quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

O assessor (Guilherme Castro)

Antes de conhecer o doutor Herculano, meu ofício era tomar mate com halls na praça, todo santo dia. Acordava seis, seis e meia, punha a chaleira no fogão, limpava a bomba com um grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver o Bom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saía. Até a praça dava o quê?, quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls preto - gosto de chupar halls e tomar mate, dá um choquezinho dentro da boca que é bem bom -, daí tomava meu mate olhando o movimento. Quando não tinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, almoçava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava à praça. Tudo normal.

Defronte à Câmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, ali eu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sessão. Quando não tinha, assistia a chegada dos funcionários, dava no mesmo; importante importante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questão de ir de bicicleta pra Câmara – tá que o partido proibisse mostrar carro na frente da Câmara, mas ele que era exibido – me disse que o doutor Herculano queria gente pra Assessor. Não que precisasse de dinheiro, tenho uma casinha alugada que me basta, todo caso fui até o gabinete do doutor e perguntei sobre esse negócio de ser Assessor.

Fez uma cara de agora é que me lembro e me mandou ficar à vontade. Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate.

“Sabes bater à máquina, Brizola?”. Me chamam assim pelas sobrancelhas, sempre esfiapadas.

“Com um dedo, doutor”, fui sincero.

“Me conta das tuas experiências, então”, ele prosseguiu.

“Olha... Ultimamente tenho mais é tomado mate na praça, doutor.”

“Então és um AMH.”

“Sou?”

“Analista de Movimento Humano”, me explicou o doutor.

“Sim, claro”, achei interessante essa coisa.

“Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?”, pelo telefone, ele pediu à secretária, que logo apareceu com uma folha datilografada.

“Assina aqui, meu Assessor”, me disse ele, riscando um xis no pé da página

Termo de Posse, dizia.

Assinei.

“Agora espera que eu te chamo, tá?”.

Queria saber do salário, quanto era, mas como ele não tocou no assunto, e nem eu, ficou por isso.

Voltei à praça, tinha a térmica ainda pela metade, isso dava o quê?, cinco, seis mates.

*

Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci água, pus erva pra inchar, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor é Sidney Sheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito, oito e meia, saí. Tudo normal.

Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar à Câmara. Gritei: “Ô, chefe!” Com as mãos, me mandou esperar; o portão, que fechava sozinho, me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou Assessor, isso eu sou, pra mim papel assinado é o que conta. Segui tomando meu mate e chupando halls.

Por um mês, mais ou menos, eu gritei ô, chefe! quando via o doutor chegar à Câmara; e ele, com as mãos, me dizia: calma, Brizola!

Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dum incêndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui até o gabinete.

“Grande Brizola!”, me recebeu com festa. “Joice, traz uns coelhinhos, sim?”. A Joice trouxe. Três. Desenhou o mesmo xis no pé das folhas: Folha-ponto, dizia.

“Assina aqui, meu Assessor!”.

Assinei.

“E aqui.”

Assinei.

“Mais aqui”

Tudo assinadinho.

“Te chamo em seguida, fica tranquilo”, ele disse, e já me deu as costas.

Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei lá, alguma coisa. Então ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras: “fica tranquilo!”, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado é o que vale, e nesse dia assinei três coelhinhos.

*

Não sou de me queixar, mas teve a primeira vez. É que fim do mês recebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salário; conseguia me manter o quê?, vinte, vinte e um dias, nem isso.

Fui ao gabinete.

“Tá me faltando erva, doutor”, desembuchei, todo corajoso. Foi mais fácil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um dias folgado; a partir daí, mês de trinta sobrava o quê?, um pacote inteiro de erva. Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei.

O gravador eu já tinha, um portátil da Gradiente; o crachá, mandei imprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor embaixo, num canto a minha foto três por quatro de terno e gravata. A partir daí, se perguntassem qual era o meu ofício, eu respondia: sou Assessor do Doutor Herculano, e ainda mostrava o crachá pra quem não acreditasse.

*

Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar a Pelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos. Missão de Estado.

Cueca, meia, camisa, calça de brim, japona, três ou quatro potes de Minancora – pra mim, desodorante é Minancora -, joguei tudo na mala; a mateira já carregava, e o crachá: raramente tirava do pescoço.

“Mando teu salário pelo ônibus, fica tranquilo”, me disse o Beto.

Fiquei mesmo.

Entrei no Embaixador. O ônibus não passava de oitenta, isso dava o quê?, três horas, três horas e meia até Pelotas. Ultrapassado o pórtico de Canoa Branca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindo de se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofício, ter de sair de lá, eu que só deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avó de Camaquã e fui dar em Jaguarão. Todo caso, vida de Assessor é assim, dura, devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, começava eu a sonhar e um piparote do cobrador me acordou.

“Já estamos chegando?”, perguntei, meio dormindo.

“Vai pra onde, Brizola?”

“Pelotas”, respondi.

“Nem do Taim passamos”, ele respondeu. “São vinte reais”.

O doutor havia me dado o quê?, cem, cento e vinte, mais umas quantas bolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigência minha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo.

*

Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodoviária é uma quantidade de táxi esperando, realmente, que tu pague uma fortuna pra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saí a pé e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado à rodoviária, bem bonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a café da manhã e tudo: pão torrado, café preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte, e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados à Baronesa, proprietária e moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do boxe, por segurança. E fui dormir com o celular preso ao elástico da cueca, também por segurança; pânico de cidade grande.

Seis, seis e meia, levantei. Crachá no pescoço, gravador com pilha nova que era pro relatório não desandar na minha primeira manhã pelotense. Não vi o Bom dia Rio Grande - no Naite só tinha rádio -, tomei café, iogurte, e escondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei à Baronesa onde era a praça da cidade.

“A mais próxima?”, me perguntou.

“Ah, tem mais de uma...”

“Olha, daqui? Umas doze quadras”.

Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira.

Resolvi relaxar.

Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate. Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. “Posso?”, perguntou. E eu vou negaciar? Sevei um mate pra ela. Dia seguinte sevei outro. Fui sevando, sevando, todos os mates que ela pedia eu sevava. Às vezes colocava capim cidró na térmica, só porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecido vendo é a conta; porque pra mim, mate, só com halls. Mas tinha uns olhos puxados, a Baronesa, tinha uma boca graúda ela, uma bunda que me segurava pra não beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhor e, no decorrer do quê?, mês, mês e meio, já chamava ela de Barô, só Barô.

Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, é inevitável isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatórios em pastinhas: por turno, dia, mês, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frente do Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampear cartões de visita nos recibos dos hóspedes, que, aliás, eram praticamente dois: seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu.

Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porão do Naite. Duas, três pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa na parede, cartões na praça, unidade pronta. Tirei então da cartola uns quantos coelhinhos pra Barô assinar.

“Que que é isso?”, perguntou.

“Fica tranquila”, eu disse, “é coisa séria”. Beijei a testa dela. Ela amoleceu e começou a assinar, um por um, como uma boa fêmea deve ser, obediente. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola. “Te ligo em seguida, minha Assessora”, disse, apressado, porque o Embaixador saía em quê?, uma hora, hora e meia no máximo. Saí a pé; táxi me nego.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Calma, já vai passar (Augusto Britto)

