domingo, 14 de outubro de 2012

Barba seca                         
(Rubem Mauro Machado)

Já no primeiro dia ficou claro que seríamos mandados para a guerra.

O Exército vai transformar vocês em homens de verdade, disse o tenente-coronel Bonera, comandante do Batalhão, diante dos recrutas perfilados no vasto pátio cimentado. Uma bandeira se agitava em patriótico frenesi, no alto do poste pintado de branco. Infantaria não tem moleza, continuou, é a arma que vê os olhos do inimigo. E quando esse momento chegar, quero que os olhos que nos enxergam estejam cheios de medo. Medo de vocês.

O Exército não é lugar de molengas e nem de boiolas, muito menos de covardes, completou o capitão Brickman, comandante da nossa Companhia, a II de Fuzileiros, quando mais tarde nos enfileiramos diante do alpendre do alojamento, cada um de nós tendo ao lado um saco de lona com nossos poucos pertences. O capitão caminhava de um lado para outro, peito estufado, batendo com o bastão de comando no coturno bem engraxado. De vez em quando parava e nos encarava feio, de cima para baixo, como se estivéssemos duvidando dele. Vocês são os defensores da pátria e de nossos valores. O inimigo representa tudo o que odiamos; quero que os corações de vocês estejam cheios desse ódio santo. É ele que nos levará à vitória.

Passeou os olhos pelas fileiras, como se buscasse qualquer fraqueza ou hesitação em nós. Atrás dele, os tenentes e sargentos, posição de descansar, mãos para trás, olhavam firmes para frente, por sobre nossas cabeças, todos muito marciais. E eu juro, completou o capitão, que esta vai ser a melhor companhia do Batalhão, nem que para isso eu tenha de arrancar o couro de vocês.

Alguns homens gostaram daquilo tudo. Eles haviam visto muitos filmes de guerra no cinema e na televisão e cada um se imaginava uma espécie de John Wayne. Estavam doidos para começar a dar tiros. No alojamento repetiam que o capitão estava certo: Exército era pra macho mesmo. E quando chegasse a hora do pega pra capar, os homenzinhos distantes que tinham o topete de nos desafiar iam ver o que é bom pra tosse.

Aquele machismo descarado talvez fosse a maneira que alguns encontraram de negar, para os outros e para si mesmos, o medo que nos apertava as entranhas. Embora, eu haveria de descobrir, de fato alguns homens, digamos um ou dois em cem, sejam assassinos por vocação e natureza, tenham gosto genuíno em destruir e matar. E, depois de viciados na adrenalina do combate, não possam mais, como todo drogado, viver sem ela.

Quem parecia não estar entendendo nada era Jones. Pernas arqueadas, uniforme mal ajambrado, jeito de caipira, tinha uma vaga idéia do que os oficiais estavam falando. Sabia que deveria odiar, e que mais tarde iria matar, uns sujeitinhos esquisitos a quem nunca vira e cuja língua não entendia: mas as razões para isso lhe escapavam. Eram inimigos, certo: mas se não estavam nos incomodando, se éramos nós que teríamos que pegar um avião, viajar horas sem fim, atravessar o oceano, como lhe explicaram, para chegar no país deles e mandar chumbo neles e acabar com a raça deles, porque não podíamos ficar nós por aqui mesmo, lavrando a terra em paz, tirando leite das vacas, dando comida pros porcos e pras galinhas, e deixar eles pra lá, cuidando da vida deles? Queriam tomar o que era nosso? Mas tinham eles aviões grandes para cruzar os céus até aonde estávamos? Tinham eles como chegar até nós? Não era melhor esperar por eles, se fosse o caso, e assim que fossem chegando, aos poucos, aí, então, sim, ir acabando com eles, um por um, para que aprendessem a respeitar o país dos outros? Se éramos tão mais poderosos, como o sargento Clark dizia, por que  ter medo deles?

Quando Jones, no alojamento, ensaiou em seu vocabulário escasso de homem do campo fazer essas perguntas sem pé nem cabeça, os homens, que desde o início o elegeram alvo preferencial de brincadeiras e sacanagens, deram-lhe respostas jocosas e perguntaram se ele estava com medo, se estava se cagando antes do tempo. Por covardia, calei; mas as dúvidas de Jones também eram as minhas.

