quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Melhor voltar para casa (Cláudia Baumgarten)

Querida, hoje eu acordei diferente. Tu sabes como as dores preenchem a vida. Mesmo eu ingerindo essa infinidade de pílulas coloridas, as dores continuam a me perseguir. Elas se tornaram as minhas leais companheiras. Elas te substituíram, Celeste. Os anos se tornaram mais difíceis sem tua presença. É viva a cena do dia em que a tiraram de mim: A violência de branco, o semblante amedrontado das crianças – o caçula Alfredo tinha apenas dez anos - e o olhar desconfiado dos criados. De todos, ficou só a filha da Firmina, que limpa a casa. E basta, não preciso mais dos outros. Ainda moro aqui no Solar dos Magalhães onde tudo se deteriora. As cortinas do nosso quarto não são mais tão claras e têm as marcas de visitas das traças; o colchão, uma vez macio e convidativo, tem manchas amarelecidas; os móveis não escondem as ranhuras causadas pelos cupins. Que saudade de tuas eau de toilette. Ao invés dos suaves aromas, a vulgaridade do mofo e da urina. Isso foi o que me sobrou e em nada lembra nossos áureos tempos onde tinham vez as viagens ao primeiro mundo, os amigos influentes e os socialmente importantes com suas generosas festas. Lembra quando oferecemos nosso apartamento em Paris para o governador Flores da Cunha? Ou quando hospedamos os filhos de Arthur e Elisa Klein? Quanto embaraço, em pleno estopim da guerra. Fazíamos parte do seleto círculo da alta sociedade porto-alegrense. Mas isso faz tanto tempo. Os que não morreram, se afastaram naturalmente. Bando de hipócritas!

Nossos filhos? Não falo com eles nem tenho notícias. Eu não telefono, eles também não. Eu não os visito, eles tampouco. Ainda lembro bem dos quatro correndo pela casa e tu, com a severidade doce de mãe, chamando-lhes a atenção aos bons modos de crianças bem educadas; os quinze anos de Celina em 1944, nossa última grande festa; Corina, coitada, não teve sua apresentação à sociedade. Estava sem a mãe e nunca me perdoou por isso. O Alfredo, em minhas divagações, parece nunca ter saído dos cueiros. Estou um pouco confuso. O dia de hoje foi exaustivo. Não sei se essas lembranças incluem o Geninho ou sou eu quem o resgata de algum porão sujo e o enxerta nelas. Até hoje não sei o seu paradeiro. Nossos filhos se afastaram de mim; não tiveram culpa. Deixem-me em paz! – gritei, certa vez. E eles me deixaram. Mas não fica preocupada, eu ainda tenho a Negrinha. Eu não sei o seu nome de batismo, nunca consegui gravá-lo na memória. Faço uma deferência ao seu tom de pele, nada mais. Toda vez que a chamo assim, arqueia uma das sobrancelhas, enrugando um pouco a testa. Acho que não gosta, mas eu não me importo. Ela é paga para cuidar de mim. Diz que faz curso superior de enfermagem, mas eu duvido. Desde quando negros entram na faculdade para estudar? Mu-la-ta, seu Eugênio. Negra, não. Ela sentencia, cheia de si. Parece ter saído do quadro do Di Cavalcanti que temos na biblioteca. Para mim não faz a menor diferença, eu não ligo a mínima para a cor da pele dela, desde que faça as coisas certinhas, não falte ao serviço e, o principal, que fale pouco, quase nada.

Eu disse que acordei diferente. Abri os olhos antes do ronco do despertador, um hábito que venho cultivando há algum tempo. Não gosto do barulho dos alarmes dos relógios, eu já experimentei e quebrei vários. Também não aprecio ser acordado pela enfermeira. Prefiro acordar sozinho, sempre a mesma hora. Hoje ele tentou aplicar o golpe baixo da falta de luz. Mas eu fui o vencedor, mais uma vez. Zombei dos seus enormes olhos vermelhos piscantes, pareciam tiques nervosos. Preciso dele porque consigo enxergar as horas mesmo sem os óculos. Malditos. Nunca sei onde os coloco, e vem a Negrinha e me entrega. Às vezes penso que ela os esconde de propósito, só para me irritar. Não consigo ler, cansa. Os olhos ardem, lacrimejam. A visão fica embaçada, tal qual a janela desse quarto, que nada se vê através. Tolerante, suporto a sofrível leitura do jornal pela minha cuidadora. Criatura esquisita. Já desisti de manter conversa com ela. Sua cultura se resume aos signos do zodíaco; na política seus comentários são carregados de um discurso esquerdista radical. Em outros tempos, seria liquidada.