Tudo começou quando ele disse que tava com dor, mas acho que a própria vida já dói tanto que aquilo me passou despercebido. Tá doendo, tá doendo, ele continuava repetindo todo dia, e eu, com pena – um pouco dele, um pouco de mim mesma –, dizia: calma, mano, já vai passar, toda dor uma hora passa. Essa frase era repetida constantemente lá em casa. Sempre tem alguém sofrendo, e o tempo sempre passa pra sarar uma dor que não sara nunca. Mas até há pouco eu acreditava que a dor sumia, que a gente um dia ia ser feliz, e por isso continuava repetindo que já ia passar, como conforto pra mim e pra ele. Quando ele disse que tava com dor pela primeira vez eu achei que fosse a dor do filho que vê seus pais se separando, e – como irmã mais velha – eu tentei cuidar dele, dar amparo e carinho. Mas quanto mais eu abraçava o mano mais ele reclamava de dor, e eu ficava sem saber o que fazer, perdida diante de toda aquela situação. O pai e a mãe brigando constantemente, e eu tendo que cuidar do mano, sem saber nem cuidar de mim mesma, que tinha tantas outras preocupações; mas eu tinha que esquecer de tudo, eu sabia, e proteger a gente como dava. Eu reparei um dia em um quadro que ele tinha posto no nosso quarto, e perguntei o que que era, e ele respondeu, é uma foto da Austrália, mana, o irmão do Pedrinho tá lá agora, é bem longe daqui e é tri bonito, e eu olhei pra ele e percebi o quanto ele tava sofrendo com tudo aquilo, como ele tava tentando fugir de tudo de todas as maneiras, e ele continuava, será que um dia a gente vai poder ir pra lá, mana, será que lá o pai e a mãe vão conseguir parar de brigar?, e eu fiquei sem reação; quis dizer o que eu achava, que tem coisas impossíveis, que tem lugares – e sonhos – inalcançáveis, mas silenciei; não podia falar isso pra ele, eu tinha que cuidar dele e dar esperanças, por isso eu respondi, um dia a gente pode ir pra lá, mano, não sei se a mãe e o pai vão, mas eu te prometo que um dia eu te levo pra lá. Eu abracei ele forte, como única coisa que eu podia fazer, e ele de novo repetiu a reclamação, tá doendo, mana, tá doendo muito, e eu, já sem voz e soluçando, disse, vai passar, mano, tudo passa. A gente sempre foi muito unido, mas naqueles últimos tempos a gente tava muito mais próximo, porque ficava sempre nós dois sozinhos, abraçados, enquanto o pai e a mãe brigavam, e eu tentava tapar o ouvido do mano ou falar qualquer coisa pra ele não ouvir nada, mas eram gritos muito altos da mãe, eram berros incessantes do pai, e a gente ficava ali, sofrendo, sozinho. Nossa amizade se intensificava a partir do sofrimento que aumentava e aumentava e não parava nunca, apesar da frase sempre latente de que a dor passa, e que tudo ia passar. Quando o pai e a mãe começavam a discutir sem parar eu levava o mano pra passear, a gente ia no cinema, tomar sorvete, caminhar, só pra tentar fugir um pouco daquilo tudo, mas nunca dava pra fugir, ele sempre perguntava por que que isso tava acontecendo, por que o pai e a mãe tavam brigando tanto, e eu nunca sabia o que responder. E ele cada vez mais falava que tava doendo, e eu me irritava, porque tava doendo em mim também, mas eu tinha que ser forte e aguentar por nós dois, porque eu era mais velha e me sentia responsável. Mas minha força era abraçar ele e tentar não chorar, pra depois chorar sozinha e sofrer sem ter ninguém pra me ajudar, porque a mãe tava já sofrendo muito com a separação, e não queria saber de ninguém, muito menos do pai, aquele filho da puta que me traiu todos esses anos, ela dizia, e me deixou aqui tendo que cuidar de vocês sozinha, mas eu já tinha idade pra perceber que não era bem assim, que ela não tava cuidando da gente, que na verdade eu tava sozinha com o mano e a gente era quem mais sofria por causa de tudo aquilo. E no final de todos os dias era assim: eu e o mano chorávamos sozinhos e unidos, ouvindo a mãe gritando do quarto ódios pra sala e pro pai, que mandava ela calar a boca e dormir, porque no outro dia ele ia ter que acordar cedo e trabalhar pra sustentar a gente, e a resposta da mãe ele nunca ouvia, porque era uma resposta doída em lágrimas e gemidos, e porque o pai nunca foi bom em ouvir o que se fala baixinho. E o mano sempre antes de dormir repetia, tá doendo, mana, tá doendo, e eu às vezes fingia dormir e não respondia, outras vezes abraçava ele, porque achava que isso era só o que eu podia fazer. Eu me sentia tão impotente e abandonada e infeliz e confusa que não me dei conta de que eu podia fazer alguma coisa. Mas logo eu, uma guria de dezessete anos, que sofria tanto com tudo o que tava acontecendo, que tinha que pensar no que eu ia fazer da vida, em como passar em medicina no vestibular, em como me ajudar, tinha que ajudar o mano, dar carinho pra ele, e ainda mudar alguma coisa? Não tinha como eu mudar nada. Já tá dormindo, mana?, ele me perguntava, e eu ouvia que ele não conseguia não chorar, mas eu não falava nada: queria dormir, queria estar dormindo. Mãe, o mano tá com dor, ele não para de reclamar, eu falava pra ela no almoço, o único momento em que eu podia falar com ela, mas eu ouvia sempre a mesma resposta, agora não, eu acabei de acordar, tou com dor de cabeça, outra hora a gente conversa. Era fácil pra ela falar aquilo, não era ela que ouvia ele reclamar o dia inteiro de dor, não era ela que tava sofrendo por ver ele sofrendo, não era ela que pensava nele, que tinha que sair do cursinho no meio da tarde pra ir buscar ele no colégio porque ele tava com muita dor – assim eu não ia nem ter chances de passar em medicina, a mãe sabia, mas parecia que ela não dava bola, parecia que só existia ela e só ela que tava sofrendo –; não era ela que via ele chorando e não podia fazer nada, e chegava no colégio dele pra ouvir da diretora que ele tava com muita dor na perna, que era melhor levar ele no médico, eu, com dezessete anos, que tinha que estudar pro vestibular, buscar e levar ele no colégio, sair com ele, cuidar dele e ainda por cima sofrer, como é que eu ia fazer tudo isso?, mas a diretora não tava mais ouvindo, ninguém tava ouvindo, e o mano tava chorando muito, dava uma pena, e mesmo assim eu não podia fazer nada, e só naquele momento que eu olhei pra ele e vi que ele tava magrinho, que ele parecia tá sem forças. Por que tu não disse que a dor era na perna, guri?, eu perguntei irritada, mas depois me arrependi, porque o coitado do mano tava sofrendo muito, dava pra ver, e eu tinha que cuidar dele, e não colocar a culpa nele, e quando ele disse, porque eu não queria te incomodar, eu chorei e não soube mais o que fazer, porque vi que na verdade era ele que tava cuidando de mim esse tempo todo, e disse, desculpa, mano, eu vou te levar pro médico, tudo vai passar, tudo passa, daqui a pouco tu vai tá bem de novo, tudo vai dar certo, mas eu falava aquilo sem convicção nenhuma, porque eu aos poucos tava me dando conta de que talvez a dor não passasse nunca: que talvez a vida fosse mesmo doída desse jeito, pra sempre. A gente chegou em casa e o pai e a mãe tavam brigando, mas o mano era mais importante que a briga infinita deles, por isso eu tentei interromper, disse, mãe, pai, mas eles me mandaram calar a boca, disseram que era pra gente ir pro quarto ou sair de casa, pra eu levar o mano pra algum lugar, mas eu disse que não dava – eles não queriam ouvir –, não dava – eles não queriam ouvir –, não dava, e eu já tava quase chorando quando eles perceberam que tinha alguma coisa errada, e eu falei gaguejando que o mano tava com dor, que algum deles ia ter que nos levar pro hospital, e eles fizeram silêncio quando eu disse essa palavra. Dava pra ver que eles não sabiam o que fazer – acho que eles nunca souberam o que fazer. Eu levo vocês, o pai disse, tá tudo bem contigo?, ele perguntou pro mano com uma indiferença que me assustou, e aquilo tudo me doía cada vez mais, especialmente quando o mano respondeu tranquilamente, tá, pai, se tu não quiser me levar agora não precisa, pode acabar de conversar com a mãe, não quero atrapalhar vocês, e aquela consciência e lucidez do mano me atordoaram, e eu olhei com nojo pro pai e pra mãe e não soube de onde ele tinha tirado aquele respeito, porque eles nunca tinham pensado senão neles mesmos, e eu senti asco quando o pai respondeu, não tem problema, vamo lá, a conversa com a tua mãe já acabou, como se só por causa da incomunicabilidade dos dois ele ia ser pai e pensar na gente. No carro eu fui atrás com o mano, como se o pai fosse só o motorista mesmo, como se fosse só nós dois no mundo e a gente fosse enfrentar tudo sozinhos – sempre sempre sozinhos –, mas apesar da solidão eu já me sentia melhor, a gente tava indo resolver aquele problema, e quando o mano colocou a cabeça no meu peito e disse baixinho, pra que só eu ouvisse, tá doendo, mana, eu abracei ele com amor e respondi, calma, mano, a gente tá indo pro médico, ele vai te curar, tudo vai passar, já, já, repetindo sempre a mesma ideia desgastada, mas que naquele momento me pareceu – mais do que nunca – verdade, e deve ter parecido pro mano também, porque ele deu um sorriso, e a gente ficou ali, sabendo que tudo ia passar, que a dor ia enfim passar. Quando a gente chegou no hospital, o pai foi direto falando que queria um médico, porque o filho dele tava com muita dor e não podia esperar mais, e eu fiquei pensando se era o mano que não podia esperar mais ou ele que queria que tudo acabasse logo pra poder voltar pra casa de uma vez. É só preencher a ficha e aguardar, a mulher disse, e eu logo entendi que quem ia preencher a ficha era eu, e o pai falou mesmo, preenche essa ficha que eu vou no banheiro, filha, e se virou pro mano e passou a mão na cabeça dele e disse, pode ficar tranquilo, filhão, o médico já vai nos chamar, e saiu e deixou a gente ali, sozinhos. O ambiente era tenso, e eu comecei a ficar aflita, parecia que tudo exalava dor, e isso deve ter lembrado o mano da dor dele também, porque ele disse, tá doendo, tá doendo, e eu respondi que já ia passar, que eu ia preencher a ficha e o médico ia nos chamar a qualquer momento, que tudo ia ficar bem, só que dessa vez a ideia me soou ridícula e falsa, mas era a única que eu sabia e podia falar, e eu tinha que dar segurança pra ele, mesmo que eu me sentisse a pessoa mais insegura naquele momento, e eu disse, senta aqui, mano, eu vou entregar a ficha pra moça ali, e fui, enquanto o mano ficou quietinho, e quando eu virei pra trás me deu uma pena de ver ele sozinho e corri pra poder voltar logo pra ele, porque ele só tinha a mim, eu não podia decepcionar o mano, eu tinha que cuidar dele, e eu voltei e abracei ele, e logo depois o pai voltou, e depois mais o médico nos chamou, e eu tava agoniada com aquele hospital e aquela gente doente indo de um lado pro outro, e a minha vontade foi de ir correndo, mas o mano tava com dor, por isso a gente foi devagarinho, e eu falei como que falando pra mim mesma, não precisa ter pressa, se for pra ficar bem a gente pode esperar o tempo que for, não tem problema, mas não tava tudo bem, eu sabia, e o médico examinou o mano e disse que ele ia ter que fazer uma radiografia pra ver o que que tinha acontecido, e eu acompanhei ele, sempre em silêncio, eu e ele, e o pai ficou perguntando sem parar coisas inúteis pro médico – acho que foi só naquele momento que ele se deu conta de que tinha um filho e que ele tava doente. O mano fez a radiografia e a gente ficou sentado esperando o resultado, sem saber o que esperar, e eu tava com muito medo, e abraçava o mano, eu e ele sentados, e o pai ali, de pé, e eu percebi que ele tava louco por um cigarro, mas agora devia tá com vergonha de deixar os filhos sozinhos, tava andando de um lado pro outro, como que um acompanhante somente, um motorista, porque a dor não tava nele, ele tava sofrendo só agora, a dor tava no nosso abraço, no mano, na perna do mano, mas já ia passar, já, já, ia passar, só que ele não me perguntava mais e eu também não falava nada – o silêncio como um pacto, espantando o que não se quer ouvir. O médico nos chamou de volta, agora com a radiografia, e eu entrei na sala apavorada, e acho que o mano percebeu, porque ele apertou forte a minha mão e disse, agora a dor vai passar, mana, a gente vai voltar pra casa, mas logo quando a gente se sentou eu vi na cara do médico que não tava tudo bem, e quando eu vi uma radiografia, mesmo sem entender nada do que ali era mostrado, eu soube de imediato que as coisas não iam passar, que o mano ia continuar sentindo dor, e quando o médico falou em tumor eu fui fraca e chorei, e o mano, que não tava entendendo nada, disse, calma, mana, calma, e eu me senti pior ainda, porque era ele que me amparava e cuidava de mim de novo, e o pai perguntou, como assim tumor, doutor?, câncer?, e o médico respondeu que sim, que a princípio era o que mostrava a radiografia, que o mano ia ter que ficar ali internado pra no outro dia já fazer uma biópsia pra comprovar e ver com qual tumor especificamente o mano tava, porque não dava mais pra perder tempo, e eu ouvia aquilo tudo com dor, era uma notícia doída, e eu fiquei muito preocupada com o mano, porque ele não tava entendendo direito que que tava acontecendo, mas eu não podia explicar pra ele, não podia dizer, mano, tu tá muito mal, não, eu tinha que ser forte e passar confiança pra ele, mas já não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer nada. Por mais absurdo que pudesse parecer nos falaram que a gente tava com sorte, porque naquela noite tinha um quarto vago pro mano ficar. O pai tava completamente atordoado, não sabia o que fazer, e eu ia resolvendo tudo enquanto ele ficava feito um abobado do meu lado, e já no quarto eu me irritei, pai, liga pra mãe e avisa tudo pra ela, vai lá fora que aqui pega mal o celular, eu queria era ficar a sós com o mano, e o pai foi correndo, certamente louco pra fumar um cigarro e pensar no que tava acontecendo, e foi bom, porque ali ele não ia ajudar em nada, e pelo menos ele se dava conta do problema do mano, e a gente ficou sozinho ali, e eu não sabia o que falar, até que o mano falou, relaxa, mana, a dor já tá diminuindo, e era ele de novo cuidando de mim, eu não podia admitir isso, e eu dei a mão pra ele sem saber como ajudar, como amparar ele, eu, tão angustiada com aquilo, e só consegui dizer, desculpa, mano, e ele ficou em silêncio, e eu chorei naquele quarto de hospital que me sufocava, que nos sufocava, e o mano chorou também, e éramos nós dois, sozinhos, chorando diante daquela situação cada vez mais doída, e ficamos nós dois um esperando que o outro dissesse o que nós dois queríamos tanto ouvir mas ninguém dizia: nada passava, nada ia passar, e a gente tinha medo dessa certeza, e o pai logo depois voltou com a mãe, e os dois entraram chorando e abraçando o mano, e eu imaginei uma cena em que dois pais disputam amor em beijos e abraços, querendo cada qual se mostrar mais doído com a dor do filho, se importando sempre com aquela briga que não acabava nunca, enquanto o mano – e eu chorava só de pensar nisso – talvez acabasse, e como era injusto tudo aquilo que acontecia naquele quarto, e eu me irritava e queria logo que eles fossem embora e nos deixassem os dois ali, como sempre sozinhos, e eu odiava eles naquele momento, colocava a culpa de tudo neles, que tinham me impedido de ver tudo antes, mas também sentia uma culpa doída em mim e pedia desculpa, desculpa, desculpa pro mano sem dizer, só apertando a mão dele e olhando bem no fundo dos olhos molhados de lágrimas dele, e aquele retrato era um retrato doído, cuja dor eu sabia que não se extinguiria nunca. Quando tava acabando o horário de visitas uma discussão se instalou no quarto – uma discussão que pela maneira com que era travada já há muito vinha sendo ensaiada: quem dormiria no hospital?, só que a resposta pra mim o pro mano era óbvia, não tinha como ser diferente, mas pro pai e pra mãe não, e parecia que a discussão não era só pra responder a pergunta, era pra responder quem era o melhor pai, mas o mano – com uma sabedoria que me deixou atônita – entendeu isso, e quis logo resolver tudo, não precisam discutir, eu quero que a mana fique, ele disse, e eles me olharam como que se dando conta da obviedade da questão, como que se dando conta de que eles ali não ajudariam em nada, mas isso eles não devem ter pensado, eles nunca pensavam, e saíram mudos, e ficamos, de novo, eu e o mano, sozinhos, pra encarar mais uma noite doída de choro, mas que ia doer muito mais que qualquer outra noite, e eu sabia que eu não ia conseguir dormir, mas tentei pelo menos fazer com que o mano dormisse, ia ser bom pra ele, mas ele não parecia com sono, e mesmo assim eu apaguei as luzes e deitei no sofá dando boa noite pra ele, mas logo depois – ele sabia também que eu não ia dormir nem ia fingir que dormia – ele perguntou, mana, sabe o que que eu tava pensando?, e eu tive medo de perguntar por uma resposta que eu não sabia qual era, mas sabia doída, no quê?, eu perguntei finalmente, e ele respondeu, tava pensando que a gente podia ir pra Austrália quando eu sair do hospital, o Pedrinho me disse que o irmão dele falou que lá é tri legal, e eu abafei meu choro no cobertor, e ele continuou, que que tu acha, mas deve ter se dado conta de que eu chorava, porque ficou em silêncio por um bom tempo esperando uma resposta que eu não sabia qual, mas eu tinha que responder, e falei, sim, mano, tá combinado, quando a gente sair daqui a gente vai, cuidando pra não revelar tristeza na voz, e ele disse, e a gente vai poder surfar lá, mana?, quando eu melhorar da perna eu vou querer surfar lá, porque parece que lá é tri bom de surfar, e eu respondi que sim, mas que por enquanto o melhor era dormir pra ficar bem descansado pro outro dia. E no dia seguinte cedo vieram pro nosso quarto pra levar o mano pra fazer o procedimento, e eu fiquei apreensiva sozinha, sentindo falta da companhia dele e temendo a falta que eu fazia pra ele, e o médico depois veio nos informar – pro pai e pra mãe, que tavam ali de novo – que o resultado ia sair em no máximo dois dias e que ia dizer exatamente qual o tumor que o mano tinha e a partir disso o tratamento que ia ser feito, e aquelas quarenta e oito horas foram absurdamente desgastantes, nós, que há muito esperávamos que tudo passasse, sabíamos que quanto mais o tempo passava mais tudo piorava, e tínhamos medo do resultado que ia chegar, e eu fiquei o tempo todo com medo, esperando, e não pensei em momento algum em tudo que tava me fazendo sofrer antes, porque quando acontece uma coisa assim a gente revê o que nos dói, e a mãe ficava ali toda hora também, saía só de noite, e o pai ia sempre que podia, quando não tava trabalhando – ou com a vagabunda, a mãe continuava repetindo, mas nem eu nem o mano dávamos bola mais – e eu chorava frequentemente, e o mano também tava sofrendo muito, aqueles dias foram horríveis como nenhum outro dia tinha sido antes, apesar de todas as dores doídas até então, e quando o médico chegou com o resultado as batidas do meu coração emudeceram qualquer palavra que eu pudesse querer falar, e eu escutei quieta ele falando que o tumor era agressivo, que se chamava Sarcoma de Ewing, e que era um tumor ósseo de péssimo prognóstico, e que, como tumor agressivo, o tratamento também tinha que ser agressivo, e que portanto, como o tumor tava localizado na tíbia, ele ia ter que amputar a perna do mano pra poder tratar e retirar o foco do tumor, tentando impedir uma metástase que era extremamente perigosa, e a mãe ouvia tudo aquilo como se só agora entendesse que o filho dela tava morrendo, e eu ouvia aquilo quieta, impotente até pra falar, estática, e o mano não entendia direito, porque ele perguntou chorando, eu vou perder a perna, mana?, e o médico disse que sim, que ia ter que amputá-la assim que desse, e que depois o mano ia ser encaminhado para um oncologista pra iniciar a quimioterapia, e o mano não parava de chorar ouvindo aquilo, e eu abracei ele e depois a mãe nos abraçou, e o médico saiu nos deixando ali, completamente abatidos, e foi nesse momento que o pai chegou e voltou toda a choradeira, e eu não queria que aquilo acontecesse, ninguém queria, mas tinha que ser, e a gente ficou no quarto – o sofrimento em um abraço unido – esperando algum milagre, mas não veio, veio só o médico no dia seguinte falando que a sala de operação já tava pronta, que ele ia ter que ser levado pra fazer o procedimento, e aquilo tudo era muito doído, eu tava chorando muito, e ele foi, enquanto a gente ficou numa sala de espera, esperando não sei o quê, porque nada significava mais nada naquele momento, eu não sabia mais o que fazer, e o médico voltou pra falar que a operação já tinha sido finalizada e que em breve a gente ia poder entrar na sala de recuperação, que era onde o mano tava, por um tempo, só pra ver como ele tava, falar um pouco com ele, e aquele tempo era só angústia, e eu só vi que o tempo tava passando quando o médico voltou e falou que se a gente quisesse a gente podia entrar na sala de recuperação agora, e a gente entrou lá pra ver ele sem a perna, sem a perna, sem a perna, e a gente não sabia como reagir, eu tentei transmitir confiança, mas a quem eu queria enganar?, tudo era horrível, ele tava morrendo, ia morrer, e eu chorava muito, a dor não passava pra ninguém, só piorava, era tudo mentira, tudo falso, e o mano me chamou pra perto e sussurrou no meu ouvido que tava doendo, que continuava doendo, e eu perguntei onde, e ele respondeu que continuava doendo a perna, a perna que tinha sido amputada continuava doendo e que tava doendo muito, muito mais do que antes, e eu olhei pra ele e sofri, porque não consegui falar pra ele o que ele queria tanto ouvir, não tive coragem de dizer que já ia passar, que toda dor uma hora passa.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Pequenos milagres (Berenice Rheinheimer)

Não podia evitar: tinha pavor de aves. Pombas, patos, araras, sabiás ou flamingos; não importava o tipo, o fato é que padecia deste medo há muitos anos, como se sua própria existência dependesse de manter distância das penosas. Tentou, sem sucesso, algo que lhe ajudasse a encontrar a coragem perdida há tantos anos. Fez análise, tomou florais, submeteu-se a simpatias e até freqüentou um terreiro de candomblé, tudo sem resultado. Seu pânico continuava tão inabalável, que Celeste acabou por seguir o conselho do último terapeuta, de aceitar e conviver com seus temores. Era complicado, precisava evitar os parques, vitrines de pet shops e até propagandas de televisão, sequer a imagem de um pássaro conseguia suportar.