O Exército é uma grande repartição pública como outra qualquer, logo constatei. Gastava-se boa parte do tempo com formalismos aborrecidos, nada heróicos. A burocracia se sobrepunha à lógica, o estabelecido não admitia o diferente. A hierarquia derivava não da capacidade individual, mas de fatores variados, como o mero tempo de serviço. Ponderações não eram bem vistas.

Correria e inatividade se alternavam, numa rotina absurda e irritante. Podíamos ficar 40 minutos enfileirados ao sol, à espera de alguma decisão, como se o tempo fosse um bem supérfluo, antes que o capitão chegasse para o tenente com as fatais palavras “última forma”; e anunciasse um novo rumo. E lá íamos, marchando, feito bonecos, engolindo a decepção, perdida toda autonomia.

Pareciam nunca saber exatamente o que fazer conosco. E cada ato nosso, até os mais simples, como se dirigir ao refeitório, era determinado por outrem, sempre em caráter coletivo, ao ritmo do bater de pés. Regulamentos tudo previam. Sob o olho atento do relógio, arrumávamos a cama de manhã, dobrando o cobertor da maneira ensinada. Tínhamos de engraxar os coturnos pelo menos três vezes por semana, polir a fivela do cinto, limpar os fuzis a três por dois; fazer a barba todas as manhãs, às pressas, antes do café; e só havia uma maneira de prender a pá ou a lona da barraca na mochila; ou de se dirigir a um superior; e só uma posição fundamental no início da sessão de ginástica. O corte de cabelo igualava a todos e o manual dizia como cortar a unha do pé. Entrávamos em forma para tudo; só faltava ter hora para ir às latrinas, cobertas pelo cheiro acre de creolina.

Marchávamos até o refeitório para o café e o almoço; e para a sala de instrução, para o estande de tiro, para a ginástica calistênica, para o campo de futebol; isso tudo depois da formatura matinal do regimento, seguida de duas horas de interminável ordem unida, quando a voz de comando nos eximia de pensar ao tomar uma nova direção: obedecer tornava-se uma coisa automática. E no fim do dia, as companhias tinham de alinhar, cada uma diante do seu alpendre, para ouvir a leitura do boletim, quando ficávamos sabendo das eventuais punições por indisciplina no Batalhão; e éramos informados de que no dia anterior nossas heróicas tropas, numa antecipação do nosso trabalho, haviam matado 80, ou 150 inimigos, nas batalhas distantes, notícia que, embora sem comprovação, era saudada com um urro selvagem, festa de contagem de jogo de futebol. E ao cair da noite mais uma vez seguíamos marchando para o jantar. Não passávamos de frações de uma totalidade; não à toa, cada um de nós ganhara ao chegar um número, desde então inseparável do nome de guerra.

Passadas as primeiras semanas, integrara-me àquela rotina. Embora ainda não tivéssemos disparado um tiro, não mais me sentia o recruta perdido que certa manhã, depois de tomar as vacinas para tifo, tétano e febre amarela, e de ter o cabelo derrubado por um cabo improvisado como barbeiro, se viu sentado no alpendre da II Companhia de Fuzileiros, tentando achar, na montanha de coturnos depositada no centro do círculo que formávamos, um par que desse no pé. E que naquela mesma tarde, ao comando do sargento Stone, ficou ensaiando com os colegas durante horas bater continência.

