quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um mundo melhor (Sergio Faraco)

Para Jacob Klintowitz



"Na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para afetuar certas ações." ARISTÓTELES, Poética, VI, 145-32



– Amanhã venho te buscar para o ensaio  – disse Russo.

Partiu o amigo, deixando-o no pórtico da galeria que ia dar no saguão do hotel. Absorto, não notou que o lugar, mal-iluminado, estaria deserto, não fosse um grupo de jovens, cinco ou seis rapazes e uma garota, em suspeito silêncio no recuo de uma vitrine.

Ao perceber que o olhavam, era tarde.

O bando o cercou.

Enquanto uns o imobilizavam, outros lhe vasculhavam os bolsos. Quis reagir, e a garota, uma loura sardenta de olhos claros que até então mantivera-se à parte, saltou à sua frente com uma faca. Cessou de se debater, mas isso não evitou que um dos rapazes o esmurrasse no nariz, que começou a sangrar.

– Não deixa melar o casaco – gritou a garota, e suas pupilas faiscavam na contraluz da vitrine.

Também roubaram os sapatos e a carteira. Antes da fuga, um safanão o derrubou. Ouviu vagamente a correria na direção da rua, mas não se moveu de imediato, menos por cautela do que por pasmo. Quando pôde levantar-se, algumas pessoas acorriam e o ajudaram a andar até a portaria do hotel. O nariz ainda sangrava, e o gerente, após certificar-se de que não estava tão mal, ofereceu-lhe um copo d'água e um lenço de papel.

– Quer que chame a polícia?

Não, não valia a pena.

– Não levaram cheques, cartões?

Tinham levado.

– Convém fazer a ocorrência e avisar seu banco.

Sem casaco, descalço, sem dinheiro e documentos, tomou o elevador com participantes de um seminário de lojistas, cidadãos de próspera aparência, com ternos alinhados e impecáveis colarinhos, que o relancearam como a uma parede, como se o não vissem.

À noite, quase não dormiu.

Ler era impossível.

Se fechava os olhos, via os jovens se acercando, a disposição deles, o olhar de aço da garota, o lampejo da faca, e ressentia o murro no nariz. Figurava a garota com ódio, depois se compadecia e ódio outra vez a estremecê-lo, então acendia a luz de cabeceira e sentava-se na cama, ofegante e a transbordar rancores. Quanta ironia, quanto escarmento em seu papel de vítima. Logo ele, um dramaturgo cujas obras a crítica iconizara como fotografias sem retoques das tumultuosas noites urbanas, a brutalidade tão crua quanto aberrantes os processos que a deflagravam. Contra esse conspícuo arauto da violência rebelavam-se seus arquétipos – uma cena burlesca em que os infantes de Cronos cometessem parricídio.

À lembrança do trabalho seguiu-se um conforto: não perdera a vida, como tantos, tampouco se ferira com gravidade e – um truísmo – continuava bem-parado em degrau muito acima daqueles sebentos que, mais dia, menos dia, acabariam na prisão ou a estertorar em periféricas sarjetas. Admitiu que a noite fora menos perversa do que poderia ter sido. Descontados o pequeno inchaço no nariz e o prejuízo material, uma bagatela, nada mudara. Era um autor bem-sucedido, o que lhe facultava, com um pouco mais de prudência, conservar-se distante daquele universo ignóbil, cuja utilidade em sua vida era tão-só a de papel-carbono. Não era assim que produzia suas exitosas peças, estereotipias do noticiário policial? A arte copiando a vida, como queria Sêneca? A vida como ela era, sim, trocando apenas de cenário: no lugar da rua escura, o palco enfumaçado à meia-luz.

E começou a se tranqüilizar.

E apagou a luz.

Pelas frestas da veneziana viu que clareava o dia, uma nova manhã após o árduo combate, e lembrou-se de Homero: Quando a aurora de róseos dedos, filha da manhã... E sem saber que a lembrança já era um sonho, dormiu até perto do meio-dia.

Almoçou no restaurante do hotel.

Dormiu novamente e, à meia-tarde, despertou indisposto. Ou não era bem isso, antes algo que o inquietava, que o estranhava. Como se mal se reconhecesse ou recém começasse verdadeiramente a se reconhecer, como se o incidente na galeria – que outra coisa haveria de ser? – lhe tivesse aberto um portal misterioso cujo limiar receasse atravessar, e surpreendeu-se murmurando algo que lhe vinha à lembrança nas horas de incerteza: Eu, o verme, reconhecendo este tecido de alma ausente...* E foi com um princípio de náusea que viu seu rosto no espelho da pia.