Foi consciente de suas limitações que pisou no terraço naquela manhã. O assombro era maior que o medo. Precisava saber o que era aquilo se debatendo na piscina suja. Celeste herdara a cobertura, mas por seus hábitos noturnos, motivados pela fobia, quase não usava a parte externa do imóvel. Ali jaziam vasos, desprovidos de qualquer verde, plenos de terra seca que levantava vôo com facilidade, criando poças barrentas ao menor chuvisco. Junto ao deck de ardósia encardida, havia uma pequena piscina, mantida com água apenas para não danificar a fibra, a qual Celeste mandava limpar uma ou duas vezes por ano. Por este motivo, o corriqueiro era que a água se encontrasse verde e mal cheirosa. Sob a luz mansa de um dia nublado, Celeste teve dificuldade em distinguir o que se lamentava na água rasa e apodrecida. Viu que era um negro, muito escuro, de tez quase azulada, caído de lado e apesar de seu empenho, não conseguia levantar-se, porque não equilibrava suas grandes asas. Parecia um mendigo de cabelos muito brancos e olhos de catarata. Suas asas imundas boiavam no charco repleto de limo em que a piscina havia se transformado.

Celeste rendeu-se ao impossível, tinha de admitir tratar-se de um anjo. A possibilidade do divino não amenizava o inconveniente: havia penas espalhadas por todo deck. Com esforço, o anjo conseguiu erguer-se um pouco e sentar na borda da piscina, o que fez Celeste gritar. Alheio, não tomou conhecimento da presença dela, e falou. Pronunciou algo que ela não pode compreender, talvez uma língua antiga, a voz rouca e mansa de anjo confabulando. Refeita da surpresa, compreendeu que era necessária uma atitude. Pegou a peneira da piscina e cutucou a criatura, enxotando-a. Só conseguiu fazê-lo porque entre ela e o anjo havia a longa distância do comprimento da haste de alumínio. O máximo que logrou, para seu desespero, foi fazer o anjo bater as asas peladas, perdendo o pouco de penas que lhe restavam. Ela decidiu entrar, estava atrasada. Talvez ao longo do dia, aquilo (seria mesmo um anjo?, perguntou para si mesma) desaparecesse. Ele não surgiu do nada? Então o fenômeno podia repetir-se.

No final do dia, na entrada do edifício, o síndico a esperava com o semblante contrariado. Reclamou da água escura que respingou durante roda a tarde, sujando os vidros dos andares inferiores. Ignorou quando Celeste tentou falar da inesperada visita, apenas frisou:

- Vazamentos dentro do imóvel são de responsabilidade do condômino.

Celeste praguejou, irritada com a inutilidade de um anjo sem milagre, entrou em casa decidida a seguir as orientações da vigilância sanitária. Orientações antes negligenciadas, mas agora tinha a esperança de que o aversivo usado para espantar os mosquitos da dengue pudesse também afastar o anjo. Então jogou dez quilos de sal grosso dentro da piscina. Tinha muitos pacotes em casa: cada vez que recebia uma notificação, comprava os dois quilos de sal recomendados, mas adiava as saídas no terraço, esquecendo-se de usá-lo. Assim como com os cutucões, num estupor de peru, o anjo ignorou Celeste. Ela começou a chorar, gritando xingamentos nada devotos, e furiosa, não percebeu a ausência do medo quando algumas penas voaram em redemoinho. Resolveu dormir um pouco, no outro dia poderia pedir auxílio a algum religioso: reverendo, professor de catequese ou, talvez, alguém da Universal.

Após poucas horas de sono desassossegado, acordou preocupada. E se aquilo resolvesse entrar no apartamento? E se chamasse outros como ele, saídos de algum tipo de geriatria do reino dos céus? Andou até a sala e espiou pelo vidro, o anjo continuava sentado no deck, as pernas penduradas dentro da piscina e as asas desplumadas jogadas no piso. Num destempero típico da madrugada, Celeste lançou para perto da piscina três frascos acesos de Jimo fumegante. A única conseqüência foi fazer o ser alado tossir e espumar. Arrependida, Celeste estava a ponto de chamar a Eco Salva, quando os estertores do anjo diminuíram. Bastou que ele, com a mão em concha, lavasse o rosto na água escura. Depois, iniciou um ritual como quem se benze, o tronco e as asas num balanço ritmado, molhava os dedos na água e passava-os pela testa.

Vencida, Celeste voltou a se deitar, aceitando o que o céu lhe impunha. Se fosse o caso de ter um anjo domesticado, qual outra solução, senão aceitar? Com o passar dos dias, acostumou-se com a presença de mais alguém em casa, mesmo que o anjo permanecesse alienado. Alimentava-se de larvas crescidas na piscina, também de pequenos insetos ou trevos e outras ervas daninhas que insistiam em brotar da terra seca.

Na segunda semana ela capitulou e ofereceu a ele uma cesta de frutas, e como prova definitiva sua rendição, um envelope com sua matrícula no curso de esperanto. Contou ao anjo que começaria a frequentar as aulas na semana seguinte. Ele a olhou pela primeira vez e deu-lhe um sorriso de dois dentes. Celeste sentou-se no banco de madeira, já sem verniz. Não se lembrava de ter passado mais de cinco minutos no terraço na última década. Viu no tronco que fora uma palmeira, uma orquídea pronta para florir. Olhou o pergolado vazio e sentiu falta da lágrima- de- cristo de antigamente. Os vasos de temperos ainda tinham as placas pintadas por sua mãe. Celeste fez questão de olhá-las de perto: hortelã, alecrim, manjericão. Teve saudades dos aromas de sua infância.

Saiu com pressa e voltou carregada de mudas de flores, sementes de ervas aromáticas, adubo e um grande regador. Sob o olhar do anjo, pôs-se a repovoar os vasos, disposta a restituir a vida do lugar. Ainda tinha guardados os bebedouros de beija- flor de seu pai: pendurou-os, e também as casinhas de madeira que as curruíras ocupavam na primavera. Descobriu duas bromélias sobreviventes e, em cima da treliça que um dia sustentou uma buganvília, um ninho de sabiás. A fêmea trazia no bico a refeição dos filhotes, uma minhoca ainda se contorcendo. Satisfeita com os pequenos milagres do cotidiano, afastou-se para permitir que a mãe alimentasse a prole, enquanto ela se punha a adubar as mudas recém plantadas. Viu que o anjo se movimentava. Num arrastar de asas ele suspendia o regador, ajudando Celeste em sua tarefa de cuidar das folhagens.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Travessia (Gustavo Grandi)

“I do desire we may be better strangers.”
(William Shakespeare: As You Like It)


Cleide sorria enquanto os desconhecidos rapazes da loja entravam na casa carregando a geladeira nova. “Pode deixar aqui mesmo, ainda preciso limpar o lugar onde ela vai ficar.” O carregador concordou com a cabeça, atento aos movimentos loiros do cabelo de Cleide. “Bonita”, comentaria depois com o colega. Sebastião não estava em casa. A mulher recebeu a entrega, assinou e despediu-se dos carregadores acenando com o pano de prato. Depois sentou-se num banco da cozinha e ficou olhando para a geladeira, imaginando o que faria com cada compartimento. “Deve ser o dobro da outra”, pensou.

A outra, a geladeira velha, já estava no pátio quando chegou a nova. Ainda funcionava. “E o que fazemos com ela?”, perguntara Cleide ainda na loja, enquanto escolhiam. “Vai ser um presente para a tua mãe”, respondera Sebastião. A mãe de Cleide morava sozinha do outro lado da rua, recebendo assim visitas freqüentes do casal.

Naquela manhã, Sebastião acordara mais cedo para arrastar sozinho a geladeira velha até o portão. Chegou atrasado no emprego: a tarefa lhe tomou o dobro do tempo que tinha planejado. Entre suas vendas, pensou algumas vezes na aquisição, no tempo que passaria pagando as prestações, na excitação da esposa quando fecharam a compra. Quando chegou em casa, ela o recebeu no portão. “Veio?”, perguntou. “Veio”, respondeu Cleide procurando o brilho verde nos olhos do marido. “Um negrão de olhos verdes”, dissera para a mãe logo que se conheceram. Depois do estranhamento, a sogra aprovara o genro, dizendo à filha que o havia imaginado pelo menos um palmo mais alto.

A geladeira velha repousaria no pátio por aquela noite; no outro dia atravessaria a rua para ocupar a garagem da mãe de Cleide. “Falo com o Walmor”, disse Sebastião. “Ele me ajuda a carregar.”

Na manhã seguinte, vestiu-se e foi direto à casa ao lado interromper o chimarrão solitário do vizinho madrugador. “O senhor não me ajudaria a atravessar a rua com a geladeira, seu Walmor?”, pediu depois de dar bom-dia. “Muito pesada?”, perguntou o militar, sério, enquanto livrava-se da cuia para poder apertar as juntas dos dedos grossos. “Trabalho para dois”, sorriu Sebastião. “Te ajudo sim”, declarou Walmor. E, cruzando os braços: “Pode ser no fim de semana?” Sebastião tinha pensado em resolver isso já hoje, mas disfarçou e respondeu sorrindo que “Claro, não tem pressa, quando o senhor puder.”

***

“Vivere per sempre
Ci vuole coraggio
Datti al giardinaggio
Dei fiori del male”

(Baustelle:Baudelaire)


Quando Sebastião e Cleide se casaram e compraram a casa naquela rua, Walmor e a família já moravam ali havia muito tempo. O tenente aposentado, um descendente de alemães nascido no interior, morava na cidade desde os dezoito, quando entrou para o quartel. Sua força física não vinha só do serviço militar: a enxada já lhe havia moldado os braços antes que deixasse o campo. Forte no corpo e conservador nas idéias, contrastava com o ambiente urbano como um broche de veludo contrastaria com a sua farda, hoje guardada no roupeiro, longe dos olhos.

Sua aposentadoria veio antes do esperado. O processo iniciara havia pouco tempo e já era a terceira vez que Walmor chegava em casa praguejando por causa do major que estava sempre embriagado. “Imagina que ontem eu tive que mandar o sargento descarregar a pistola dele, de medo que machucasse alguém”, dizia à esposa. “Como chegou a ser major é uma coisa que eu jamais vou entender.” Os comentários ficavam mais ácidos a cada dia, até a noite a em que o tenente Walmor entrou em casa em silêncio. A esposa lhe perguntou o que queria jantar. “Matei o major Aírton”, foi a resposta. O grito não teve coragem de ferir as cordas vocais da mulher e os tímpanos do marido. A confissão foi recebida pelo respeito das esposas prudentes. Resignou-se a entrar no quarto, fechar a porta e chorar em silêncio. “Legítima defesa”, dissera o mesmo sargento que tinha descarregado a arma do alcoólatra, única testemunha. “Ele entrou na sala cambaleando, pegou a arma e começou a brincar com ela apontada pro tenente.” Foi absolvido. Ainda assim, havia matado um superior, devia ser afastado do quartel. Aceleraram seu processo de aposentadoria, negando-lhe, porém, o aumento de salário que recebem os oficiais quando se aposentam. “Dois mil reais por mês”, disse Walmor à esposa. “Isso é o que me custou aquele gambá.”

Anos depois, mudavam-se para a casa ao lado Cleide e Sebastião. Iam-se embora os vizinhos antigos, gente que não se despediu de Walmor por causa de uma árvore de cinamomo. O tenente tinha um jardim, adquirira com a aposentadoria esse passatempo. Passava tardes inteiras envolvido com as plantas, ora cuidando com os dedos grossos das flores frágeis, ora martelando na escada ornamental de madeira. A mesma árvore que dava sombra para os antecessores do casal enchia de folhas e galhos o jardim do tenente. Ainda que a sujeira caísse do lado de cá, o tronco ficava do lado de lá do muro, fora do terreno do militar. Na quinta vez que tentou convencê-los a derrubarem a árvore, Walmor não conteve um soco que fez o vizinho cair batendo a cabeça no tronco que causara a discórdia. Dali até a mudança foram quarenta dias. Logo que viu o casal chegando, o militar foi falar com Sebastião, pedir permissão para cortar a árvore. Sebastião pensou na sombra, depois pensou que no futuro queria ter uma piscina e paz com os vizinhos. Passou a tarde seguinte ajudando Walmor e mais meia dúzia de militares a serrar através de um tronco que mal podia ser abraçado por duas pessoas. Fizeram uma pausa, e Cleide trouxe uma jarra de cerveja para os homens. Seu cabelo loiro brilhava como a bebida, pensou Sebastião, feliz. Orgulhava-se de perceber que os olhos daquele velho tenente alvejavam sua esposa.

No próximo domingo, enquanto Walmor assava um churrasco para os filhos e netos, sua esposa pensava na prestatividade do vizinho novo. “Ele ficou a tarde inteira ajudando vocês?”, perguntou. O tenente confirmou. “Por que tu não dás um pouco de churrasco pro casal?”, perguntou a esposa. “Ele parece gostar de carne branca”, respondeu com um esgar. “Quê?” “Nada. Leva o espeto de frango pra eles”, respondeu o marido. A mulher obedeceu, mas a frase não a abandonou durante a semana que se seguiu. No outro domingo, quando os filhos já tinham ido embora, ela entrou na sala e encarou o marido. “Se ele fosse branco tu tinhas atirado?”, perguntou. Como resposta recebeu um tapa que a pôs deitada. Walmor saiu de casa e foi beber cachaça no bar. Durante as três doses, ficou sentado em silêncio, olhando para as mãos. Quando voltou, a esposa já dormia virada para a parede. Olhou para a mulher por um tempo, deu meia-volta e caminhou até o seu jardim. Sentou-se na escada ornamental entre as flores para apertar as juntas dos dedos grossos. Com a luz dos postes da rua, podia ver que o jardim não estava mais contaminado por galhos e folhas de cinamomo.

***

Pela terceira vez na semana, o despertador arrancou Sebastião da cama antes do habitual. Era um sábado nublado, fresco. Foi novamente até a casa de Walmor e percebeu antes de bater palmas que o carro não estava na garagem. A esposa do tenente atendeu ao chamado. “Ele foi visitar a irmã”, gritou da janela. “Volta só à noite.” “Tudo bem”, respondeu Sebastião, convencido de ter visto indulgência na expressão da mulher. O sol se fora e Walmor não vinha. Foi só quando, deitado, tentava dormir, que Sebastião ouviu o barulho do carro entrando na garagem do vizinho, tarde demais para cobrar a ajuda prometida.

O relógio não precisou acordar Sebastião mais cedo no domingo. Dormira mal toda a noite, e quando amanheceu não fez mais nenhum esforço para adormecer novamente. Levantou-se da cama, vestiu-se e foi à casa de Walmor, passando pela geladeira que já estava ali havia quatro noites . “Ele foi à missa”, gritou novamente a mulher, desta vez com clara desaprovação da atitude do marido. Quando voltou, o tenente trazia sacolas de carne e um saco de carvão. Sebastião não teve coragem de interromper o rito dominical do vizinho. Ao fim da tarde, quando os filhos do militar foram embora, Walmor foi ao bar, desta vez para passar horas bebendo. Quando Sebastião o viu voltar, já de noite, mal conseguia caminhar. Ao ser cumprimentado por um berro ébrio, Sebastião se limitou a olhar para Cleide e dizer: “Amanhã eu peço para o Márcio.”

***

Então saiu da cama na segunda-feira e foi comer uma laranja no quintal, sentado em uma cadeira de praia ao lado da geladeira, que começava a demonstrar sinais do tempo que passara ao relento. Esperava que Márcio, o vizinho do outro lado, saísse para o trabalho. Queria abordá-lo para pedir a ajuda que Walmor não lhe dera, mas em seus pensamentos nasceu também uma secreta esperança de que Márcio lhe oferecesse carona. Surgiu mirrada, fraca, e foi-se alimentando de lembranças em que Sebastião era sempre gentil com o vizinho, ainda que não se falassem muito. Na hora em que Márcio saía de casa, agitando com os dedos o cabelo molhado e pendurando o paletó no banco do carona, já não era mais uma esperança: tornara-se um mero reconhecimento de que qualquer outra postura seria rude.