Naquele dia constituíamos um bando ridículo de palhaços verdes, já que nossos corpos magros sobravam dentro dos uniformes ainda à espera de ajuste; e eu olhava com inveja os soldados veteranos que passavam altaneiros por nós, dentro de uniformes bem recortados. Ainda demoraria uns dias antes que, graças ao trabalho de tesouras, agulhas e linhas, nosso ou de mulheres do bairro pobre das redondezas, ávidas para faturar um trocado, ficássemos indistinguíveis das praças veteranas no trânsito movimentado das ruas do quartel. Este era formado por um conjunto de pavilhões amarelos, de um só andar e com um alpendre na frente (a que se subia por quatro degraus laterais), cada qual abrigo de uma companhia de infantaria. Outros prédios sediavam cozinhas e refeitórios, depósitos, a escola regimental – e a cadeia, de portas e janelas gradeadas, repouso dos muito agitados. Nos fundos, para além da planície cimentada das formaturas matinais, ficavam o estande de tiro, o paiol, a pista de atletismo e o campo de futebol. A testa do complexo era constituída pelo único edifício de dois andares, com o imponente portão de entrada cavado em arco no seu ventre, vigiado eternamente por uma sentinela. No andar superior ficavam os alojamentos dos oficiais solteiros; no térreo, o corpo da guarda. A cidadela, masculina, era cercada por um muro caiado de branco, que nos separava do grande mundo lá de fora, o mundo da normalidade, de que estávamos excluídos, quem sabe para sempre.

O capitão Brickman cumpriu a promessa de nos arrancar o couro. As horas de marasmo, em que ficávamos à espera não sabíamos bem do quê, ou aquelas dedicadas à instrução teórica, quando, depois do almoço, sentados numa lona estendida sobre o chão do alpendre, ainda no processo de digestão da comida difícil, lutávamos para que os olhos não fechassem ao som da cantilena monótona do tenente Knapp a nos falar dos ângulos de tiro dos morteiros, eram intercaladas por furiosa atividade física: ordem unida, ginástica com armas e propriamente dita, práticas desportivas, travessias de obstáculos pendurados em cordas, marchas diárias e noturnas; e por exercícios exaustivos no campo de instrução, situado fora da cidade e que alcançávamos caminhando em linha dos dois lados da estrada por nove quilômetros, dobrados sob o peso do equipamento.

 Lá, avançávamos contra um inimigo hipotético, urrando um ódio que tentávamos aprender, dando tiros de festim, jogando-nos no chão e rolando ao apito do instrutor, não importa houvesse à frente pedras ou espinhos que nos deixavam contundidos e arranhados.

O pior de tudo para mim era vir na corrida e, com uma raiva inteiramente nova, enterrar a baioneta calada em bonecos recheados de palha. Eu não queria pensar na possibilidade de um dia a palha se fazer carne, de ter de furar um ser humano, em um ser repleto de sangue que espirraria longe – e muito menos que alguém fizesse aquilo comigo.

No combate à distância atira-se numa sombra sem identidade, que se desloca e cai. É muito diferente do combate corpo a corpo, quando você percebe nos olhos do outro a surpresa e o terror, capta o cheiro de suor e medo que emana do corpo à frente – e sente a resistência macia da carne que sua lâmina perfura no impacto da corrida, até chocar-se contra a dureza de um osso. Lâmina que você torna a libertar erguendo o pé e empurrando o corpo do inimigo com a sola do coturno, como quem se livra de um fardo incômodo.

Passada a tempestade, nos dias que se seguem você se pegará criando uma biografia, inventando um nome, um trabalho e uma família para aquele infeliz. Vai pensar, nos momentos mais inesperados, ao acordar de manhã, enquanto faz a barba, no meio de uma conversa, ou enquanto dá uma garfada no prato de comida, na dor que sua vítima sentiu no momento fatal; e a que a família dele terá sentido ao receber a notícia de sua morte, o espanto do pai, os gritos da mãe, as lágrimas das irmãs. Vai imaginar como devem ser as tardes calmas da cidade ou aldeia natal daquele desconhecido, que veio para sempre e de maneira inesperada tornar-se parte de sua vida e da sua lembrança; no que ele achava graça, se gostava de música ou de assobiar, se tinha um gato ou um cachorro, se gostava de alguma garota, se era inteligente ou estúpido, alegre ou melancólico, se pensava na morte, se fabricava para si um futuro: e tudo isso por que você terá visto seu rosto de menino; e por que no fundo ele não é tão diferente de você. E nunca mais você deixará de ser perseguido pelo grito ou gemido fundo daquele segundo fatal, pelo som do choque da baioneta contra o osso; e não haverá sabão que consiga lavar de si o sangue que sujará as suas mãos e o seu uniforme de matador.

