sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Mamãe trabalhava à noite (Emir Ross)

Mamãe trabalhava à noite. “Cuide da maninha até eu voltar.” Sempre que faço sombras de lua, lembro-me dela. Ela só voltava na madrugada. Maninha chorava, maninha brincava. Mas eu nunca dormia.

Nossa vida era pacata e quase normal. Só agora sei que mamãe dormia nas manhãs, depois que eu saía para o colégio. “Pegou a merenda?” Eu não gostava muito dos sanduíches. Porém ela sempre preparava as fatias de pão com recheio antes de me acordar. Sinto o sabor até hoje, sabor de estômago cheio, temperado com saliva. Ela tinha, às vezes, marcas pelo corpo. Eram marcas de feijão para o almoço, de repolho com vinagre. Quando ela se distraía eu podia ver outras marcas; de remédios pra gripe, de tênis novo. Algumas custavam a sair. Outras sumiam no mesmo instante que eu as via. Pareciam as mais doídas.

Não lembro dela ter amigas. As visitas que recebia nalgumas tardes eram da tia, que gritava. “Quer matar a mãe do coração?”. A mãe que a tia falava era a vovó, que só foi lá em casa uma vez. Complicado identificar o rosto dela, mas posso perceber que ela usava roupas de avó, largas, balançando.

Difícil explicar porque essa rua lembra mamãe. Nunca caminhei por aqui com ela. Mas a calçada tem seu cheiro. Aparência de garoa, eis o que mamãe tinha. Garoa que chora, chora, chora. Mas nada molha. Talvez por isso sua maquilagem estivesse sempre impecável. E seus olhos tristes irradiavam brilho.

“Já pra dentro.” Dizia quando os meninos me chamavam de nomes estranhos. Eram nomes que usavam botas de cano alto. Casacos compridos de cores vistosas. Mamãe me abraçava. Maninha me olhava, a chupar o dedão, pois sempre deixava cair a chupeta e não sabia pedir que a ajuntássemos.

Mamãe era alta. Naquele tempo todos eram altos. Tinha o cabelo negro liso. Escorrido em direção ao queixo. E só usava brincos à noite; os colocava pouco antes de sair. Basta levantar os olhos e vejo seus brincos. Eles brilhavam aos raios da luz que vem dos poucos postes. Não é raro eu passar aqui. Mas sinto esses mistérios a cada piscar. Os carros que passam levam mamãe; e trazem de volta.

“Vamos menino, come logo que tenho de sair.” Porém nem sempre eu tinha vontade de jantar. Vez em quando, respirava fundo e saía. Me deixava lá. Então eu jantava uma sopa de ausência.

Primeira noite de mamãe em casa foi no meu aniversário. Meu primeiro aniversário foi aos sete anos. Mas não foram os colegas de classe. Nem a tia que eu não gostava. Nem a vó que eu não conhecia. Mas foi diferente ver a mãe em casa a noite inteira. Maninha encheu o nariz de merengue. Eu apaguei uma vela e ganhei um presente. Só depois fui ver que meu presente era uma marca inchada na coxa de mamãe.

“Agora vamos dormir.” E foi a única vez que maninha deixou o berço e eu deixei o sofá-cama para dormirmos os três juntos no colchão esticado no chão.

É sem sentido um homem parar à uma rua sozinho. Sentir garoa e olhar brincos e casacos largos. Mas vejo sentido em reparar mamãe e abrir os braços. E, de repente, faz sentido eu ver outra mamãe a acenar. E outra mamãe com sorriso largo. E também faz sentido aparecerem mais três mamães a mandarem-me entrar. E quando eu digo “Sim, mamãe.”, faz sentido apenas uma aproximar-se. Andar firme, andar ausente.

Mamãe sempre teve marcas pelo corpo. Eu não gostava delas. Eram marcas de tudo. E um dia haviam tantas marcas de tantas coisas que não havia mais pele original de mãe. “O que é isso, mãe?”. Ela me olhou demorado, virou o rosto pra maninha, depois voltou-se a mim e sacudiu meu corpo de menino já grande. “É a vida, filho.”

Nunca mais a vi. Em mim, também há uma marca. Que só eu posso ver. Uma marca que também cresce e refugia-se nesta rua. Por isso venho aqui. Para ver seus brincos, suas botas de cano alto, seu casaco de cor vistosa. Mas também vejo o que não quero ver. Marcas; muitas. Então visto-me apressado, para não ouvir as frases que fazem minha marca crescer. “Ande logo, tenho dois filhos para sustentar.”