Da janela de casa, Cleide viu Sebastião se precipitar em direção ao carro de Márcio, enquanto este disfarçava o susto, cumprimentava e esperava que o vizinho falasse, justificasse a abordagem sem precedentes. Cleide via o marido que falava e apontava ora para a geladeira, ora para a casa da mãe. Márcio, com as mãos no volante, mantinha o semblante simpático e demonstrava pressa. Quando Sebastião entrou em casa, disse: “Ele trabalha até tarde hoje, mas me ajuda amanhã”. Cleide concordou com a cabeça e produziu da geladeira nova os ingredientes para o café da manhã, que o marido tomou apressado, regulado pelo horário do ônibus.

***

“I’m waiting in this cell because I have to know
Have I been guilty all this time?”

(Pink Floyd: The Wall)

Um pessimista que passasse tempo suficiente na casa de Márcio podia chegar ao extremo de acreditar na utopia da família feliz. Cumprimentavam-se na cozinha com bons-dias ensolarados, comiam frutas de uma mesa colorida e riam juntos da inteligência inesperada do filho de quatro anos. O trabalho do casal já rendia o suficiente para planejarem a compra de uma casa maior. A jovem esposa previa um segundo filho, mas Márcio, ao se imaginar criando irmãos, enxergava uma possível semelhança com seu próprio pai, sob quem crescera junto com um caçula. “Uma vez o velho me deu uma surra”, gritava para ser ouvido entre as gargalhadas dos amigos “porque eu tinha apanhado de uma garotinha do meu colégio. A gente nunca esquece apanhar duas vezes no mesmo dia!”, dizia, limpando as lágrimas que soem acompanhar o riso sonoro. Homem macio, pouco mais de trinta anos, Márcio produzia o brilho que emana dos homens que ainda não se entediaram da própria capacidade de sustentar a família. Caminhava de duas maneiras: durante a semana flutuava veloz, com a elegância que as roupas sociais lhe davam ao corpo saudável; quando trazia o filho pela mão, flanava lento como um turista.

A família convivia em casa à noite e saía nos fins de semana, para fazer coisas que fazem famílias iniciantes. Márcio não trabalhava nas manhãs de terças e sextas-feiras, usava esse tempo para praticar natação. Chegava cedo, nadava por uma hora e ia para o chuveiro, onde chegava a passar três horas aproveitando o prazer que a água quente lhe dava. Podia até parar de nadar, pensava, mas não imaginava uma semana sem os longos banhos na academia. Tornaram-se um hábito tão forte, que com freqüência se pegava devaneando no trabalho sobre os chuveiros do vestiário. Quando saía do banho antes do meio-dia, comprava alguma coisa para a esposa antes de almoçar. Uma edição ilustrada de Confissões de uma Máscara foi o presente que mais lhe dera prazer oferecer à mulher. Ela era japonesa por parte de mãe, justificara. Precisava conhecer a literatura de suas origens.

Quando Sebastião e Cleide ocuparam a casa ao lado, Márcio foi o primeiro a recebê-los na rua. Conversou por mais de uma hora com o casal, falando sobre como a rua era tranquila e seu filho logo poderia brincar com as outras crianças. Semanas depois, numa sexta-feira em que Márcio saía de casa para ir nadar, olhou do carro para as pernas de Sebastião. Passou segundos mirando o vizinho que saíra de casa de bermuda para tirar o lixo, antes de ir para o trabalho. Logo percebeu o ridículo de estar parado na calçada, com o motor ligado, olhando para as coxas de outro homem. Foi sair, deixou o carro apagar. Dirigiu até a academia pensando que se tivesse pernas tão fortes teria mais impulso na piscina.

Sob o sol da manhã de sábado, Márcio despertou depois da esposa. Foi até a cozinha e a encontrou à mesa, de pernas cruzadas, comendo uma maçã. Sentou-se também ele. “E então, com quem era?” a mulher o olhava com malícia. “O quê?” “O sonho que tu tiveste essa noite. Achas que eu não ouvi como ficou a tua respiração?” Márcio corou violentamente. Tinha um medo vivo de falar dormindo desde que seu irmão lhe perguntara por que insultava o pai no sono. “Vamos, fala.” Ela sorria, mostrando-se compreensível. “Quero saber quem é essa mulher que toma meu lugar de noite!” Agora ela ria, afetando uma brincadeira exagerada. Márcio encarava o prato, sentindo o rosto incandescer. “Não tem mulher nenhuma”, murmurou. Ela gargalhou: “Ah, claro, quer dizer então que tu tens esse tipo de sonho com homem!” No mesmo momento, todo o sangue que há pouco se apressara em ocupar os vasos de seu rosto abandonou Márcio a uma palidez hospitalar. A esposa percebeu e ficou séria. Não soube o que fazer por alguns segundos, depois se levantou e foi para o quarto do filho dizendo “Vamos ver como está o pequeno dorminhoco”. Ficou olhando o menino que dormia. Quando ele acordou, foi carregado pela mãe até a cozinha, entre cócegas e risadas. Márcio olhou para os dois e sorriu, levantando com dificuldade os olhos do prato vazio.

Decidiram passar o sábado na casa dos sogros de Márcio. Ligaram para avisar que lhes levariam o neto para uma visita e foram almoçar em família. Depois do almoço, o avô dormia, e a avó ensinava o filho a fazer dobraduras de papel. Márcio segurava a mão da esposa, mas o casal não se olhava. Em casa, à noite, a mulher o olhou com bondade e o beijou. Dormiram abraçados.

***

A terça-feira chegou para ameaçar com chuva sólida a geladeira velha, agora coberta por uma lona. Sebastião sequer pensou em falar com o vizinho sobre a possibilidade de realizar o trabalho com aquele tempo. No outro dia, de tempo bom, quando Sebastião acordou, Márcio já saíra. Voltou à noite apenas para pôr a família no carro e sair novamente, sem sequer olhar para o vizinho que o esperava ao lado da geladeira. Sebastião não quis chamá-lo, sua pressa era clara já desde a maneira com que estacionou o carro na calçada.

Quando Márcio saía para o trabalho na quinta-feira, Sebastião esperava por ele no portão, com a lona embaixo do braço. Entre gentil e tímido, Sebastião interrogou o vizinho sobre a ajuda. Márcio, de dentro do carro, respondeu: “Eu preciso trabalhar. Não sustento a minha família carregando eletrodomésticos.” Antes que pudesse reagir à aspereza, Sebastião viu o carro passando o sinal fechado e dobrando a esquina. Caminhou lento até seu pátio, fechou o portão e parou em frente à geladeira, cuja pintura já descascava.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A poética do conto em word

Leitores do Blog,

para receber cópia de A poética do conto é preciso remeter-me um e-mail:

charleskiefer@uol.com.br

O texto está em word e mando o arquivo completo.

Só poderei fazer isso até o final deste ano, pois recentemente assinei com a Editora Leya o contrato de segunda edição. O livro será re-lançado em 2011 e a partir de janeiro do próximo ano, por força desse mesmo contrato, não poderei mais enviar o livro a ninguém.

Abraço,

CK

domingo, 26 de setembro de 2010

Catarse (Regina Maria Schneider)

Jesus caminhava calmamente pela Rua da Praia, em Porto Alegre, o jornal dobrado embaixo do braço, quando viu Judas, de terno Armani, todo engomado, gravata e tudo. O olhar de Judas era fixo, duro, sem afeto, a boca retorcida pelo sarcasmo. Andava sem olhar para os lados.

Então, Jesus, tocando–lhe de leve, falou:

– Como vai, Judas? Há quanto tempo...

Judas conhecia bem aquela voz doce, e teve um sobressalto de pavor, pior dos que sofria ao saber dos resultados da Bolsa de Valores. Virou-se rápido, e encontrou os suaves olhos do Senhor. Mal conseguindo murmurar alguma coisa, suando de nervoso, respondeu:

– Boa tarde – e ainda tentando disfarçar para livrar-se daquela situação embaraçosa, perguntou –. De onde mesmo o conheço?

– De um tempo bem longe, Judas, o da Crucificação...

– É verdade – respondeu Judas, mostrando reconhecê-lo por completo, estremecendo, entre envergonhado e constrangido.

Mas que encontro maldito, pensou, logo Ele, logo Ele... Entre tantos bilhões de homens no planeta, os chineses, os indianos, os africanos, logo Ele, ali, na mesma esquina da Rua dos Andradas. Que coincidência terrível e desagradável...

Porém Cristo, vestido com uma túnica branca, larga, de calças jeans, calçando sandálias de couro cru, o cabelo negro e comprido, alto, magro, o rosto encovado, os olhos brilhantes de sabedoria e amor, olhava-o com ternura. Parecia um hippie, e além de Judas, ninguém o reconheceria assim simples e humilde, e sem denotar qualquer atitude de Rei e Santo que era...

Judas não pôde fingir mais:

– Meu Jesus, eu sou indigno de receber a tua boa palavra. Eu fui um traidor, um homem de baixo caráter, um podre...

– Não fales assim, meu Irmão... Eu não esqueci o teu sofrimento, o teu desespero, o teu remorso... Tua vida passada, e quantas mais deves ter tido até hoje. Sei que foram dolorosas. Fiquei marcado em ti com meu sangue... Mas vamos tomar um cafezinho, assim conversamos mais à vontade.

Judas estava petrificado, não sabia o que fazer. O homem que traíra e que pagou com morte violenta por seu ato lhe falava com amor, compreensão, humildemente. Queria esquivar-se desse encontro, ser engolido pela terra, ali naquele momento, sumir, desaparecer, mas Jesus, com o semblante resplandecente, o hipnotizava, o atraía como havia sido antes, quando Judas O amava e O seguia. Lembrou os seus ensinamentos, o tempo em que pescavam juntos e sentavam para cear, distribuindo pão e peixe para o povo. Estava tão rígido e tenso que não conseguia se mexer, e Jesus sentiu isso. Pegou-o amavelmente pelo braço e convidou-o a ir a sua sala de trabalho, que ficava ali pertinho, no Edifício Annes Dias.

Lá chegando, abriu o amplo aposento, fez Judas sentar-se num sofá e serviu dois cafezinhos.

Judas continuava petrificado.

– Eu te matei – falou, olhando bem nos olhos de Jesus, pela primeira vez – Como pude? Eu, que conhecia a Tua doutrina, a Tua filosofia, as Tuas parábolas, as Tuas profecias, o Teu amor ao próximo, eu que Te amava mais do que a mim mesmo, vacilei, Te entreguei...

– Calma, Judas, o teu crime não foi o único na Humanidade. Teve Caim, em primeiro lugar, e outros crimes horrendos. Ainda hoje existem tantos que eu nem poderia lembrar todos, basta ler os jornais, as revistas...

– Aquele beijo – falou Judas – aquele beijo. Aquele beijo – repetia obsessivamente de cabeça baixa, balançado-a para lá e para cá –. Sabe Jesus, depois dele, nunca mais beijei ninguém na face. Nem os meus filhos, nem a minha mulher, nem minha mãe... Aquele beijo ficou cravado em mim como uma cicatriz. Pior, como um ferro incandescente no meu peito, que pulsa, que lateja, uma angústia que nunca se vai. Ainda hoje ele arde e me queima aqui dentro.

– Cada um tinha que fazer o que estava escrito, Judas. Eu fiz a parte mais fácil: meu papel foi ser mutilado, torturado, morto pelo bem da Humanidade. A ti tocou a parte pior: a de trair um amigo, um companheiro de luta, para que as profecias fossem cumpridas. Estava escrito. Cada um teve que representar o seu papel. Tu foste uma vítima, te escolheram para traidor. Quanto a mim, eu só tive que morrer. Sofri, é verdade, mas o meu sofrimento não chegou nem perto dos teus remorsos. Quantas dezenas de séculos já se passaram desde a Paixão, e tu ainda estás te martirizando, como naquele dia em que fui preso. Não aguentaste a dor da culpa e te enforcaste no pé de figueira.

– Era o mínimo que eu tinha a fazer.

– É exatamente isso o que quero te dizer: tu foste o exemplo mais notável, mais concreto, mais real de que a traição mutila e derrota o ser humano. Ela deixa seqüelas irremediáveis na consciência. É um crime horrendo, pior talvez que o parricídio. Foi contigo que a Humanidade aprendeu esta lição.

– Mas o pecado continuou, Mestre, o homem não parou de trair. Acontece todos os dias, a toda hora, de várias maneiras.

– É verdade, Judas. Mas tu não avalias quantas pessoas deixam de cometer traições levadas pelos ensinamentos evangélicos que nós dois construímos juntos. Centenas de milhões de indivíduos na terra seguem a Palavra das Escrituras e não traem. Com o teu arrependimento, tu te redimiste e te tornaste um santo. Quanto aos que ainda traem chegará sua vez de compreender o mistério: eles não sabem o que fazem e reencarnarão em tantas vidas quanto forem necessárias para esse aprendizado. Estava escrito.

– Estava escrito – repetiu Judas resignadamente, como se tivesse, enfim, compreendido o seu papel.

Jesus, olhando-o tão tenso e contrito, disse:

– Deita-te no sofá, Judas, relaxa, estamos a sós aqui, podemos conversar à vontade.

Judas afrouxou a gravata, descalçou os sapatos. Sentia-se cansado e exaurido com aquele encontro inesperado. Estressava-o aquele jeito amável do homem que matara. Estirou-se no sofá com lassidão, tendo Jesus a sua esquerda, quase atrás de si, evitando aquele olhar que não suportava porque fazia lembrar-se de tudo. E, então, num átimo, compreendeu o que o Mestre tentava lhe dizer.

– Escrito! – gritou ele revoltado – Quer dizer então que eu fui usado, escolhido feito cobaia para cumprir um papel viciado, que já estava previsto, que alguém teria que fazer a qualquer custo, contanto que a profecia se cumprisse... Mas é claro, Tu mesmo o disseste, certa vez: “Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar". Tu sabias o tempo todo que seria eu o infeliz, o desgraçado. E o que fizeste para me ajudar? Nada, absolutamente nada. E me tornei, assim, a grande vítima da história, o bandido, o vil, o traidor, enquanto Tu foste a Vítima, o Mártir, o Salvador da Humanidade, o Santificado. A Bíblia é o livro que mais vende em todos os tempos, espalhando a Tua história, o Teu sacrifício. O Teu nome é respeitado em todo o mundo ocidental e até oriental, as crianças são batizadas com o Teu nome enquanto eu... Sou o símbolo da traição, o sinônimo mesmo disso. Eu fui o verme imundo para que o Teu nome se enchesse de glória. A vergonha e a impureza me tornaram desprezível, torpe, ignóbil, a verdadeira expressão da baixeza, da vileza, da degradação...

– Não te julgues com tanta severidade, Judas Iscariotes. E não penses que nada fiz para te ajudar. Rezei muito por ti no Getsemani, companheiro, mas a tua tentação foi mais forte do que a minha prece. E, além disso, na Última Ceia, avisei: "Em verdade, em verdade vos digo que um de vós, que come comigo, me há de entregar... O Filho do Homem vai, segundo está escrito dele, mas ai daquele homem por quem for entregue o Filho do Homem! Melhor fora a esse homem não ter nascido.” Eu te avisei, Filho!

