ao lado do motorista e dei as coordenadas. O taxista queria conversa. Falava das manchas solares, dos mistérios da superfície de Marte, da teoria do caos. “E aí os caras dizem que até um prego pode mudar toda a tua vida e...” Fez uma pausa para frear diante do semáforo. Aproveitei e perguntei: “Você quer ouvir uma boa história?”. O taxista silenciou. “Bom, é sobre um cara que mata uma velhota. O cara é bom, sabe das coisas. Mas ocorre um lance que ele não tinha previsto. O nome dele é Raskolnikof e ele não tinha medo.”

terça-feira, 3 de maio de 2011

A tulipa descartada (Guilherme Bica)

Descia as escadas da redação com a pressa de quem deixou para trás quatro provas de páginas ímpares e pares para revisar. Uma amiga dela me avisara que ela queria falar comigo, queria acertar tudo, saber se era isso mesmo, se tinha acabado daquele jeito, se já era o fim. Eu passei pela porta do prédio, ganhei a rua e vi Carmela sentada num daqueles toscos exemplares de mesa metálica que normalmente pertencem a botecos malcheirosos, mas ali preenchia a calçada em frente a uma sorveteria. E aquela imagem tão insólita de uma guria tão linda como Carmela recostada num objeto de invariável natureza ordinária, que dava sinais de gasto e perdia a cor branca nas laterais para denunciar a verdadeira pele de um cinza metálico escuro, aquela imagem me causou de pronto uma vulgar estranheza inicial.

Juntei-me a ela, puxando uma cadeira de uma mesa vizinha, e tentei um Oi para avaliar se me respondia. Ao que Carmela suspirou algo que não compreendi e obrigou-nos silenciosos por alguns segundos. E aquele silêncio poderia calar todos a nossa volta: os taxistas narradores de piadas obscenas, o cara engravatado da revenda de automóveis que anunciava a promoção do dia e até o carro de som num volume anormal que convidava a todos para a festa de sábado no clube.

E aí, eu perguntei pra ela, e aí ela sorriu aquele sorriso irônico que só ela sorri, mesmo que com quinze anos poucos saibam o que significa ironia, e me despejou uma centena de lamentos do tipo Tu não tava comigo?, Eu achei que a gente estava começando a se entender, mas agora já não sei, O que tu quer, afinal?, Tem que escolher!, Eu não vou dividir ninguém!, A gente parecia bem, e o tom agressivo foi minguando à medida que ela começou a encolher os lábios para não chorar e eu não me lembro das outras reclamações pertinentes de Carmela, só recordo que tentei pegar em sua mão e fui repelido rapidamente.

Ela voltou a ficar muda e a única coisa que se movia nela era a franja bem aparada, dividida ao meio, expondo a testa e balançando pouco com o vento que não decidia se vinha ou ia embora. Parecia que só eu via a discrepância daquele relacionamento incipiente que não deveria vingar. Eu na faculdade, eu estagiando, eu tomando cerveja, vodca, uísque, eu lendo Neruda, Nassar, Faulkner, eu ouvindo Tom, Chico, Vinicius, eu vendo Glauber, Godard, Antonioni, eu distante tantos anos do colégio. Ela denunciada pela juventude da camisa verde e larga desenhada pelo brasão da escola que encobria o seio esquerdo, ela vestida com a calça preta do uniforme juvenil ainda no corpo, ela refém de toda aquela limpeza que nos tornava tão afastados, a limpeza na boca, nos dentes, nos braços, cabelos e até na voz.

Na volta da mesa da qual recendia uma tensão lúgubre e lúbrica ao mesmo tempo, as sete amigas de Carmela me julgavam e mimetizavam o sorriso irônico, mas sem a propriedade da boca verdadeira. E me deu uma vontade de contrariar tudo o que eu havia demonstrado sem palavras nas últimas semanas – as ligações não atendidas, as mensagens não respondidas –, e me ajoelhar ao lado de Carmela para pedir desculpas e dizer que ela era a mais bela guria que eu já havia conhecido, que eu não estava nem aí para eu ter vinte e quatro e ela nove anos a menos, que tudo daria certo daqui pra frente.

Mas não dava. E foi o que eu disse. Carmela, não dá! Sei que ela ficou surpresa. Porque aqueles olhos cor de tijolo claro e o corpo em sublimada adolescência e fulminado com justificada sede por todos os homens pelos quais ela cruzava – e ela alcançava a idade de tomar consciência disso – não estavam acostumados à rejeição. A minha feiúra discreta cometia a insolência de descartar a beleza de tulipa de Carmela. Ela se recompôs, amparada pelas amigas, e me disse Se mudar de idéia, me avisa, e aquela frase eu sabia que traria comigo por muito tempo ainda, tanto que estou eu aqui a escrever sobre ela, impelido talvez por uma esperança ingênua de que um dia ela leia estas linhas e reflita na pele de um espelho honesto com sua beleza aquele mesmo sorriso limpo e irônico, mas agora com outro sentido, mais autônomo e consciente.

Elas deixaram a sorveteria e encaminharam-se para a esquina, Carmela com os braços entrelaçados nas amigas. Ainda tive tempo de subir as escadas, correr até a sala de meu chefe e esticar o pescoço para fora da janela e vê-la sorrindo e me esquecendo, antes de sumir atrás de um ônibus que resolveu aparecer justo naquele momento inoportuno.