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Dois graus centígrados (Rubem Mauro Machado)

Até domingo, tenho de matar 37 mil pessoas.

Está abafado, o suor brota na raiz dos cabelos, me inunda a testa, a nuca, o pescoço, não há como se habituar a esse maldito calor. Alguma dúvida? Nenhuma. Procedimento? O de sempre: chegada ao alvorecer, vias de fuga cercadas, não se deve deixar testemunha nem ter pena de ninguém, há sempre que vencer o impulso natural de querer se poupar as crianças. Certo? Certo.

– E o moral de seus homens, como está?

Hesito. O major Camilo curva-se um pouco para a frente, estreita os olhos, na leitura implacável de minhas reações. Estamos sempre sob avaliação.

– Em geral é bom, mas oscila – digo a verdade – O senhor sabe como é.

– Sei. Vou mandar um novo carregamento de Transformid.

Balanço a cabeça, em concordância. As malditas pílulas viciam, deixam os homens fora de si, enlouquecidos.

Passeio os olhos pela parede do QG forrado de mapas, num deles está circulado em vermelho o campo de refugiados a ser “apagado”, na nossa gíria. Noutros, estão assinalados alvos das demais unidades, em geral a média é de quatro incursões por mês para cada uma delas. A consumação de cada trabalho, mesmo com o nosso armamento moderno, exige horas e uma energia absurda. Armas bacteriológicas seriam mais discretas, mas seus efeitos poderiam se voltar contra nós. Bato continência, peço licença para me retirar. Quando estou saindo, o major grita:

– Ah sim, capitão, nem preciso dizer, a tropa vai ganhar uma remuneração extra por esse trabalho.

– Obrigado, major.

Pego o jipe elétrico, dirijo-me para o aquartelamento da UL Zeta, que comando. Todas as Unidades de Limpeza foram batizadas com uma letra do alfabeto grego, como Beta, Alfa, Gama, Delta e por aí vai. Alguns homens limpam armas no alpendre, outros jogam basquete na quadra de esportes, outros mais levantam pesos à sombra de uma árvore, são maneiras que têm de descarregar o estresse; eles detêm-se um momento ao me ver chegar, sabem que fui receber ordens, o que significa ação imediata. Matar, destruir, vira uma cachaça, uma necessidade, tem um componente quase orgástico; quando você arranca sangue, quer ver mais, sempre mais, alguns parecem não poder mais viver sem isso, o componente sádico muito forte dentro de nós. O problema é que a maioria, passada a orgia, entra em depressão, tem pesadelos à noite, todas as unidades registram elevado índice de suicídios.

Vou direto para o meu PC, desabo na poltrona, abro a blusa de brim, ligo o ventilador. Pego na caixa um lenço de papel, me ponho a limpar os óculos rayban. Mundo filho da puta. A culpa de tudo é a insaciável voracidade de nossa espécie: o leão, uma vez alimentado, deixa os restos da presa para o chacal; o homem não, quer mais, mais e mais, nunca se sacia. Sempre foi assim. Os políticos, que tanto desprezamos, sempre fizeram o jogo que no fundo queremos, daí vem a força que têm. E foi por isso que as tentativas, há pouco mais de trinta anos, de um acordo para deter o aquecimento global fracassaram. Ninguém, países desenvolvidos, em desenvolvimento, subdesenvolvidos, queria abrir mão de nada. Para fazer pasto para o gado, derrubaram-se florestas; e alguém desistiu de seus automóveis? Do consumo sem limites, como se as matérias primas fossem inesgotáveis? Como se a terra espoliada pudesse se renovar eternamente? Chaminés significam empregos, alegava-se; e quem não quer progresso? E mudar uma economia baseada em combustíveis fósseis seria contrariar poderosos interesses estabelecidos, seria mudar o eixo do poder. E assim, toneladas de CO2 continuaram a ser jogadas na atmosfera, resultando em mais aquecimento, num processo já quase irreversível. Vozes alertavam contra a insensatez, aqui, acolá; mas um bloco de gelo se desprendendo no Ártico, a milhares de quilômetros, parece um acontecimento remoto demais para perturbar o nosso cotidiano, para nos fazer crer em sua realidade, para nos obrigar a levantar da cadeira e tomar uma atitude. Verdade, os cientistas sempre souberam, o aquecimento da Terra é um acontecimento natural, cíclico, ao qual se sucede um resfriamento, alguns calculam que aconteça a cada vinte mil, 25 mil anos: a contribuição deletéria do homem na verdade não significa mais do que dois ou três graus no aumento da temperatura média do globo. Mas esses dois graus foram exatamente a gota que fez o copo transbordar, com a elevação dos mares e as catástrofes que daí decorreram. Pobre Havaí, pobre Holanda, pobre Indonésia.