Judas recordou o episódio e abaixou a cabeça em sinal de culpa.

– Mestre – disse ele – perdoa–me.

– Antes de eu morrer na cruz, meu amigo, tu já estavas perdoado. E, além do mais, estás idealizando demais a minha figura, eu somente fiz o que pude naquela época, era a minha obrigação. Naqueles tempos, eu tinha um pouco mais de luz do que os outros homens, e julguei compreender melhor a Humanidade, guiado pelos ensinamentos do Meu Pai. Então, pregar a minha fé foi uma coisa natural em mim, não pretendi te usar em qualquer sentido. Podes ter certeza que desempenhaste muito bem o papel que te coube. A traição ficou marcada na Humanidade como uma das coisas mais abjectas e vis que um ser humano pode cometer. Teu exemplo serviu para isso, para ensinar as pessoas a não trair. O teu suicídio transformou tua atitude na representação do arrependimento. Tu foste corajoso e forte ao te enforcares. Não precisas te sentir perseguido por isso.

– Mas por que eu, logo eu?

– E por que não tu, Judas? O que tu tinhas de melhor que outros para não poderes servir de traidor? Isso é uma onipotência tua. O de querer sempre ser o maior e o melhor.

Judas estremeceu e começou a chorar aos arrancos, sacudindo-se convulsivamente.

– Eu tinha o livre arbítrio, Jesus, eu podia ter me negado, escolheriam outro apóstolo, mas eu escutei o primeiro chamado, Satanás entrou em mim, botei olho grande naquele dinheiro, cedi ao primeiro impulso, não pensei muito e Te vendi!

– Foi – disse o Senhor.

Judas desesperou-se. De um salto, levantou, arrancou a gravata italiana, tirou o casaco de tweed, jogando-os no chão. Rasgou as vestes como se ainda vivesse em tempo bíblico. Arrancou os cabelos, arregalou os olhos, delirante, febril, doentio e transtornado. Debatendo-se, gritou o que pode de raiva, de angústia, de agonia. Depois, deitou-se novamente de bruços, exausto, chorando feito criança, aos solavancos, um menino mau arrependido diante da figura do pai.

Jesus o olhava com mansidão, sentado no outro sofá.

– Sabe, Rabi – falava Judas com a voz entrecortada – de tudo o que se passou, a tua prisão, a tua tortura, a coroa de espinhos, o teu sangue vertendo, tu arquejante ao peso da cruz, a chacota e o escárnio com que te trataram, a tua sede, o fel que bebeste, a tua própria morte, as tuas chagas, de tudo isso o que mais me doeu foi o meu próprio beijo. Meus lábios quentes e voluptuosos, viperinos, beijando tua face morna e inocente, tua carne humana... Ao longo desses dois mil anos, vivendo sempre dezenas de vidas sobre a terra, é aquele beijo que me martiriza, e me afoga. Trair, muitos e mais do que eu traíram, é humano, mas aquele beijo jamais poderei esquecer.

– Foi um beijo sujo, não é assim que tu o sentes, Judas ?

– Sim, um beijo covarde. Ele marcou irremediavelmente a minha laia, a minha corja, a minha árvore genealógica. Fiquei com o sinal de Caim... Sabe, Cristo, depois que te traí, repeti esse gesto muitas vezes. Por exemplo, fui Nero.

– Eu sei, Judas, eu fui Agripina...

– No Brasil, fui Joaquim Silvério dos Reis...

– Eu sei, Judas, eu fui Tiradentes.

– Eu fui Hitler.

– Eu sei, Judas, eu fui judeu.

– Eu fui da Klu Klux Klan.

– Eu fui Martin Luther King.

– Viste, viste Mestre? E além do mais, fui Stalin e Médici. Pinochet e Bush tem meu sangue.

– Eu sei, Judas. Fui o operário russo, o povo chileno, o árabe, o índio, o negro, o palestino, o cigano, o homossexual, o drogado, o presidiário, o brasileiro. E tu sempre estavas lá, do lado contrário ao meu.

– Meu problema é genético.

– Não sejas determinista, tu podes mudar essa maneira de ser.

– Sou filho de Caim. Faz parte da minha natureza.

– Estou aqui contigo, meu Filho, para que tu aprendas a mudar e, principalmente, a te perdoares, a refazeres tua vida, pois ainda voltarás muitas vezes à Terra. E hoje, o que fazes, que profissão exerces?

– Sou agiota. Extingo a vida do infeliz que me bate à porta todo o dia, do miserável que está endividado, atolado, sem saída. Sugo as suas últimas forças, abandonando-as somente quando estão esgotados e exangues e nada mais posso tirar delas. E Tu, Cristo, que fazes por aqui, nesta distante cidadezinha, perdida no Sul.

– Sou psicanalista. Tento ajudar as pessoas a viver um pouco melhor. A vida não é um peso só para ti. As pessoas que batem à minha porta procurando apoio, vêm assombradas pelo sofrimento, angústias, culpas, remorsos...

– Analista? Mas então este é Teu consultório? E este sofá não é mais do que um divã? Eu estou vivendo uma sessão de análise?

– Sim, Judas. Foi a maneira que encontrei para te ajudar, te escutando melhor, te deixando falar mais dos teus sentimentos...

Judas levantou-se, andou um pouco pela sala, viu o retrato de Freud na parede. Estava visivelmente mais aliviado. Deitou-se de novo no divã, ficou olhando o teto, silencioso, refletia sobre o que Jesus lhe dissera. Pensou em perdoar seus devedores, aliviar os juros altos que aplicava aos empréstimos. Precisava visitar um irmão aidético que não via há dois anos. Queria também beijar os filhos, tinha muito que fazer. Levantou-se.

Haviam se passado exatos 50 minutos.

Jesus também levantou. Estavam ombro a ombro, de homem para homem, face a face, e o abraço veio natural, espontâneo, necessário, irresistível. Ficaram assim abraçados por um longo tempo.

– Volto amanhã – disse Judas – na mesma hora, está bem? Foi bom falar, Meu Rabi, há quanto tempo eu não chorava? Há mais de dois mil anos. Foi emocionante estar aqui Contigo e saber que posso mudar para melhor. Eu ainda Te amo e muito, descobri isso agora. Aliás, nunca deixei de Te amar, mesmo quando cometi aquela loucura.

– Eu também te amo, Judas, e muito. Eu vim pelos pecadores.

– Eu sei, Mestre, obrigado. Quanto Te devo?

Jesus olhou-o bem nos olhos, serenamente, e disse com fala mansa:

– Trinta moedas de prata.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Melhor voltar para casa (Cláudia Baumgarten)

Querida, hoje eu acordei diferente. Tu sabes como as dores preenchem a vida. Mesmo eu ingerindo essa infinidade de pílulas coloridas, as dores continuam a me perseguir. Elas se tornaram as minhas leais companheiras. Elas te substituíram, Celeste. Os anos se tornaram mais difíceis sem tua presença. É viva a cena do dia em que a tiraram de mim: A violência de branco, o semblante amedrontado das crianças – o caçula Alfredo tinha apenas dez anos - e o olhar desconfiado dos criados. De todos, ficou só a filha da Firmina, que limpa a casa. E basta, não preciso mais dos outros. Ainda moro aqui no Solar dos Magalhães onde tudo se deteriora. As cortinas do nosso quarto não são mais tão claras e têm as marcas de visitas das traças; o colchão, uma vez macio e convidativo, tem manchas amarelecidas; os móveis não escondem as ranhuras causadas pelos cupins. Que saudade de tuas eau de toilette. Ao invés dos suaves aromas, a vulgaridade do mofo e da urina. Isso foi o que me sobrou e em nada lembra nossos áureos tempos onde tinham vez as viagens ao primeiro mundo, os amigos influentes e os socialmente importantes com suas generosas festas. Lembra quando oferecemos nosso apartamento em Paris para o governador Flores da Cunha? Ou quando hospedamos os filhos de Arthur e Elisa Klein? Quanto embaraço, em pleno estopim da guerra. Fazíamos parte do seleto círculo da alta sociedade porto-alegrense. Mas isso faz tanto tempo. Os que não morreram, se afastaram naturalmente. Bando de hipócritas!

Nossos filhos? Não falo com eles nem tenho notícias. Eu não telefono, eles também não. Eu não os visito, eles tampouco. Ainda lembro bem dos quatro correndo pela casa e tu, com a severidade doce de mãe, chamando-lhes a atenção aos bons modos de crianças bem educadas; os quinze anos de Celina em 1944, nossa última grande festa; Corina, coitada, não teve sua apresentação à sociedade. Estava sem a mãe e nunca me perdoou por isso. O Alfredo, em minhas divagações, parece nunca ter saído dos cueiros. Estou um pouco confuso. O dia de hoje foi exaustivo. Não sei se essas lembranças incluem o Geninho ou sou eu quem o resgata de algum porão sujo e o enxerta nelas. Até hoje não sei o seu paradeiro. Nossos filhos se afastaram de mim; não tiveram culpa. Deixem-me em paz! – gritei, certa vez. E eles me deixaram. Mas não fica preocupada, eu ainda tenho a Negrinha. Eu não sei o seu nome de batismo, nunca consegui gravá-lo na memória. Faço uma deferência ao seu tom de pele, nada mais. Toda vez que a chamo assim, arqueia uma das sobrancelhas, enrugando um pouco a testa. Acho que não gosta, mas eu não me importo. Ela é paga para cuidar de mim. Diz que faz curso superior de enfermagem, mas eu duvido. Desde quando negros entram na faculdade para estudar? Mu-la-ta, seu Eugênio. Negra, não. Ela sentencia, cheia de si. Parece ter saído do quadro do Di Cavalcanti que temos na biblioteca. Para mim não faz a menor diferença, eu não ligo a mínima para a cor da pele dela, desde que faça as coisas certinhas, não falte ao serviço e, o principal, que fale pouco, quase nada.

Eu disse que acordei diferente. Abri os olhos antes do ronco do despertador, um hábito que venho cultivando há algum tempo. Não gosto do barulho dos alarmes dos relógios, eu já experimentei e quebrei vários. Também não aprecio ser acordado pela enfermeira. Prefiro acordar sozinho, sempre a mesma hora. Hoje ele tentou aplicar o golpe baixo da falta de luz. Mas eu fui o vencedor, mais uma vez. Zombei dos seus enormes olhos vermelhos piscantes, pareciam tiques nervosos. Preciso dele porque consigo enxergar as horas mesmo sem os óculos. Malditos. Nunca sei onde os coloco, e vem a Negrinha e me entrega. Às vezes penso que ela os esconde de propósito, só para me irritar. Não consigo ler, cansa. Os olhos ardem, lacrimejam. A visão fica embaçada, tal qual a janela desse quarto, que nada se vê através. Tolerante, suporto a sofrível leitura do jornal pela minha cuidadora. Criatura esquisita. Já desisti de manter conversa com ela. Sua cultura se resume aos signos do zodíaco; na política seus comentários são carregados de um discurso esquerdista radical. Em outros tempos, seria liquidada.

Sonhei contigo noite passada, Celeste. Burlavas o esquema de segurança, passavas pelo portão de ferro e vinhas ao meu encontro, amável, sem dizer nada. Um vestido azul, pouco decotado, vestia teu pequenino corpo. Lúcida e radiante. O cabelo farto estava preso, apenas alguns fios se rebelavam caindo ao lado das orelhas ornadas pelos brincos de mamãe – aqueles que te dei no primeiro ano de casamento. Generosa, me estendeste a mão e eu te convidei para dançar. Deslizávamos ao som de Danúbio Azul quando percebi que o ritmo clássico deu lugar ao popular. O salão nobre do Clube do Comércio transformou-se numa gafieira desclassificada. Fiquei desajeitado, pois não sabia te conduzir. Tentei me desvencilhar de ti e pedir à orquestra que parasse com o insulto, mas não consegui, me seguravas forte e me conduzias ao sabor dos acordes frenéticos. O roçar das tuas coxas me causavam um prazer juvenil. Segurei teu corpo com mais firmeza enquanto sussurravas algo que não pude distinguir, o som no salão estava ensurdecedor. Meu corpo suava por todos os poros e o teu também. Um susto me acometeu quando visualizei outro rosto e não o teu. Era mais escuro, com feições mais fartas; os cabelos muito ondulados, negros. Os cheiros se misturaram e eu despertei suado, ofegante e com o pijama molhado. O sonho transformou-se em pesadelo. Engoli o orgulho e a vergonha, esperei a chegada da Negrinha com a bacia d’água para meu banho matinal.

É degradante essa hora. Detesto o contato em minhas partes íntimas. Ela me tocou de um jeito que mulher decente não tocaria. Uma despudorada, isso sim! Nesse momento, a Negrinha fica muito perto de mim. Dá até para sentir a sua morrinha. - Não tens tempo para te banhar? Não tem água quente em casa? – eu pergunto. Nesses dias frios é bem compreensível desprezar um banho dia e outro. Ela responde: Tomei sim, seu Eugênio. Tomei sim. Fez bico de passarinho e começou um assobio, afinado e insuportável, de uma canção que não sei qual é e nem desejo sabê-la. Já pensei em oferecer-lhe meu chuveiro para espantar a catinga, meu lar. O que pensarias disso, Celeste? Desisti e pedi para acelerar a dupla tortura.

É mesmo, eu disse que acordei diferente. Segura meus voos, depois de velho dei para devaneios impróprios. Desculpa, querida, manterei a compostura. As dores não me visitaram hoje, deram uma feliz trégua ao meu corpo. Eu já nem sabia o que era ficar sem dor. Pude levantar-me sozinho, sem o braço extra da Negrinha, porque ela sempre está por perto quando eu desperto. Ela escancarou um sorriso alvo – que dentes perfeitos, eu nunca havia reparado, ou talvez nunca tenha sorrido para mim – e disse: Muito bem, seu Eugênio. Muito bem. Pelo visto, o senhor acordou animado e de bom humor! Percebi que eu retribuía àquele meigo sorriso. A sua voz foi um convite à vida. Combinava com o dia ensolarado que fazia lá fora e que eu provoquei para entrar. Abri as janelas, um rastro de poeira dançante pode ser visto, e o sol aqueceu a tua cadeira de balanço. Há muito eu não respirava um ar tão fecundo, gelado, revigorante. Tive um desejo enorme de tomar o café da manhã na cozinha, não mais na cama, junto aos lençóis senis e amarrotados. Na cozinha, sobre uma toalha limpa, comer pão com manteiga e café bem forte. Mas o doutor proibiu, senhor, advertiu a petulante. Aos diabos, o doutor! – gritei. Enquanto me deleitava com tamanha fartura, Negrinha me observava atenta, enchendo vez em quando a cuia com água quente. Lembrei da minha meninice na estância de papai e das rodas de chimarrão com a peonada. Mamãe não gostava, achava um hábito subalterno e para não afrontá-la, nunca bebia em sua frente ou com os negros. Ela jamais me perdoaria se o fizesse. Acho que Negrinha teria sido escrava de dentro de casa se vivesse àquela época. O que tem a cor dela, Celeste? Não podemos ser preconceituosos nesses tempos modernos. Ouvi dizer que é crime.