Sonhei contigo noite passada, Celeste. Burlavas o esquema de segurança, passavas pelo portão de ferro e vinhas ao meu encontro, amável, sem dizer nada. Um vestido azul, pouco decotado, vestia teu pequenino corpo. Lúcida e radiante. O cabelo farto estava preso, apenas alguns fios se rebelavam caindo ao lado das orelhas ornadas pelos brincos de mamãe – aqueles que te dei no primeiro ano de casamento. Generosa, me estendeste a mão e eu te convidei para dançar. Deslizávamos ao som de Danúbio Azul quando percebi que o ritmo clássico deu lugar ao popular. O salão nobre do Clube do Comércio transformou-se numa gafieira desclassificada. Fiquei desajeitado, pois não sabia te conduzir. Tentei me desvencilhar de ti e pedir à orquestra que parasse com o insulto, mas não consegui, me seguravas forte e me conduzias ao sabor dos acordes frenéticos. O roçar das tuas coxas me causavam um prazer juvenil. Segurei teu corpo com mais firmeza enquanto sussurravas algo que não pude distinguir, o som no salão estava ensurdecedor. Meu corpo suava por todos os poros e o teu também. Um susto me acometeu quando visualizei outro rosto e não o teu. Era mais escuro, com feições mais fartas; os cabelos muito ondulados, negros. Os cheiros se misturaram e eu despertei suado, ofegante e com o pijama molhado. O sonho transformou-se em pesadelo. Engoli o orgulho e a vergonha, esperei a chegada da Negrinha com a bacia d’água para meu banho matinal.

É degradante essa hora. Detesto o contato em minhas partes íntimas. Ela me tocou de um jeito que mulher decente não tocaria. Uma despudorada, isso sim! Nesse momento, a Negrinha fica muito perto de mim. Dá até para sentir a sua morrinha. - Não tens tempo para te banhar? Não tem água quente em casa? – eu pergunto. Nesses dias frios é bem compreensível desprezar um banho dia e outro. Ela responde: Tomei sim, seu Eugênio. Tomei sim. Fez bico de passarinho e começou um assobio, afinado e insuportável, de uma canção que não sei qual é e nem desejo sabê-la. Já pensei em oferecer-lhe meu chuveiro para espantar a catinga, meu lar. O que pensarias disso, Celeste? Desisti e pedi para acelerar a dupla tortura.

É mesmo, eu disse que acordei diferente. Segura meus voos, depois de velho dei para devaneios impróprios. Desculpa, querida, manterei a compostura. As dores não me visitaram hoje, deram uma feliz trégua ao meu corpo. Eu já nem sabia o que era ficar sem dor. Pude levantar-me sozinho, sem o braço extra da Negrinha, porque ela sempre está por perto quando eu desperto. Ela escancarou um sorriso alvo – que dentes perfeitos, eu nunca havia reparado, ou talvez nunca tenha sorrido para mim – e disse: Muito bem, seu Eugênio. Muito bem. Pelo visto, o senhor acordou animado e de bom humor! Percebi que eu retribuía àquele meigo sorriso. A sua voz foi um convite à vida. Combinava com o dia ensolarado que fazia lá fora e que eu provoquei para entrar. Abri as janelas, um rastro de poeira dançante pode ser visto, e o sol aqueceu a tua cadeira de balanço. Há muito eu não respirava um ar tão fecundo, gelado, revigorante. Tive um desejo enorme de tomar o café da manhã na cozinha, não mais na cama, junto aos lençóis senis e amarrotados. Na cozinha, sobre uma toalha limpa, comer pão com manteiga e café bem forte. Mas o doutor proibiu, senhor, advertiu a petulante. Aos diabos, o doutor! – gritei. Enquanto me deleitava com tamanha fartura, Negrinha me observava atenta, enchendo vez em quando a cuia com água quente. Lembrei da minha meninice na estância de papai e das rodas de chimarrão com a peonada. Mamãe não gostava, achava um hábito subalterno e para não afrontá-la, nunca bebia em sua frente ou com os negros. Ela jamais me perdoaria se o fizesse. Acho que Negrinha teria sido escrava de dentro de casa se vivesse àquela época. O que tem a cor dela, Celeste? Não podemos ser preconceituosos nesses tempos modernos. Ouvi dizer que é crime.