Não, eu na era adepto de baionetas. E tampouco me entusiasmei quando pouco antes de deixarmos o quartel rumo a um novo destino, cada um de nós foi presenteado com um punhal de dois gumes, afiadíssimo e ligeiramente recurvo, que a partir dali levaríamos sempre à cintura, como parte do equipamento. Como no caso da irmã maior, ele apresentava uma reentrância longitudinal no centro da lâmina que, descobri, tinha por finalidade provocar hemorragia interna.

Ainda bem que ao voltar para o alojamento à noite, depois do jantar, desmaiávamos de cansaço ao nos jogarmos nas camas; se tinha pesadelos, não conseguia me lembrar deles depois da noite que parecia tão curta, violentada pelo precoce toque de alvorada, já no esforço de abrir os olhos, sob o castigo das palmas e gritos de “levanta, levanta” dos sargentos, ainda escuro lá fora. E você mal tinha tempo de entender onde estava, antes de começar a correr, para não se atrasar.

Os momentos de folga eram gastos com cochilos: sempre havia alguém a imitar um cadáver de boca aberta nos nossos beliches duplos, um fio de baba escorrendo pelo canto da boca, morto para os que se dedicavam a costurar uma peça de uniforme, lustrar a fivela do cinto de lona, ou apenas mirar um ponto fixo no teto, nuca pousada na palma das mãos; ou que, sentados no chão frio do alojamento, se empenhavam num barulhento jogo de cartas: gritar e discutir é um dos modos de espantar o medo.

Nessas horas ociosas, em que éramos por um curto tempo donos de nós mesmos, Jones sofria com as piadas e provocações:

– Ei caipira, é verdade que lá na roça vocês trepam com as vacas e as galinhas?

No começo Jones ainda dava um risinho amarelo; com o tempo foi se fechando cada vez mais, afundando no mutismo, na perplexidade de ter sido lançado sem consulta num mundo hostil, que apesar do esforço tinha pouca possibilidade de entender. Mais do que maldade, eu sentia, havia nos homens a vontade de se sentir superior a alguém que parece inerente a todos nós. Éramos todos ali pobres, fodidos em maior ou menor grau, no máximo remediados: e mesmo assim ainda não tínhamos percebido que os ricos não iam para a guerra. Mas ser da cidade parecia uma boa vantagem em comparação com um camponês bronco.

Por pena e solidariedade e também pelo acaso de que Jones era de meu pelotão e seu beliche ficava próximo do meu, fui aos poucos me aproximando dele, puxando conversa, iniciando uma improvável amizade. Numa tarde morna de domingo em que a maioria dera uma escapada para a cidadezinha próxima, na esperança de uma trepada e de embebedar-se, e os restantes, afora os que engraxavam sapatos e coturnos, roncavam abraçados ao colchão de seus beliches, Jones, numa prova de que eu ganhara sua confiança, ou por pura necessidade de comunicação, aproximou-se de onde eu deitado tentava ler um livro, puxou uma foto rachada do bolso e me mostrou:

  – Eu e Bolota.

À frente de um galpão e de um terreno arado, Jones abraçava-se ao seu cachorro vira-lata. Partilhou comigo a contemplação enternecida e compreendi, mais do que dos pais e dos irmãos, ele sentia falta do seu cachorro.

 – Você acha que, se eu ficar muito tempo fora, ele vai acabar esquecendo de mim?

 – Claro que não, Jones. Os cachorros nunca esquecem seus donos. O dia em que você voltar pra casa, vai ver só os pulos que ele vai dar.

Então me contou como Bolota era esperto e como ficava assanhado quando o via pegar o caniço para ir pescar no riacho: seguia na frente ao longo da trilha, sacudindo o rabo de contente.

 – Soldado, chão. Vinte flexões de braço; rápido, vamos lá!

Tínhamos de estar sempre alertas (sobressaltados?). Qualquer hesitação, qualquer demora em compreender uma ordem, qualquer retardo em pegar um objeto, em arrumar a cama, sair do chuveiro ou entrar em forma, era punido pelos sargentos e oficiais com flexões de braço ou com “cangurus”, movimento em que, dedos entrelaçados na nuca, tínhamos de descer e subir, alternando as pernas. Não se tratava de sadismo, eu sabia: a agilidade de reflexos poderia nos salvar a vida no campo de batalha. O último a entrar em forma era sempre punido, ainda que necessariamente sempre tivesse que haver um último. Tudo isso é para o nosso bem, eu me consolava.