Quis sair daqui. As paredes do corredor que dá acesso à sala social, tomadas por quadros com fotografias desbotadas de cinco gerações dos Magalhães, pareciam estreitar-se. Pude até sentir a respiração daqueles que insistem não ser esquecidos, talvez fosse um convite para ficar ali estampado também. Senti medo, uma urgência em ver a vida além delas. Para aplacar o vento minuano que insistia em soprar, vesti o casaco de couro; de longe, petit pois, de perto, bolorento. Melhor se tivesse um poncho. À luz do dia, em plena rua, minhas pupilas diminuíram e me causaram vertigem. Segurei-me no braço da enfermeira, evitando a queda. Fomos à Praça Quintilhano. Está muito diferente daquela que frequentávamos, tem cerca e recebe visitantes pouco ilustres. O passeio trouxe à tona lembranças até então aprisionadas em um sótão escuro, revistas como um filme em preto e branco. Vi jovens abraçados nos bancos de madeira, crianças pulando alvoroçadas pelo gramado e seus cães correndo atrás... Pensei na brevidade da vida, da nossa vida. Engraçado, hoje as lembranças não doeram, ficaram coloridas de novo. Precisei sentar. O sol refletido no uniforme branco da Negrinha a deixou mais escura ainda. As suas mãos pousadas sobre os joelhos estavam bem feitas, unhas curtas e sem esmalte. Irias gostar, Celeste. Apesar do odor, ela parece asseada. Não trocamos uma palavra, mas nos entendemos muito bem. Foi o silêncio que evitou o abismo entre nós, ela sabia disso. Talvez seja mais inteligente que eu previra. Tanto faz, agora.

As horas passaram e o estômago reclamou pelo almoço. Pretendia ser comensal dos Ávila, mas não sei se vivem ainda ou se me receberiam. Paramos num restaurante qualquer, com comida servida a num tal sistema de buffet. A Negrinha me ensinou como funcionava e me serviu, sem o menor requinte. Não havia garçom para nos servir, acreditas? Vi nos olhos dela o receio em relação ao que pedi para comer, mas ela nada disse. Minha doce cúmplice. Eu disse doce, Celeste? É que eu pensava em ti e no tempo que almoçávamos juntos. Lembra? Éramos muito felizes, não? Cometi o disparate de pedir um vinho e bebê-lo com ela. É triste beber sozinho. Pedi o melhor Cabernet Sauvignon que o lugar oferecia e degustei como se fosse um beijo há muito desejado. A língua deu uma travada ao primeiro contato com o rubro líquido. Eu o fiz dançar por todos os cantos da boca, amaciando o sabor. – O aroma é de especiarias e frutas vermelhas maduras, percebes? É o carvalho que dá o toque amadeirado. Os vinhos de guarda são envelhecidos em barricas de carvalho. – Ensinei à Negrinha um pouco da arte de Baco. Ela o bebeu com o mesmo interesse com que me escutava.

O meio da tarde chegou cedo demais. Pedi que me levasse ao teu encontro. Não! Eu não disse nada a ela. Fomos de táxi. O caminho até o Hospital São Pedro está tão diferente. Não reconheci minha cidade. Semáforos, automóveis, edificações modernas e altas, outras apenas rejuvenescidas. Não a vi crescer, prosperar. Há quanto tempo o senhor não sai de casa, seu Eugênio? Perguntou a Negrinha, admirada com a minha perplexidade. Vinte, trinta anos? Perdi as contas, meu bem. – respondi. Oh, não te aborrece, Celeste. Deve ter sido efeito do vinho, caso contrário, eu jamais a trataria com tamanha obscenidade. Quando cheguei em frente ao prédio de arquitetura neoclássica, que por muitos anos tem sido teu lar, estremeci. A decadência do manicômio fez espelho com a de nossa família. Quantas vidas destruídas... Geninho, estúpido ou inocente demais. Ainda não sei como classificá-lo. Hoje eu entrei. Não me viste? Eu sei que não, fui muito discreto. Estavas conversando com as nuvens, como fazias no dia em que te levaram de mim. Sim, eu chorei. Mas por piedade de mim, incapaz de entrar em teu mundo e sorrir contigo novamente. É melhor voltarmos para casa, seu Eugênio. Já fizemos muita extravagância hoje, sugeriu a outra, me levando pelo braço, me afastando de ti.

Ainda não queria retornar ao solar. Precisava me despedir do dia. Fui até a Usina do Gasômetro, às margens do lago Guaíba, que até ontem era rio. Sugestão dela, dizendo que lá apreciaríamos o mais belo por-do-sol do mundo. Fumei um cigarro. A fumaça percorreu sem resistência o caminho já desbravado até meus alvéolos. Envolto à névoa formada pelo ar expelido, transportei-me aos tempos de guri, no colégio. Meus primeiros pitos foram lá, no banheiro, escondido com mais uns três moleques. Já estava dependente quando fomos pegos pelo padre. Situação que resultou em mãos inchadas de tanta palmatória, uma suspensão de uma semana e um sermão do papai, sem falar da surra e do traseiro dolorido.

Era melhor voltar para casa. O vento, que continuava a soprar forte, fazia música e levava consigo o calor acumulado no dia. Desejei viajar com ele. Minhas mãos, então frias, foram aquecidas ao contato com as mãos macias de Negrinha. Quem visse de longe, à primeira vista, poderia crer que fôssemos amantes. Não havia mais tempo para isso.

* * *

Jacinta acordou sobressaltada com o insistente alarme do despertador do quarto contíguo. Perdera a hora. Vestiu às pressas o jaleco e correu até o quarto de seu paciente, pronta para receber uma bronca. Seu Eugênio não se encontrava na cama, como todas as manhãs. Estava sentado na cadeira de balanço – só corpo – próximo à janela, abraçado a um antigo álbum de família.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O Cadáver (Ricardo de Albuquerque Müller)

Não sei se devo ou não acreditar nos meus olhos, se tenho a mente perturbada pela mais terrível solidão que um homem pode suportar. Esse cheiro de morte com o qual tenho convivido dia após dia tem me levado a um desespero que beira à loucura, onde não vejo saída nem na própria morte. Escrevo com a intenção de, ao relembrar os fatos, tentar encontrar uma lógica que me explique tudo por que venho passando, apesar de achar que estarei condenado a um lento e interminável martírio.

Havíamos passado ao largo das ilhas Cayman num dia de mar calmo e praticamente sem vento. Os turistas já haviam almoçado e a maioria estava no convés apreciando a paisagem. Devido ao cansaço, eu preferi ficar na cabine e tirar uma sesta. Foi com um duro golpe na cabeça que acordei e percebi que o navio afundava. Demorei alguns instantes para entender o que se passava, mas logo compreendi que a embarcação adernava para bombordo. Ouvi muitos gritos e um barulho infernal que deduzi ser o casco se partindo. Pela escotilha, vi homens ao mar e vários corpos boiando. Dois botes haviam sido lançados, mas com o desespero os passageiros foram subindo neles em número excessivo e desordenadamente, acabando por emborcá-los. Tentei abrir a porta da cabine, mas ela estava trancada. A escotilha também estava emperrada, e não consegui abri-la. Não achei nenhum objeto de metal ou de algum outro material resistente que pudesse servir para arrombar a porta. Fui tomado de um desespero sobre-humano e comecei a gritar e a chorar, dava socos e pontapés na porta e rezava. O navio continuou virando de lado até a porta da cabine ficar para baixo e a escotilha para cima. Depois, começou a afundar rapidamente e vi a água encobrir totalmente a pequena abertura circular, porém a cabine continuava totalmente seca, sem infiltração de água. Foram poucos minutos até o navio se chocar contra o fundo e estabilizar. Então, do barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor.

Recomposto, percebi que não estava sozinho. Havia um homem inerte e com a face completamente desfigurada dentro da cabine. Provavelmente tinha sofrido o traumatismo no momento em que o barco havia virado bruscamente. Palpei o pulso e logo vi que ele estava morto. Em seguida, tive náuseas e mal-estar, e precisei me virar de costas para o cadáver e respirar fundo. Permaneci nessa posição por alguns instantes e não conseguia imaginar como ele tinha surgido ao meu lado. Eu certamente havia entrado sozinho na cabine e a porta estava fechada. Então, criei coragem e me virei. Estendi o corpo e passei a examiná-lo mais detidamente. Havia um afundamento de face e múltiplos ferimentos que não permitiam reconhecê-lo. O lado direito do crânio apresentava uma grande contusão, com laceração no couro cabeludo que deixava entrever parte da massa encefálica entre os fragmentos ósseos. Procurei nos bolsos algum documento que pudesse identificá-lo, mas nada encontrei.

Fazia uma hora que o navio havia afundado. Continuava tudo no mais absoluto silêncio. A única iluminação provinha da luz natural que iluminava o oceano e entrava pela pequena escotilha, num tremular inconstante e fantasmagórico. Deduzi que não poderíamos estar muito longe da superfície, pois a intensidade da luz era razoável. Contudo, não percebia nenhuma movimentação junto ao navio, nenhum sinal que indicasse que o naufrágio tivesse sido avistado por alguém. Tentei outras vezes sair desse local pequeno e oprimente, mas não tive sucesso. Enfim, desisti. Restava apenas aguardar um possível resgate.

Após seis horas o ar estava insuportavelmente quente e irrespirável, com uma emanação pestilenta proveniente do cadáver que já começava a se decompor. Não conseguia me afastar dele devido ao espaço exíguo. A noite já começava a despontar e as trevas invadiam pouco a pouco o cubículo, deixando-me extremamente aflito. Durante a longa espera até o amanhecer, eu permaneci acordado e com os olhos abertos, rodeado pelo mais profundo breu, sem me mexer, com medo de tropeçar no cadáver.

No dia seguinte e nos outros foi a mesma tortura, o mesmo sacrifício pelo qual deve passar o condenado ao fogo eterno. Mas seria o demônio tão sádico e cruel? Teria isso a ver com a minha vida um tanto quanto desregrada? Estaria sendo eu punido pela bebida e outros vícios? Confesso que pensei seriamente no suicídio, mas não tinha como cometê-lo. Não pela falta de coragem, mas pela falta de meios materiais. Não comia e não bebia, mas o meu corpo nada pedia. E os dias e as noites se sucediam numa massacrante e interminável rotina. O que mudava era apenas a progressiva putrefação do cadáver, que inicialmente havia inchado e adquirido uma coloração esverdeada, para depois começar a liberar uma secreção escura e fétida, com formação de bolhas e perda de partes da pele e demais tecidos. Eu não tinha onde ficar a não ser sobre aqueles restos de matéria putrefata, com o meu corpo cheirando a morte, mas sem conseguir morrer.

Faz um ano que ocorreu o naufrágio. Ninguém ainda apareceu para resgatar o navio. O cadáver que me acompanha — eu o batizei de Polinice — está praticamente reduzido a uma ossada. A luz fraca e tremulante e o escuro profundo e absoluto se intercalam numa sucessão infinita e torturante. Sinto que esta cabine é o meu túmulo onde jamais conseguirei descansar. E ninguém neste mundo poderá me responder a uma dúvida que me afligirá por toda a eternidade — poderia ser eu o cadáver?

domingo, 4 de julho de 2010

Desabafo contra velhos decrépitos (Luara Pinto Minuzzi)

Vocês estão enxergando aquele velho decrépito sentado na poltrona feita especialmente para combinar com a imagem do dono (o que quer dizer, poltrona decrépita)? É claro que não estão enxergando. Como eu sou boba. Vocês não podem ver nada, apenas imaginar a partir das palavras que eu escrevo. Ou seja, se não confiarem em mim, o problema não é meu, já que os caros leitores dependem da narradora para ficar a par dos fatos, e não o contrário. Enfim, vocês não enxergam, mas acreditem quando eu digo que um velho decrépito está sentado em uma poltrona ainda mais decrépita. É a pura verdade. E o tal de velho decrépito finalmente dormiu após vários dias de vigília.

Já contei quem é o velho decrépito? Não? Como eu sou mal-educada. Não me apresento, nem apresento meu marido. Pois é, esse velho decrépito é meu marido. Meu marido há tantos milênios que eu já até perdi as contas. Parei o cálculo nos 47 anos, 11 meses, 25 dias e 19 horas do nosso casamento e da noite na qual o velho decrépito (que, na época, não era velho, mas já mostrava indícios da decrepitude potencializada com a idade) tirou minha virgindade e minhas últimas alegrias.

Vocês estão notando como ele baba e ronca enquanto dorme? É claro que não. Mas se essa história fosse um filme, aí sim, tudo seria diferente. Os leitores (que se transformariam em espectadores) poderiam observar as pantufas ocres puídas e o chambre que já conheceu melhores dias em cores – pois eu não admitiria nada menos do que um filme em cores. Mas já sou uma senhora com certa idade e, quando se chega a essa certa idade, não é mais possível aprender as modernidades malucas dos jovens.

Bom, como eu ia dizendo, o velho decrépito afirmou sentir muita angústia pelos livros que não leria. Então, botou-se a ler e ler. Mas a insanidade dele atingiu o auge quando, entre lágrimas, confessou não ser capaz de dormir enquanto não terminasse uma obra. “Imagina morrer e deixar um livro pela metade”, o decrépito me disse. Então, após alguns dias sem sono, parando apenas para comer e ir ao banheiro (tudo com a minha ajuda, aliás, ajuda é eufemismo, pois só faltou que eu comesse e cagasse por ele, precisava fazer tudo, o velho decrépito não presta para mais nada), ele chegou à última página do tal de volume. E dormiu.

Sempre ocupadíssimo com essa maldita literatura, o velho decrépito – o que me deixava doida, não, o mais correto seria escrever que ainda me deixa doida. Quanto tempo vocês imaginam que sobrava para mim e para as crianças (sete crianças, por sinal, porque tempo para fazer crianças o velho decrépito tinha suficiente)? Não precisam responder, pois se trata de uma questão retórica e eu também não ouviria as respostas, já que vocês lerão esses papéis em um tempo e espaço diferentes dos que eu escrevo. É, espaço até, por uma enorme coincidência, poderia ser o mesmo (se não se considerasse a palhaçada que o velho decrépito costumava dizer de uma pessoa nunca poder entrar no mesmo rio duas vezes, mas isso é coisa de gente vagabunda e desocupada com miolo mole). Porém, tempo, não. Tempo definitivamente não seria o mesmo. Mas divagações assim não interessam, desculpem essa senhora que já viveu demais e precisa desabafar. Eu também não responderei a questão acima formulada. Não é necessário. Não, para ser bem sincera, responderei sim, pois prometi a mim mesma que essa seria a minha vingança contra o velho decrépito. Como vocês já esperavam, eis aqui a solução do problema: nenhum, não sobrava nenhum tempo para a família dele.

Eu lembro uma vez na qual resolvi espiar um livro bonito com letras douradas. Vocês sabem como é, uma esposa dedicada e afetuosa busca aproximar-se do seu companheiro e, para me identificar mais com o velho decrépito, eu precisaria entender um pouco daquela papelada toda. Nada mais fácil para mim, alguém que sempre se mostrou inteligente e perspicaz. Decidi abrir em página aleatória e li um trecho. Meus cabelos arrepiavam-se mais e mais a cada palavra. A mulher passou a língua no seu peito, detendo-se no mamilo. Sentindo o ingurgitamento no baixo-ventre... Não, não continuarei, essa é uma história respeitável, escrita por uma senhora respeitável. Se transpus a passagem aqui é apenas para tornar a narrativa mais completa e realista para os meus leitores. Aquele velho decrépito. Eu sabia que não era à toa o seu gosto por esse monte de letrinhas enfiadas numa capa dura. Só podia ter sacanagem no meio. Velho decrépito.