Quis sair daqui. As paredes do corredor que dá acesso à sala social, tomadas por quadros com fotografias desbotadas de cinco gerações dos Magalhães, pareciam estreitar-se. Pude até sentir a respiração daqueles que insistem não ser esquecidos, talvez fosse um convite para ficar ali estampado também. Senti medo, uma urgência em ver a vida além delas. Para aplacar o vento minuano que insistia em soprar, vesti o casaco de couro; de longe, petit pois, de perto, bolorento. Melhor se tivesse um poncho. À luz do dia, em plena rua, minhas pupilas diminuíram e me causaram vertigem. Segurei-me no braço da enfermeira, evitando a queda. Fomos à Praça Quintilhano. Está muito diferente daquela que frequentávamos, tem cerca e recebe visitantes pouco ilustres. O passeio trouxe à tona lembranças até então aprisionadas em um sótão escuro, revistas como um filme em preto e branco. Vi jovens abraçados nos bancos de madeira, crianças pulando alvoroçadas pelo gramado e seus cães correndo atrás... Pensei na brevidade da vida, da nossa vida. Engraçado, hoje as lembranças não doeram, ficaram coloridas de novo. Precisei sentar. O sol refletido no uniforme branco da Negrinha a deixou mais escura ainda. As suas mãos pousadas sobre os joelhos estavam bem feitas, unhas curtas e sem esmalte. Irias gostar, Celeste. Apesar do odor, ela parece asseada. Não trocamos uma palavra, mas nos entendemos muito bem. Foi o silêncio que evitou o abismo entre nós, ela sabia disso. Talvez seja mais inteligente que eu previra. Tanto faz, agora.

As horas passaram e o estômago reclamou pelo almoço. Pretendia ser comensal dos Ávila, mas não sei se vivem ainda ou se me receberiam. Paramos num restaurante qualquer, com comida servida a num tal sistema de buffet. A Negrinha me ensinou como funcionava e me serviu, sem o menor requinte. Não havia garçom para nos servir, acreditas? Vi nos olhos dela o receio em relação ao que pedi para comer, mas ela nada disse. Minha doce cúmplice. Eu disse doce, Celeste? É que eu pensava em ti e no tempo que almoçávamos juntos. Lembra? Éramos muito felizes, não? Cometi o disparate de pedir um vinho e bebê-lo com ela. É triste beber sozinho. Pedi o melhor Cabernet Sauvignon que o lugar oferecia e degustei como se fosse um beijo há muito desejado. A língua deu uma travada ao primeiro contato com o rubro líquido. Eu o fiz dançar por todos os cantos da boca, amaciando o sabor. – O aroma é de especiarias e frutas vermelhas maduras, percebes? É o carvalho que dá o toque amadeirado. Os vinhos de guarda são envelhecidos em barricas de carvalho. – Ensinei à Negrinha um pouco da arte de Baco. Ela o bebeu com o mesmo interesse com que me escutava.