À noitinha, Russo veio buscá-lo. Cogitou de desistir do programa, fazer a mala e antecipar a passagem de volta, mas como poderia, se viera à cidade a convite, para ver o ensaio da peça de que era autor?

E foi e logo se aborreceu, a esgrimir com a absurda sensação de que o texto não lhe pertencia ou, se pertencesse, era produto de aquoso e insípido crisol que agora se esvaziara para dar lugar a outras e ainda ignotas misturas. Molestava-se também com as intervenções de Russo e as repetições de cada cena. Russo queria verossimilhança, e o protesto concernia, mas queria também que a representação ultrapassasse sua própria essência, ou seu limite. Chegou a gritar com um ator:

– Não quero representação, quero vida!

Mais vida? E ele ouviu aquilo como a um desaire, como se alguém, por certo ele mesmo em outra dimensão, com outro rosto e redescoberta alma presente, estivesse a lhe apontar o dedo acusador.

Após o ensaio, foram jantar no hotel.

Conversaram sobre a peça, sobre os atores e o que Russo deles exigia, e em dado momento o escritor, quase sem querer e com ligeira impaciência, viu-se observando que a arte obedecia a certas leis que se desavinham com a vida real: cada elemento precisava ter sua existência justificada e esta era a harmonia. A vida não era assim.

E acrescentou:

– Quando pedes menos representação e mais vida estás pedindo uma arte menor.

O outro abriu os braços.

– Que é isso? Crítica ou autocrítica? Agora descartas teu bem-amado Sêneca? Como podes pensar que um texto ou uma representação se aproximem da arte na mesma medida em que se afastem do que é real?

– Não foi o que eu quis dizer, ou foi, mas de outro modo. Não é uma questão de distâncias. A arte tem de ouvir, como Bilac disse a João do Rio, tem de ouvir e registrar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Mas é um registro como representação, não um fac-símile. Não te parece que essa enunciação de nosso príncipe, considerada isoladamente, está incompleta?

Então o que dissera, ou ao menos pensara, era que a vida, afinal, era o que era ou o que já tinha sido, um caótico enjambement de acasos, “uma história repleta de som e fúria, contada por um idiota” – como não lembrar essa clássica dedução? –, não um organismo ou um sistema que se provasse por ambicionar determinado fim. Ela não buscava o belo ideal, não buscava, como a arte, o mundo melhor. Quisera dizer, então, que a arte tinha de ser basicamente transformadora, e que seu desígnio não era se parecer com a realidade e sim corrigi-la. E acabava sendo – a verdadeira arte – uma imprescindível, primorosa e verossímil mentira. Ou não propriamente uma mentira, mas o que a realidade poderia ou deveria ser...

– ...se viver fosse uma arte.

Russo o olhou por um instante.

– Balzac?

– O belo ideal? Sim e não. Foi o que ele ouviu e acatou, dito pela mãe de Madame de Staël.

– Acho que entendo. Me serves uma sopa canônica, de Balzac a Schopenhauer, com pitadas quânticas e colherinhas de Shakespeare e Voltaire... não te faltou uma receita grega? Não era para tanto. Ou muito me engano ou, se me permites, sem que a comparação te ofenda, estás dando voltas como burro de olaria só para dizer que minha direção não te satisfaz.

– Só estamos discutindo, meu diretor. Nunca te contaram que a dialética da controvérsia favorece a digestão? – e tratou de mudar de assunto, relatando o que lhe ocorrera na véspera.

– O teu nariz... – observou Russo, sinceramente pesaroso. – E numa hora dessas, eu aqui a tagarelar sobre arte.

– Foi um incidente comum.

– E não terminou tão mal.

– Melhor foi o que veio depois.

– Como? Tem mais?

– Hoje à tarde saí, dei uma caminhada. Adivinha quem encontrei num trailer de cachorro-quente.

– Os ladrões!

– A loura.

– A loura!

– A loura sardenta, a da faca. Ela e um menino.

– Nossa, não sei o que eu faria.

Ele se aproximara e a agarrara pelos cabelos. E agora, sua putinha? O menino fugira, continuou, e imagina o espanto das pessoas ao redor, tentando compreender. E diante dele, aqueles olhos não mais implacáveis, olhos de medo e lágrimas de uma pobre menina assustada. E vira também naquele olhar uma saga de miséria e desespero – a versão dos derrotados, como o eram aqueles meninos. Que dos vencedores, como os engravatados do elevador, não obtinham sequer um átimo de reflexão, que dirá um gesto de compreensão, solidariedade e respeito humano.