Passo um lenço pela cara, pelo pescoço, bebo um copo de água gelada. Não estou com pressa de convocar os tenentes e sargentos, essa gente toda tão bem treinada e na expectativa aguda das novas ordens, homens escolhidos a dedo. Primeiro, preciso me recuperar desse cansaço que me esmaga. Quando chamá-los, preciso estar feroz e determinado, o maior erro de um comandante é demonstrar qualquer hesitação.

A verdade é que tudo foi previsto. O que não se esperava é que acontecesse tão depressa. Hoje aquele primeiro grande massacre, o de setembro de 2042, já foi assimilado, tornou-se um mero fato histórico, como a batalha de Salamina, a bomba de Hiroshima, o atentado a Nova York de setembro de 2001, poucos se lembram agora da comoção mundial que provocou, embora a grande maioria tratasse logo de buscar os argumentos que o justificavam. Desesperados pela fome e a sede, centenas de milhares de africanos, que haviam visto seus rios secarem, seus animais e colheitas morrerem na savana esturricada, como se à voz de um comando invisível, embarcaram num enxame de embarcações de todos os tamanhos e feitios em direção à Europa, encheram com elas o Mediterrâneo, que alguns órgãos de comunicação, com humor macabro, chamariam depois de Mar Vermelho. Cientes da catástrofe que se abateria sobre si, impotentes para impedir a enxurrada de miséria que se aproximava, as marinhas da França, Espanha, Itália e Portugal, numa ação conjunta, mandaram suas corvetas e fragatas varrerem para longe, para o fundo, para o inferno, aquela turba escura e esquálida, abafando seus gritos e seu espanto com a voz forte dos canhões e metralhadoras. E apenas podíamos então pressentir que aquela seria a primeira mortandade na série que se seguiria. Àquela altura, o nível dos oceanos não cessava de subir, engolindo em pouco tempo boa parte do Rio, Nova York, Xangai, Hong Kong, Marselha, Liverpool e outras centenas de metrópoles litorâneas, fazendo de Veneza um mito comparável ao da Atlântida. O Ártico encolheu na forma de um pequeno solidéu branco, países ilhéus do Pacífico sumiram do mapa, o Ceilão virou uma ilhota. Enquanto grandes porções do planeta convertiam-se num braseiro, outras, como a Inglaterra, congelavam por causa do desvio das correntes marítimas que amenizavam o clima. Com a produção agrícola e toda a economia mundial em colapso, multidões de refugiados climáticos vagavam de um lado para o outro, buscando uma quase impossível sobrevivência em meio à grande fome. Foi então que os países maiores fizeram aquele grande pacto secreto e foram criadas as unidades militares de extermínio. Não havia alternativa. A esterilização em massa não resolvia o problema da superpopulação, seus efeitos, muito demorados, serviam quando muito para travar o índice de crescimento populacional, nada mais que isso; e havia gente demais no planeta e comida de menos; chegou-se então à decisão fatal: para que um núcleo humano, afinal de contas, sejamos francos, a elite da humanidade, sobrevivesse, era preciso acabar o quanto antes com os excedentes, com aquelas multidões subnutridas empilhadas em acampamentos da periferia, que geravam doenças de toda espécie e eram uma ameaça o tempo todo de distúrbios, saques e invasões. E a escolha era uma só, lógica, imperativa até: o extermínio dos mais fracos, mais ignorantes, mais desprotegidos – os menos aptos.

Olho o relógio, depositado sobre o tampo da mesa. Um militar bem formado não discute ordens, cumpre-as. Vou chamar meu pessoal, repassar as instruções. É preciso não amolecer, não sentir pena, ressaltou o major. O novo alvo está estabelecido, a data também: o próximo ataque ocorrerá dentro de 48 horas, num réveillon em que fogos e gritos não serão de deleite. O pior são os gritos: atravessam as bolas de cera que entopem nossos ouvidos, continuam a ecoar depois de tudo terminado; por causa deles, muitos soldados preferem ouvir rock pesado enquanto trabalham. Depois, escavadeiras abrirão covas coletivas, tratores empurrarão os resíduos para dentro delas. Extenuados, embarcaremos em nossos helicópteros, regressaremos em silêncio para o quartel como zumbis, sacudidos por tremores, cada qual dono de suas próprias visões, à espera da próxima missão. Não fui eu que moldei este mundo. Ele não é o mundo que desejei para meus filhos. Mas que alternativa tenho eu?