O meio da tarde chegou cedo demais. Pedi que me levasse ao teu encontro. Não! Eu não disse nada a ela. Fomos de táxi. O caminho até o Hospital São Pedro está tão diferente. Não reconheci minha cidade. Semáforos, automóveis, edificações modernas e altas, outras apenas rejuvenescidas. Não a vi crescer, prosperar. Há quanto tempo o senhor não sai de casa, seu Eugênio? Perguntou a Negrinha, admirada com a minha perplexidade. Vinte, trinta anos? Perdi as contas, meu bem. – respondi. Oh, não te aborrece, Celeste. Deve ter sido efeito do vinho, caso contrário, eu jamais a trataria com tamanha obscenidade. Quando cheguei em frente ao prédio de arquitetura neoclássica, que por muitos anos tem sido teu lar, estremeci. A decadência do manicômio fez espelho com a de nossa família. Quantas vidas destruídas... Geninho, estúpido ou inocente demais. Ainda não sei como classificá-lo. Hoje eu entrei. Não me viste? Eu sei que não, fui muito discreto. Estavas conversando com as nuvens, como fazias no dia em que te levaram de mim. Sim, eu chorei. Mas por piedade de mim, incapaz de entrar em teu mundo e sorrir contigo novamente. É melhor voltarmos para casa, seu Eugênio. Já fizemos muita extravagância hoje, sugeriu a outra, me levando pelo braço, me afastando de ti.

Ainda não queria retornar ao solar. Precisava me despedir do dia. Fui até a Usina do Gasômetro, às margens do lago Guaíba, que até ontem era rio. Sugestão dela, dizendo que lá apreciaríamos o mais belo por-do-sol do mundo. Fumei um cigarro. A fumaça percorreu sem resistência o caminho já desbravado até meus alvéolos. Envolto à névoa formada pelo ar expelido, transportei-me aos tempos de guri, no colégio. Meus primeiros pitos foram lá, no banheiro, escondido com mais uns três moleques. Já estava dependente quando fomos pegos pelo padre. Situação que resultou em mãos inchadas de tanta palmatória, uma suspensão de uma semana e um sermão do papai, sem falar da surra e do traseiro dolorido.

Era melhor voltar para casa. O vento, que continuava a soprar forte, fazia música e levava consigo o calor acumulado no dia. Desejei viajar com ele. Minhas mãos, então frias, foram aquecidas ao contato com as mãos macias de Negrinha. Quem visse de longe, à primeira vista, poderia crer que fôssemos amantes. Não havia mais tempo para isso.

* * *

Jacinta acordou sobressaltada com o insistente alarme do despertador do quarto contíguo. Perdera a hora. Vestiu às pressas o jaleco e correu até o quarto de seu paciente, pronta para receber uma bronca. Seu Eugênio não se encontrava na cama, como todas as manhãs. Estava sentado na cadeira de balanço – só corpo – próximo à janela, abraçado a um antigo álbum de família.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O Cadáver (Ricardo de Albuquerque Müller)

Não sei se devo ou não acreditar nos meus olhos, se tenho a mente perturbada pela mais terrível solidão que um homem pode suportar. Esse cheiro de morte com o qual tenho convivido dia após dia tem me levado a um desespero que beira à loucura, onde não vejo saída nem na própria morte. Escrevo com a intenção de, ao relembrar os fatos, tentar encontrar uma lógica que me explique tudo por que venho passando, apesar de achar que estarei condenado a um lento e interminável martírio.

Havíamos passado ao largo das ilhas Cayman num dia de mar calmo e praticamente sem vento. Os turistas já haviam almoçado e a maioria estava no convés apreciando a paisagem. Devido ao cansaço, eu preferi ficar na cabine e tirar uma sesta. Foi com um duro golpe na cabeça que acordei e percebi que o navio afundava. Demorei alguns instantes para entender o que se passava, mas logo compreendi que a embarcação adernava para bombordo. Ouvi muitos gritos e um barulho infernal que deduzi ser o casco se partindo. Pela escotilha, vi homens ao mar e vários corpos boiando. Dois botes haviam sido lançados, mas com o desespero os passageiros foram subindo neles em número excessivo e desordenadamente, acabando por emborcá-los. Tentei abrir a porta da cabine, mas ela estava trancada. A escotilha também estava emperrada, e não consegui abri-la. Não achei nenhum objeto de metal ou de algum outro material resistente que pudesse servir para arrombar a porta. Fui tomado de um desespero sobre-humano e comecei a gritar e a chorar, dava socos e pontapés na porta e rezava. O navio continuou virando de lado até a porta da cabine ficar para baixo e a escotilha para cima. Depois, começou a afundar rapidamente e vi a água encobrir totalmente a pequena abertura circular, porém a cabine continuava totalmente seca, sem infiltração de água. Foram poucos minutos até o navio se chocar contra o fundo e estabilizar. Então, do barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor.