O problema é que o tempo de Jones não era o nosso. Custava a entender o que se esperava dele. Gestos lentos por natureza e por cultura, era alvo da irritação, fingida ou verdadeira, de oficiais e graduados, o que só contribuía para que ficasse ainda mais aturdido, cometesse mais erros. Tornou-se o campeão em nossa Companhia de flexões e cangurus, o que estimulava os homens, mais tarde, a fazerem piadas sobre ele e a inventarem-lhe diferentes apelidos. Eles avaliavam que os homens do campo, por sua lerdeza, são todos uns pamonhas. Mas eu, depois de passar uma temporada numa fazenda, sabia por experiência própria que sua natural lentidão embutia profunda e inata sabedoria: é que no mundo rural os trabalhos são tão pesados e as distâncias a percorrer sempre tão grandes, que se eles executassem suas tarefas na velocidade a que nós citadinos nos habituamos, tombariam em breve de exaustão.

Um dia o tenente Porrada, como havíamos apelidado o tenente Anderson, num sintoma claro de que nossos superiores estavam sempre nos avaliando e conversando a nosso respeito, o advertiu, meio rindo:

  – Jones, se molengas tivessem penas, você seria um peru.

A partir daí meu novo amigo ganhou o apelido de Jones Peru, e era saudado por uma sinfonia de glu, glu, glus em falsete, sempre que entrava no alojamento. A sua revanche, involuntária, veio pouco depois, por ocasião de um exercício noturno no campo.

Tínhamos de penetrar rastejando num perímetro defensivo, percorrido por patrulhas armadas de lanternas. À medida que os atacantes eram achados no meio do capim, caíam prisioneiros. Nossos corações batiam com violência, a ponto que temíamos pudessem nos denunciar, quando os “inimigos”, atraídos por algum ruído, parados junto a nós, quase nos pisando, vasculhavam o entorno com o facho de luz e, para nossa incredulidade, não nos descobriam, na noite sem lua. Mas cedo ou tarde tínhamos de nos mover; e fomos caindo, um a um.

Quando por volta de uma hora da manhã os apitos dos oficiais assinalaram o fim do exercício, só três homens haviam conseguido entrar no perímetro. E um deles era Jones, ainda por cima o primeiro a atingir o ponto designado. Ou seja, no momento em que tínhamos de nos comportar mais ou menos como um bicho arisco e astuto, um felino capaz de enxergar no escuro, Jones, integrado em seu elemento, com a velha experiência de caçador, fora autor da melhor progressão individual de toda a Companhia, o que lhe valeu o primeiro elogio dos superiores em todos aqueles meses. Os sargentos não perderam a oportunidade para gozar com a nossa cara:

– Quem diria, hein: o matuto deu um banho em vocês, que se acham muito espertos!

O inverno chegou, recebemos ceroulas e japonas. Abandonar pela manhã a quentura dos cobertores tornou-se mais difícil; e com o acréscimo de cobertas a arrumação da cama demorava dois ou três preciosos minutos a mais, os lençóis, bem esticados, não podiam ter uma ruga, os cobertores por cima deles desenhando meias luas. Os atrasos matinais aumentaram e as punições começaram a ficar pesadas.

Certa manhã Jones demorou-se arrumando a cama e não teve tempo de fazer a barba. O sargento Clark não percebeu a sombra mais escura no seu rosto. A Companhia marchou batendo forte o pé no chão até o pátio cimentado, para a formatura diária do Batalhão. Depois da continência à bandeira comandada pelo toque de clarim, e da arenga do tenente-coronel Bonera, nós, posição de descansar, fuzil ao lado do corpo, cabeça erguida, aguardamos que o sub-comandante, major Clay, acompanhado de outros integrantes do Estado-Maior, percorresse as fileiras, examinando-as em busca da menor falha. A ansiedade subia dentro de nós nesse momento, por mais confiantes estivéssemos de que não tínhamos nenhum botão faltante no uniforme, de que as fivelas dos cintos faiscavam, e de que nossos coturnos podiam ser usados como espelhos. Até que o olho treinado do major detectou Jones na fileira do fundo, a dos baixinhos.