É difícil de acreditar que vocês não podem ouvir nem cheirar o velho. O som é tão alto e o odor, tão insuportável, que eu fico pensando ser possível que eles cheguem a outro tempo e outro espaço. Vocês não sabem tudo o que eu preciso agüentar. Já contei a vez na qual ele surtou durante um noticiário na televisão? A mocinha – aquela bonita dos cabelos curtos, sabem? – falava as neves do Kilimanjaro estão derretendo. Especialistas prevêem seu desaparecimento para os próximos 30 anos e as lágrimas do velho decrépito começaram a molhar a mesa onde ele estava apoiado. Eu, tola – não, tola, não, de boa-fé –, fiquei orgulhosa da preocupação do meu homem com a causa ecológica. Deveria ter desconfiado. Entre suspiros e fungadas, consegui entender o decrépito dizendo ele me fez acreditar que ao menos as neves do Kilimanjaro eram eternas. Então era isso, o velho, além de decrépito, burro, foi enganado por um escritor doido, pois bobagem assim só poderia ter sido escrita por um dos decrépitos profissionais. Era só o que me faltava. Velho decrépito, burro e bobão.

Comentei sobre como eu era muito mais feliz na casa dos meus pais? Minha memória às vezes falha. Se estou me repetindo, fiquem bem sentados aí lendo de novo esse episódio vivido por mim, pois uma narração assim pode servir de alerta para muitas jovenzinhas que se julgam extremamente espertas. Sim, eu vivia sem preocupações quando solteira. Conheci o velho decrépito, que na época me pareceu tão culto, e casei. Casar com homem culto não serve para nada. Ouçam, ou melhor, leiam o que eu digo. São muito bons na teoria, já na prática...

Vocês juram não poder ouvir os roncos dele? Juram? Se bem... Eu também não estou escutando barulho nenhum. Estranho. Ia começar a reclamar apenas para manter o hábito, o que é sempre bom. Porém, a verdade é que tudo está silencioso. Meus leitores vão me perdoar, mas precisarei acabar por aqui, me angustia não saber se o decrépito está vivo ou morto. Já havia inclusive pensado em uma frase de impacto digna daqueles hippies lunáticos com obras publicadas. Vocês se impressionariam. Agora o velho me atrapalhou e eu não poderei deslumbrá-los como queria. Afinal, ele é um velho decrépito, mas é meu. O meu velho decrépito.

domingo, 30 de maio de 2010

Recital dos mortos, de Nelson Rego

Tudo estava ruim, mas ficou pior depois que a televisão veio aqui e filmou seu Seis revirando os olhos e recitando sem parar os nomes dos mortos. No início, seu Seis fora apenas o mais doido entre os malucos já contratados por meu pai. Alguns são malucos. Outros, safados fingindo serem médiuns. Eu sei quando eles estão fingindo, eu sinto. E sei quando são doidos e acreditam de verdade.

Seu Seis nunca quis cobrar. Dizia que não se cobra por um dom dado por Deus, não tem preço. Queria jorrar como uma fonte de água pura para todos, era o que dizia. Meu pai convenceu ele a cobrar pelas consultas, em nome de manter a casa. Seu Seis concordou. Cobrava o valor da comissão paga a meu pai e mais um pouco, que era para custear alimentação, luz, essas coisas, já que decidiu ficar morando no quarto anexo ao consultório.

Meu pai tem faro para negócios. Percebeu logo que seu Seis iria render muito. O outro médium, que trabalhava há meses no consultório, continuou atendendo, alternando-se com seu Seis. Por pouco tempo. Era um fingido, mas tinha alguma intuição e compreendeu que o melhor era ir para longe de seu Seis. Meu pai só tem olhos para dinheiro e não viu que, depois de dinheiro, seu Seis traria desgraça.

Tive medo de seu Seis desde que botei os olhos nele pela primeira vez. Inchado como um cadáver, pensei isso. Nunca vi um cadáver dias depois da morte. Sei que é assim porque se fala muito na morte aqui em casa. Meu pai conta piadas e histórias de assombração, debocha. Achei seu Seis estufado como um cadáver apodrecido.

Com o tempo, achei que se tornava a cada dia um pouco maior. Sonhei uma vez que ele inchara até ocupar o tamanho inteiro da sala.

Quando eu era pequena, os médiuns atendiam dentro de nossa casa. Ao perceber que o negócio iria prosperar, meu pai construiu o consultório nos fundos, no pátio. Seu Seis foi o primeiro que preferiu morar no quarto anexo. Movimento de pessoas querendo consultar sempre existiu. Mas só com seu Seis é que se formaram filas.

As pessoas vinham de outros bairros e até de outras cidades. Depois da televisão, passaram a vir de todo o país. Antes, seu Seis dava consultas como qualquer outro médium, só que de um jeito mais impressionante. Revirar os olhos, ele sempre revirou. E os guinchos que solta, antes de falar com aquela voz que vem do fundo de uma caverna, também são os mesmos. O que mudou foi a mensagem.

Seu Seis dava notícias dos mortos. As pessoas ficavam sabendo sobre os planos astrais em que eles recebiam lições, preparando-se para novas jornadas no mundo. Os mortos enviavam conselhos e súplicas, pediam que os vivos acendessem velas para afastar os demônios. As pessoas gostam de levar susto. Quanto mais gente saía de olhos arregalados e dando risadinhas nervosas do consultório, mais gente queria entrar na sala escura. Meu pai fazia fortuna.

Foi então que a coisa começou. Seu Seis desandou a recitar listas de nomes e sobrenomes que ninguém sabia de quem eram. Mal-estar mesmo era causado pelo que ele dizia misturado com as listas. “A bala entrou pelo ouvido esquerdo, os miolos ficaram esparramados pelo chão”. As pessoas trocavam olhares. “A lataria degolou o velho, que nem assim morreu na hora, ficou ali, estrebuchando.” Ninguém entendia nada. “Quatorze anos, quatorze anos, não tinha mais do que quatorze anos.” Misturava essas frases sem nexo com as listas de nomes, repetia sem parar frases e listas. Só se acalmava ao nascer do sol, quando adormecia, recomeçando pelo meio da manhã.

Nessas horas todas falando, bebia apenas uns goles d’água e comia menos ainda, sem sair do transe. Nem por isso deixei de achar que ele continuava aumentando.

As consultas pararam. Ainda vinham pessoas escutar, muitas até, mas ninguém pagava para ouvir listas intermináveis de nomes desconhecidos.

De início, meu pai pensou que a coisa seria passageira e que, após, a fama de seu Seis iria aumentar mais ainda. Pensou que deixar as pessoas assistirem o transe enlouquecido incendiaria o falatório, seria boa propaganda para o estabelecimento.

Depois viu que não tinha jeito, seu Seis não voltaria às consultas rentáveis. Decidiu chamar o pessoal do hospício, para que tratassem de remover o médium, já que ninguém conhecia parente ou amigo de seu Seis que pudesse se encarregar disso.

O azar foi que, no instante em que meu pai colocou a mão no fone para chamar o hospício, uma mulher gritou lá no consultório. Seu Seis dissera nome e sobrenome do sobrinho dela, Rogério Leandro de Oliveira, dissera e repetira, não havia como confundir. E completara com a informação – “baço perfurado”.

A mulher estava histérica e o grupo que a acompanhava, agitado. Seu sobrinho morrera semanas antes num acidente de carro. Ele e outros três, bêbados, haviam se chocado contra a traseira de um caminhão. O ferimento fatal fora perfuração no baço.

“Anota os outros nomes, anota os nomes”, alguém gritava, no meio da confusão de todos falando, da mulher chorando, do seu Seis recitando sem parar. Meu pai, mudo e pálido.

O pior foi em meia hora confirmado. Consultados os parentes das vítimas, três outros nomes correspondiam aos mortos no acidente.

Nas primeiras horas da manhã seguinte, já se formara uma pequena multidão na calçada em frente à casa. Meu pai não queria permitir que fossem escutar seu Seis, mas invadiram o pátio, espremeram-se no consultório, disseram que seu Seis pertencia a todos. Meu pai ameaçou chamar a polícia, mas não chamou.

Ficaram ouvindo seu Seis. Haviam chamado parentes e amigos de pessoas mortas de maneira violenta. Anotaram as frases malucas e os nomes que seu Seis enfileirava.

Passou o tempo. E nada.

Meu pai já estava esperançoso de que fossem embora frustrados. Mas aí aconteceu. Foi como gol marcado em estádio lotado. A vibração começou no consultório, prosseguiu pelo pátio e se alargou pela rua. O ajuntamento era um caldo grosso que a corrente de exclamações atravessava rápida. Andreia Soares, esse o nome reconhecido. Duas amigas dela estavam presentes. Quando seu Seis acrescentou “a facada atingiu o coração” e as duas confirmaram, foi nova gritaria. Até o anoitecer seu Seis marcou uma dezena de pontos, entre centenas de nomes recitados.

Eram também de mortos os nomes não identificados? Para verificar isso, espalharam por todos os modos possíveis os nomes anotados e chamaram mais parentes e amigos de mortos a escutarem o recital. Em dois dias seu Seis alcançou uma centena de pontos. Multidão agigantada tomava a rua, invadia nosso pátio.

A partir daí os acontecimentos são conhecidos por todos. Veio a televisão e depois outras emissoras, e mais rádios e jornais. Seu Seis, meu pai e até eu viramos celebridades. A rua prosseguiu lotada.

Os jornalistas investigaram o passado de seu Seis a partir das informações que ele dera a meu pai. Seu verdadeiro nome seria José Santos. Teria quarenta e poucos anos. Haveria sido casado e comerciante no interior paulista. Há dez anos abraçara a missão a ele confiada por Deus, passando a percorrer o país em nome do Criador.

Nada foi confirmado, seu Seis, que não tinha documentos de identidade, viera do nada.

E tiveram todos que se contentar com a explicação que dera a meu pai sobre seu novo e sagrado nome, Seis: explicação nenhuma. Um segredo entre Deus e ele, segundo o próprio.

Investigaram também a vida de meu pai. Quiseram saber se ele possuía outra renda além das comissões sobre as consultas. Meu pai lhes informou que era aposentado por invalidez. Por que invalidez, se era ainda moço e aparentava boa saúde? Perguntou-lhe um repórter com jeito desconfiado. Meu pai falou dos pulmões, puxou uma tossezinha para demonstrar e desconversou.

Algum vizinho soprou um boato e os repórteres foram averiguar na delegacia policial. Acho que subornaram funcionários para obter registros de denúncias contra meu pai, por estelionato. Coisas de sua mocidade. Nada fora provado, ele nunca estivera preso.

Mesmo assim, denúncias e a aposentadoria precoce, que colocaram sob suspeita, serviram para por lenha na fogueira das matérias que indagavam se a casa dos médiuns não explorava as crendices e as dores do povo.

Porém o povo já estava com a sua convicção formada. Para a multidão, seu Seis era mensageiro de Deus. Estava acima de meu pai, livre de contaminações.

Ninguém soube explicar como, mas em poucos dias estabelecera-se um culto, com organizadores, regras e crença. Quando seu Seis dizia o nome de uma vítima de acidente, assalto ou outras violências, se parente ou amigo do morto estivesse naquele momento presente, valia por uma poderosa vela acesa no plano astral. Auxiliava a vítima a liberar-se do trauma e evoluir em seu karma. O benefício estendia-se aos vivos que houvessem testemunhado o momento em que a boca santificada de seu Seis pronunciara o nome.

Daí porque a romaria que tomava a rua e invadia o pátio tornara-se constante. Mães desesperadas, órfãos, legiões de sofredores faziam fila rezando em voz baixa. Esperavam horas pelos instantes em que estariam no grupo com permissão para entrar no humilde santuário de seu Seis.

A maioria saía da sala sem a recompensa desejada. Mas, a cada dia, diversos eram os que saíam exultantes, abençoados pela audição do nome aguardado. Dádiva completa era quando o nome vinha acompanhado do bônus extra da frase com informações exatas. “Derrapou na pista e capotou até descer pelo barranco”, e uma viúva desatava em prantos. “O ônibus bateu de frente contra o caminhão, a menina estava dormindo, sim, estava dormindo, estava dormindo a menina, ainda está para acordar, vai acordar no céu” – os avós iam embora enlaçados, rostos suavizados pelas lágrimas misturadas com o sorriso. “Dois tiros à queima-roupa, agonizou um dia inteiro”, os pais se retiravam quase dispostos a perdoar o assassino.

Testemunhar que muitos eram abençoados incentivava os desafortunados a voltarem nos dias seguintes em busca da mesma dádiva. A crença afirmava que o consultório montado por um salafrário fora o lugar escolhido por Deus para abrigar a missão de seu Seis, num sinal dos misteriosos caminhos através dos quais se realiza a vontade divina. Na sala santa deveria permanecer seu Seis em transe, em respeito à vontade suprema.

Meu pai bem que tentou chorar miséria, fazer-se de inocente e pedir uma moeda por visitante, mas percebeu em seguida que corria o risco de levar uma surra.

Os organizadores do novo culto colocavam ordem nas filas, controlavam o tempo de permanência dos grupos dentro da sala, anotavam nomes e sobrenomes recitados, divulgavam as listas, chamavam o povo. Providenciavam as flores e os incensos. Registravam as preces de agradecimento enviadas pelos sofredores. Revezavam-se dia e noite na vigília em torno de seu Seis. Baniram qualquer pagamento na entrada do consultório, em nome de romper com o passado suspeito da casa. Apenas aceitavam donativos dos abençoados com a escuta dos nomes queridos. Essas coisas todos sabem. Viram na televisão, escutaram no rádio, leram no jornal. Sabem que na rua surgiu e cresceu um comércio ambulante de flores, velas, pedras mágicas, retratinhos de seu Seis e camisetas estampadas com a imagem dele, livros de preces, escapulários, churrasquinhos e lanches rápidos.

Sabem que sou bonita, pois me viram na TV, dando entrevista na frente do portão da casa, declarando que gostaria que aquilo tudo terminasse, e que nunca seu Seis pronunciara nome e sobrenome de minha mãe na lista dos mortos. Assistiram, na reportagem que fizeram no colégio, a estúpida da minha professora dizendo que às vezes chegam até a ficarem assustados com minha inteligência, mas que a lástima é que poucas vezes estou disposta a esforçar-me e tirar melhores notas.

E todos viram, ouviram, leram padres, pastores e líderes espíritas condenando o novo culto. Tomaram conhecimento de psiquiatras explicando que esquizofrênicos podem desenvolver uma memória psicótica, capaz de armazenar inacreditável quantidade de informações sobre o tema de sua obsessão. Acompanharam os jornalistas investigando os quatro mil nomes acertados por seu Seis e verificando que, quase todos, haviam tido suas mortes violentas noticiadas.

Conhecem a controvérsia que se seguiu. Seu Seis fora leitor das páginas policiais em suas horas de folga do ofício mediúnico, antes de afundar no transe ininterrupto. Desde quando poderia estar acumulando informações? Por que não pronunciava nomes de pessoas mortas após sua entrada no transe definitivo? Seus poderes, por acaso, teriam data de validade? E aqueles outros nomes não confirmados, que formavam uma legião muito maior, quem eram? Nomes inventados? Essas evidências e perguntas sem respostas não indicariam que a explicação dada pelos psiquiatras seria verdadeira?