Recomposto, percebi que não estava sozinho. Havia um homem inerte e com a face completamente desfigurada dentro da cabine. Provavelmente tinha sofrido o traumatismo no momento em que o barco havia virado bruscamente. Palpei o pulso e logo vi que ele estava morto. Em seguida, tive náuseas e mal-estar, e precisei me virar de costas para o cadáver e respirar fundo. Permaneci nessa posição por alguns instantes e não conseguia imaginar como ele tinha surgido ao meu lado. Eu certamente havia entrado sozinho na cabine e a porta estava fechada. Então, criei coragem e me virei. Estendi o corpo e passei a examiná-lo mais detidamente. Havia um afundamento de face e múltiplos ferimentos que não permitiam reconhecê-lo. O lado direito do crânio apresentava uma grande contusão, com laceração no couro cabeludo que deixava entrever parte da massa encefálica entre os fragmentos ósseos. Procurei nos bolsos algum documento que pudesse identificá-lo, mas nada encontrei.

Fazia uma hora que o navio havia afundado. Continuava tudo no mais absoluto silêncio. A única iluminação provinha da luz natural que iluminava o oceano e entrava pela pequena escotilha, num tremular inconstante e fantasmagórico. Deduzi que não poderíamos estar muito longe da superfície, pois a intensidade da luz era razoável. Contudo, não percebia nenhuma movimentação junto ao navio, nenhum sinal que indicasse que o naufrágio tivesse sido avistado por alguém. Tentei outras vezes sair desse local pequeno e oprimente, mas não tive sucesso. Enfim, desisti. Restava apenas aguardar um possível resgate.

Após seis horas o ar estava insuportavelmente quente e irrespirável, com uma emanação pestilenta proveniente do cadáver que já começava a se decompor. Não conseguia me afastar dele devido ao espaço exíguo. A noite já começava a despontar e as trevas invadiam pouco a pouco o cubículo, deixando-me extremamente aflito. Durante a longa espera até o amanhecer, eu permaneci acordado e com os olhos abertos, rodeado pelo mais profundo breu, sem me mexer, com medo de tropeçar no cadáver.

No dia seguinte e nos outros foi a mesma tortura, o mesmo sacrifício pelo qual deve passar o condenado ao fogo eterno. Mas seria o demônio tão sádico e cruel? Teria isso a ver com a minha vida um tanto quanto desregrada? Estaria sendo eu punido pela bebida e outros vícios? Confesso que pensei seriamente no suicídio, mas não tinha como cometê-lo. Não pela falta de coragem, mas pela falta de meios materiais. Não comia e não bebia, mas o meu corpo nada pedia. E os dias e as noites se sucediam numa massacrante e interminável rotina. O que mudava era apenas a progressiva putrefação do cadáver, que inicialmente havia inchado e adquirido uma coloração esverdeada, para depois começar a liberar uma secreção escura e fétida, com formação de bolhas e perda de partes da pele e demais tecidos. Eu não tinha onde ficar a não ser sobre aqueles restos de matéria putrefata, com o meu corpo cheirando a morte, mas sem conseguir morrer.

Faz um ano que ocorreu o naufrágio. Ninguém ainda apareceu para resgatar o navio. O cadáver que me acompanha — eu o batizei de Polinice — está praticamente reduzido a uma ossada. A luz fraca e tremulante e o escuro profundo e absoluto se intercalam numa sucessão infinita e torturante. Sinto que esta cabine é o meu túmulo onde jamais conseguirei descansar. E ninguém neste mundo poderá me responder a uma dúvida que me afligirá por toda a eternidade — poderia ser eu o cadáver?