Encaminhou-se até ele:

 – Soldado, nome e número!

Jones apresentou-se.

 – Não fez a barba hoje, soldado?

 – Não fiz, não senhor.

 – E pode-se saber por quê?

 – Não tive tempo, senhor.

A tensão tomava conta de nossa Companhia, como se a falta de um se comunicasse de algum meio misterioso a todos. Até o capitão Brickman à testa de nossa unidade parecia mais rígido do que o normal.

A uma ordem do major, Jones saiu de forma. O sargento Stone o conduziu até um pequeno estrado de madeira situado ao lado do palanque, à frente da tropa. Um cabo recolheu o fuzil e o capacete do faltoso.

 – Não podemos admitir o menor desrespeito às ordens recebidas. E todos sabem que têm de fazer a barba todas as manhãs – declamou o tenente-coronel ao microfone – O soldado aqui ao lado, para exemplo da tropa, vai fazer a barba agora, na frente de todos.

Postado na fileira da frente, vento frio congelando o nariz, pensei aflito, porra, por que tanta rigidez? Sabíamos que na zona de guerra todo mundo cagava para regras e regulamentos: os soldados, cerveja grátis à vontade e ao alcance da mão, viviam bêbados, ou drogados, com a conivência dos superiores. Mas ali, longe dos combates, do medo e do horror, o que imperava era o rigor dos princípios, as etiquetas da caserna, o formalismo dos códigos.

Jones subiu no estrado. O cabo entregou-lhe um espelho de mão e uma navalha. Sem água ou sabão, nosso companheiro – sim, nesse momento mais do que nunca Jones era nosso companheiro, era cada um de nós, que se imaginava em seu lugar – começou a raspar a face, o queixo, o pescoço, fechando por vezes os olhos, torcendo a boca num rictus involuntário: era o castigo a que dávamos o nome de “barba seca”. O frio da manhã que corava os rostos deixava a pele sensível, tornava ainda mais difícil a raspagem, realizada em meio a um silêncio de igreja, como se ali não estivessem reunidos mais de 700 homens. Dava para ouvir a bandeira se debatendo. Os minutos se alongavam, aquilo parecia não ter fim.

Quando terminou, o rosto de Jones, que nunca me parecera tão ingênuo e juvenil, recobria-se de uma camada fina de sangue: um palhaço pronto para o picadeiro. Consegui perceber como seus olhos haviam se enchido aos poucos de lágrimas, de dor e humilhação. “Chega, está bom”, decretou o sargento Stone, que ao pé do estrado acompanhava a operação. Jones devolveu o espelho e a navalha, recebeu de volta o fuzil e o capacete, retornou às fileiras. Desfilamos diante do palanque batendo firme o pé no cimento, a formatura chegou ao fim.

No alojamento, o sargento enfermeiro secou com gaze e cuidado o rosto retalhado de Jones, passou uma pomada cicatrizante. Nesse dia pouco se ouviu a voz de alguém em nosso alojamento. Ao fim do expediente, ao nos recolhermos, a bagunça habitual foi substituída por uma estranha contenção, como se alguém houvesse morrido.

Se antes falava pouco, a partir desse dia Jones passou a falar só quando convocado, em geral monossílabos. Na mesa, mal tocava a comida. Os homens não mais o chamavam por apelidos ou faziam piadas a seu respeito. A cada momento alguém, puxando conversa, fingindo naturalidade, se aproximava dele para oferecer chicletes ou repartir uma barra de chocolate: Jones apenas sacudia a cabeça. Quando tentei falar com ele sobre Bolota e contei em voz alta para os soldados Perez e Smith, vizinhos de beliche, algumas façanhas do cachorro, “nem parece bicho, parece gente, vocês não acreditam”, não consegui qualquer envolvimento da parte de Jones, que parecia escutar minhas palavras sem ser atingido por elas.