Souberam do mesmo modo que suspeita alguma abalou o ardor dos novos crentes. Como seu Seis poderia lembrar de quatro mil nomes e sobrenomes e, de uma parte destes, saber informações precisas sobre as circunstâncias de suas mortes? Por que ter mais fé na possibilidade de uma fantástica memória do que no milagre da comunicação com os mortos? Quem explicaria a paz celestial que inundava os abençoados com a escuta dos nomes queridos? Viram, ouviram e leram organizadores do culto e parentes e amigos das vítimas dando testemunho de sua fé.

O que não sabem era o que acontecia comigo. Nem o que se passou entre mim e seu Seis enquanto tudo definhava.

A primeira vez foi no metrô. O trem estava atulhado de mortos. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação do tipo que eu pudesse controlar. E era nítida. Nítida demais. A primeira vez foi no metrô. Depois aconteceu na rua, no supermercado, no ônibus, na sala de aula. Fui no estádio e ele estava lotado, de mortos. Fiquei olhando aquela gente ensangüentada, empilhada nas arquibancadas e pensei: esses são os que morreram em acidentes de trânsito no ano passado. Subi no elevador espremida entre rapazes de cabeças furadas, os que foram desovados no lixão durante o carnaval. Desci do ônibus cheio de suicidas. Não queria voltar ao metrô, mas fazer o quê? Não podia deixar de andar pela cidade e ver a multidão de cadáveres descendo as escadas para dentro das bocas negras das estações. E os trens? Eu me apavorava. Mas era até divertido.

Por quanto tempo se prolongaria o novo culto? Eu fazia cálculos. Lembrava de ter lido que, desde décadas, morriam trinta mil, quarenta, cinqüenta mil em acidentes de trânsito todo ano. Isso somava um milhão ou dois, por aí. Os mortos em assaltos, em disputas do tráfico, em brigas de rua ou de bar, em brigas de família, os esfaqueados, os fuzilados e os espancados eram o dobro dos mortos em acidentes de trânsito. Só nos festejos do último Ano-Novo haviam se ralado não sei quantos. E tinha mais uns punhados de soterrados por desabamentos, de fuzilados por engano pela polícia, de mulheres mortas depois ou mesmo antes de serem estupradas, sei lá. Seu Seis iria dizer os nomes de todos esses milhões? Eu duvidava, a tal da memória psicótica não poderia ser assim tão poderosa, nem poderia ter lido todas as páginas policiais, nem todos os mortos eram noticiados. Mas qual o número que ele teria conseguido guardar?

Não deixava de ser engraçado voltar da escola e abrir passagem entre o grupo de defuntos que se apinhava no portão da casa, entrar e fazer meu lanche de final de tarde. Meu medo diminuía, até mesmo no trem. Em troca, crescia o tédio. Sempre ouvira falar em morrer de tédio, agora começava a entender que isso poderia ser mais do que um jeito de falar.

Quando alguém levaria seu Seis embora? Meu pai não ia no juiz pedir a remoção de seu Seis por medo de que os crentes, em represália, exigissem do poder púbico a revisão de sua aposentadoria. Eu não tinha para onde ir, casa que me recebesse. Na verdade, nem queria. Eu me consolava assistindo a desgraça de meu pai, sujeitando-se à situação por causa da aposentadoria mixuruca, temeroso não sei de quais outras represálias. Bem feito, pensava.

Sabia que seu Seis sairia do transe quando esgotasse o estoque de mortos identificáveis. E quando isso acontecesse, algo mais aconteceria, eu sabia, sentia. Mas o quê? E quando?

Adivinhava que continuaria enxergando mortos enquanto seu Seis morasse nas peças nos fundos da casa. Já não sentia medo. Nem no trem, espremida pela multidão sendo devorada pelos vermes. E deixara de achar engraçado. Tudo era hábito, não sentia nada. A única coisa que me interessava era saber quando seu Seis iria embora.

Um dia tive uma iluminação. Minha pergunta estava errada. Não era quando. Era o quê. O que seu Seis queria para ir embora? Mal pensei isso e um defunto se virou para mim. Não posso dizer que me olhasse, já que no lugar dos olhos tinha a fenda aberta por uma machadada. Movia os lábios devagar, falava baixinho. Não consegui entender o que dizia, mas tive uma intuição.

Naquela noite, como em todas, fui ao consultório. Depois que o expediente das visitas terminava, permaneciam com seu Seis apenas dois ou três dos organizadores. Revezavam-se na vigília de proteção ao santo, anotavam os nomes e frases que ele continuaria pronunciando até o nascer do sol. Eu levava bifes e arroz, sanduíches e café para eles. Essa era a forma que meu pai encontrara de ainda ganhar uns trocados com seu Seis. Negociara com os organizadores que eu providenciaria todas as noites as refeições e eles pagariam uma taxa pelo serviço.

Às vezes eu permanecia na sala, observando seu Seis, enojada. Ele suava sempre, pegajoso, melento. Sentia cheiro de carne podre desprendendo-se do homem enorme.

Sabia que seu Seis parara de alimentar-se apenas nos primeiros dias do transe profundo. Depois, durante a noite, em segredo, os vigilantes o alimentavam com parte das refeições que eu preparava com fartura, obedecendo à exigência deles. Ninguém me contara isso. Eu sabia. Para o público eles mantinham a imagem milagrosa de que seu Seis apenas ingeria goles d’água e quase nada de comida. Eu imaginava seu Seis cagando durante a madrugada e aqueles cretinos limpando o asqueroso em transe. Desejava que o consultório, o quarto, o banheiro pegassem fogo.

Era comum os vigilantes abandonarem a tarefa de anotar os nomes. Seu Seis repetia várias vezes as listas antes de iniciar novas. Os vigilantes cansavam. Retiravam-se para um canto, conversavam em voz baixa.

Naquela noite permaneci mais tempo na sala. Sentada no chão diante de seu Seis esparramado sobre a poltrona, revirando os olhos, recitando as listas.

Seu Seis passou a pronunciar mais devagar os nomes, fazia breves intervalos. Os vigilantes prosseguiram em sua conversa em voz baixa, no canto da sala.

Então eu vi. Seu Seis fixou seus olhos nos meus e moveu devagar os lábios. Não emitiu som, mas entendi o movimento. Ele pronunciara o nome de minha mãe. Retornou de imediato ao recital, no momento em que os vigilantes interromperam a conversa e voltaram seus rostos para nós, alertados pelo intervalo de silêncio mais prolongado.

Saí da sala sem sentir paz celestial alguma por ter lido nos lábios repulsivos o nome de minha mãe, não me senti como os outros, que se consideravam abençoados pela audição de um nome aguardado.

Para mim acontecera de modo diverso. E diferente deveria ser o significado do acontecido, pensei. Tive outra intuição. Passei a ler todos os dias as páginas policiais. No sexto dia aconteceu: a reportagem sobre uma mulher de nome e sobrenome iguais aos de minha mãe, assassinada de modo idêntico. Seu marido estava assistindo futebol na TV, à noite. Esvaziara todas as garrafas e queria mais. Não iria deixar de assistir o jogo para buscar as cervejas no bar, quadras adiante. Mandou a mulher, que sumiu no trajeto da rua escura. Encontraram seu corpo na manhã seguinte, num terreno baldio, degolada, de bermudas arriadas. A polícia confirmara que havia esperma em seu ânus. Do mesmo exato modo como meu pai mandara minha mãe para a morte, seis anos antes.

Seu Seis não me dissera um nome do passado. Dissera o futuro. Pensei isso um minuto antes de escutar uma mudança no vozerio habitual que vinha da rua. Deixei o jornal sobre a mesa da cozinha. Lavei a louça do meio-dia antes de sair à rua. Não sentia pressa. Era reconfortante ouvir aquela mudança para um tom aflito nas conversas da multidão de peregrinos. Eu adivinhava qual seria a novidade.

Fui até os fundos. Minha entrada no consultório era sempre permitida pelos organizadores. Seu Seis interrompera o recital. Permanecia balançando devagar a cabeça, mirava o teto. Tinha uma mistura de riso silencioso e careta medonha na cara. Alguns peregrinos observavam a cena. Talvez agora enxergassem a verdade, eu pensava, olhando para seus rostos pasmos.

O recital de seu Seis nunca fora em solidariedade aos mortos. Ele sentia necessidade de estar rodeado de tanta dor. Sentia prazer. Eu sabia.

Prolongara com nomes falsos a expectativa pela audição dos nomes aguardados. Nenhuma vela fora acesa em outros planos pela salvação dos mortos, quando um nome fora recitado.

Seu Seis é doido de atar. Mas não é apenas doido. Ele se comunica de verdade com alguma coisa. Demorei a entender isso. Foi só naquele momento, depois de ler que uma mulher de nome igual ao de minha mãe fora assassinada do mesmo modo, olhando para o riso medonho do monstro, que eu soube.

Eu olhava para os rostos dos tolos, tentando adivinhar se eles enfim enxergariam a verdade. Mas, não. Eles estavam assustados. Perdidos. A verdade, eles não queriam encontrar.

O que aconteceu depois todos assistiram na TV, ouviram no rádio, leram nos jornais. Sabem que o culto definhou, que agora poucas pessoas permanecem em frente à casa, esperançosas ainda de que seu Seis volte a recitar os mortos.

Acabou o noticiário, e todos lembram dessa história, pois foi há menos de um mês que iniciou o declínio do culto.

O que nunca souberam é o que acontecia comigo. Eu retalhava porções de carne a cada noite, preparando os bifes que levava com arroz, sanduíches e cafés para os vigilantes, que alimentavam o santo em jejum. Minha mão tornava-se mais destra a cada noite, forte, ágil, incisiva no corte. A faca longa e afiada passara a ser um prolongamento de meus dedos. Eu me perguntava se o novo transe de seu Seis, sorrindo para o teto, seria profundo a ponto de impedi-lo de defender-se de um golpe.

Seguia minha rotina. Continuava enxergando os mortos, amarrada ao tédio com cordões e laços fortes. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação que eu pudesse controlar. Assistia o espetáculo. A diferença era que, agora, os mortos pareciam ter medo de mim. Não viravam em minha direção seus rostos. Mantinham distância respeitosa. Retiravam-se aos poucos do local em que eu estivesse. Até o metrô tornava-se rarefeito. Sei que era imaginação minha. Mas, nítida demais.

Eu levava as refeições todas as noites até os fundos. Os vigilantes não tinham mais o mesmo ânimo. Até dormir, dormiam. Ouvira eles comentando que esperariam mais uma semana ou duas. Se o santo não voltasse a recitar milagres, seria removido para o asilo.

Meu pai se lamentava pela perspectiva de perder a venda das refeições. Repetia para mim, como se esperasse que eu inventasse uma solução, que a credibilidade fora perdida, não seria possível reativar a casa com outros médiuns. Meu consolo era assistir seu tormento.

Prosseguia em minha rotina. Esperava por algo, sem saber o quê. Ficava observando seu Seis, uma noite após outra. Os imbecis dos vigilantes permaneciam conversando no fundo da sala. Dormiam. Eu me perguntava se, durante esse tempo todo, nenhum deles percebera que seu Seis continuara a crescer. Cada vez mais alto, mais inchado.

Todas as noites levava as refeições e permanecia um tempo diante do monstro. Ouvira os vigilantes comentando que não existiam motivos para adiar a remoção do seu Seis. Só que eu já não desejava isso. Não enquanto tudo não estivesse, de verdade, terminado.

Eu sabia, sentia, que deveria escrever sobre os acontecimentos. Escrevi isso tudo na noite retrasada, sem parar.

Ontem à noite o demônio falou em voz baixa comigo. Os vigilantes estavam distraídos no canto da sala, jogando baralho. Eu permanecia em pé diante de seu Seis, observando seu inchaço. Imaginava se ele não explodiria como um balão se fosse furado. Estava com os olhos fixos em seu estômago, saltado sob a camisa, quando senti um formigamento na testa. Antes mesmo de levantar a cabeça, adivinhara: o olhar de seu Seis estava cravado ali. Sei que não era apenas reflexo do único abajur aceso no canto da sala, havia mesmo um brilho próprio saindo de seu olhar, um brilho de coisa ruim. Seus olhos pareciam duas cabeças de cobras encarando-me desde cima. Seu olhar foi baixando. O monstro estava me admirando. Seu olhar deliciou-se com meu umbigo, deixado à mostra por minha calça de cintura baixa. Sua língua asquerosa fez movimentos para fora da boca como se lambesse, enquanto fixava meus pés descalços. Chupou meus dedinhos à distância, um por um. Ele demorou o olhar em meus peitos, salientes sob o tecido da camiseta branca. Então começou a mover os lábios em silêncio. Não consegui ler o que diziam. Aproximei-me para entender, mesmo sabendo que aconteceria o que aconteceu. A mão suada de carne podre acariciou meu braço, enquanto eu lia e relia nos lábios do pestilento o nome do meu pai.

Os dois vigilantes abobados nada viram. Mal responderam ao boa-noite que desejei ao me retirar. Nem perceberam que, na porta, ainda me virei para seu Seis e mandei para ele um beijo prolongado.

Não duvido mais de seus poderes. Sei que ele pode chamar forças obscuras para produzir acontecimentos. E entendi a troca que ele me propôs. Sei que ele pode prever o futuro. Mas não todo o futuro. Ele também se deixa cegar.

Passei a noite em claro. Em alguns momentos pensei em recuar, porém me foi nítido que, quando fraquejava, o tédio, ou a raiva, ou o medo, sei lá, tornava-se tão grande e pavoroso que não sei se era uma enchente que vinha do fundo de mim para me afogar ou se era um mar de ondas gigantes vindo de fora, do mundo.

Passei outra noite em claro. Mas estou sem sono. Escrevo essas últimas linhas agora pela manhã. Meu pai tomou cerveja em vez de café. Saiu sem me dizer palavra. Notei que o bolso de sua calça estava estufado por um bolo de dinheiro e que a ponta de uma nota de cinqüenta estava à mostra. Ele já não sabe mais o que faz. Sempre se achou esperto, sequer percebe o quanto está débil. Foi jogar sinuca no boteco, fazer apostas. Em sua ilusão, pensa que vai voltar para casa com mais dinheiro do que saiu. Não vai voltar para casa. Vai ser assaltado. Vai reagir. Vai ser morto. Foi a última vez que o vi. Eu sei.

Voltei da rua faz meia hora. Só vi as pessoas de sempre, as que vivem suas vidinhas. Os mortos desapareceram. Em instantes meu pai vai se juntar a eles. Minha mente está expandida. Compreendo tudo como nunca havia compreendido. Estou sem medo, sem sono. Estou desperta como jamais estive.

Os dois vigilantes abobados bateram na porta da cozinha. Vieram me dizer que vão sair mais cedo. Os dois outros não demoram a chegar. Não preciso me preocupar com seu Seis, ele está dormindo um sono pesado, tão cedo não acorda.

Na verdade, os outros dois vigilantes vão demorar. Eu sei. Depois de todos esses meses, estaremos só eu e seu Seis na casa. Eu, aqui na cozinha. Ainda agora, retalhava a carne. Ele, lá nos fundos. Dormindo, acreditaram os dois abobados. Só eu e ele.