Chegou por fim o grande momento do juramento à bandeira, quando oficialmente deixávamos de ser recrutas, para ser considerados soldados de verdade. Já havíamos feito a essa altura exercícios de tiro real, e mergulhado em estreitas trincheiras que blindados atravessavam velozmente, provocando uma fina chuva de terra sobre nossos corpos encolhidos no fundo. Ao longo daqueles meses participamos de patrulhas noturnas, aprendemos a instalar minas, a camuflar posições, atiramos de metralhadora e morteiro, transpusemos riachos pendurados em cordas, rastejamos sob emaranhados de arame farpado. Em longas marchas de até 35 quilômetros suportamos nas costas o peso de metralhadoras ponto 30, de placas-base de morteiro, capacete de aço nos amassando o cabelo, enquanto o suor escorria pela testa e nos queimava os olhos. Sob o sol que nos assava a parte posterior do pescoço, até fazê-lo parecer um naco de lombo mal passado, ou envoltos pela névoa fria da manhã, tomamos o rumo de horizontes que pareciam se afastar, enquanto bolhas rebentavam nos pés e frieiras esfarelavam a pele entre os artelhos: um caminhão na retaguarda ia recolhendo os estropiados, para vergonha dos fracos.

Dentro de dois dias embarcaríamos para um campo de treinamento, num Estado distante e quente, onde completaríamos nossa diplomação na arte de matar e morrer, antes da Grande Viagem. Muda excitação atravessava todos como uma corrente de eletricidade, nos deixava a boca seca e um vazio na boca do estômago. Só Jones, olhar perdido, parecia cada vez mais indiferente a tudo.

Nessa noite tive um sonho ou, pelo menos, pela primeira vez me lembrei de um sonho ao acordar: nós nos afastávamos pela estrada, em meio à noturna escuridão, iluminados pelos reflexos das chamas que consumiam nosso quartel.

Manhã de formatura festiva, ânimo inaugural, sentimento de aproximação de momentos decisivos, marchamos para o pátio cimentado: era a despedida do local que fora o nosso lar nos últimos meses. O capelão, equipado com uma Bíblia e ostentando a patente de capitão, nos abençoaria e às nossas armas. O general Taylor em pessoa estaria presente e uma banda militar executaria o Hino Nacional.

A tropa postou-se ante o palanque, onde o tenente-coronel Bonera conversava com outros oficiais à espera do general. Caniços metálicos, dois microfones de pedestal aguardavam as vozes de estímulo dos grandes chefes. À direita do palanque perfilava-se a banda, instrumentos no chão; à esquerda, via-se o pequeno estrado de madeira, palco da humilhação de Jones. Enfurecida como nunca, a grande bandeira tremulava no mastro. Posição de descansar, fazíamos o que um soldado mais faz, esperar.

E então, para surpresa geral, percebemos com o canto do olho Jones adiantar-se, passar por entre nossa formação, abandonando as fileiras. Caminhou em linha reta em direção ao estrado, num passo firme e decidido. Tomado de surpresa, o universo imobilizou-se. Os oficiais no palanque pararam de conversar, sem entender o que aquele soldado estava fazendo.

Meu coração disparou, meus olhos arregalaram-se: meu pobre companheiro havia enlouquecido? Eu só pensava na punição a que estava sujeito, por sua atitude fora de propósito.

Jones encostou o fuzil no estrado de madeira, tirou o capacete. Subiu no estrado, encarou a tropa por segundos. Todos os olhos estavam fixos nele. Puxou do cinto o punhal que recebêramos há pouco mais de uma semana e ainda assim demorou uma fração de tempo para que todos entendessem o que pretendia. E então ouvi o grito estrangulado de Ismael a meu lado, enquanto oficiais e sargentos próximos do palanque corriam em direção ao estrado. A voz do tenente-coronel Bonera soou com energia no alto-falante, em meio a um sussurro que ameaçava alastrar-se pela grande mancha verde:

– Ninguém se mexe. Silêncio!

Engoli o grito. Senti a vista embaralhar, o enjôo subiu forte do estômago. Achei que ia desmaiar, o sangue me fugindo; disse a mim mesmo que não tinha o direito de mostrar fraqueza. Agüentei firme, cabeça levantada. Eu agora era um soldado.