– Vi nesse reencontro o teatro.

– Viste a vida, meu amigo. A vida como ela é.

– Não, o teatro. Acreditas se te disser que a soltei e fui embora?

Russo ergueu o cálice:

– Aos teus novos e indistintos conceitos não vou brindar, mas gostaria de fazê-lo à tua atitude. Um perfeito epílogo.

O outro brindou, com um ligeiro sorriso.

Mais tarde, quando se despediram à porta do hotel, ele ficou parado, vendo o amigo afastar-se pela galeria.

Um brinde impróprio, claro.

Perfeito epílogo? Ora...

Russo desprezara seus argumentos e acreditara piamente no reencontro com a garota – pensava ver nele a plausível harmonia, a absoluta comunhão entre arte e vida. Seus postulados se engrenavam, coerentes. Mas que pena essa coerência! Russo nem ao menos suspeitara de que aquele reencontro no trailer jamais acontecera e era tão-só uma correção literária do incidente – o mundo melhor –, isto é, a peça que um dia talvez pudesse escrever, desde que ele mesmo também se corrigisse, convertendo-se no autor que agora desejava ser.
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* Início do romance À beira do corpo, de Walmir Ayala (N. do E.)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Iluminação do cotidiano (Zélia Delacroix Farina)

Não houve tempo para nada. Para um grito ou uma expressão de espanto. Quando se deu conta, já estava no chão, a todo o comprimento, os cabelos libertos da touca que os domava, a roupa amarfanhada, um chinelo escada acima, outro se equilibrando na ponta do pé. Entre surpresa e aturdida. E na boca aquele gosto invasivo de saliva alheia. Não sabia ao certo se batera com a cabeça e tinha ficado meio inconsciente. O fato é que não havia mais ninguém ali. Somente latões de lixo, balde , esfregão. O que desabara sobre ela tinha a força de um vento de verão tardio, morno e intenso, um desses ventos capazes de soprar desatinos na cabeça dos viventes. Envolveu-a num inesperado misto de violência e delicadeza, buscando-lhe a boca com a boca, enquanto as mãos faziam o seu trabalho de busca e sujeição.

Foi com esforço que se recompôs, o corpo não lhe obedecia, as pernas desenhavam círculos no chão, recusando a postura vertical, a cabeça parecia esvaziada e poderia até pensar ter sofrido uma alucinação devido ao calor, não fosse aquele gosto persistente de saliva. Inúmeras vezes lavara a boca; em vão. O gosto era interminável; nem bom nem mau, estrangeiro. Era sábado, no prédio havia um mínimo de funcionários, como de costume em finais de semana; ninguém aparecera durante o seu período de atordoamento. Melhor assim. Sabia que nenhum daqueles empregados seria capaz de ato semelhante. Viviam todos no mesmo código. Se um deles a quisesse, por Deus, já lhe teria dito e a coisa teria rolado ou não, como tudo na vida. Não era dada a muitas conjeturas; quedava-se, por isso, estupefata. “Quem, nesse prédio de gente rica, podia me querer, logo eu tão diferente de todos eles? Só se fosse..., mas não, bobagem,será possível?, um senhor tão distinto.” O fato é que era objeto do desejo secreto de alguém, um desejo violento porque ansioso e tímido, deliciosamente desajeitado. O corpo não lhe doía, além daquele mínimo que se confunde com prazer. Sofrera um atentado à mesmice da sua vida. Como se num surrado baralho de cartas marcadas, surgisse, inexplicavelmente, uma carta extra: um coringa que talvez pudesse mudar a sua vida.

Para o doutor Nogueira e Silva,nada saíra como o que tinha sido planejado, aliás como costuma acontecer. A ideia era somente pegá-la de surpresa e dar-lhe um beijo na boca, e depois safar-se. Fugir para sempre ou por bastante tempo. Viver daquela lembrança tanto quanto fosse possível. Mudar de cidade, ir morar na praia, ficar uns tempos na casa do irmão. Algo assim meio infantil meio maroto; esconder-se depois de uma travessura e só voltar quando as coisas estão sossegadas. Mas ela, desafortunadamente, pelo inesperado da situação,escorregara no chão úmido e rolara abraçada por ele no piso gelado, desencadeando um desejo irrenunciável. Fato inconteste é que há muito sonhava com ela, dormindo e acordado. Para dizer a verdade, desde que a vira pela primeira vez, limpando as escadas do prédio. Ele, a quem jamais interessou saber quem eram os funcionários do edifício ou o que faziam ou deixavam de fazer, viu-se oscilar, corpo e mente, ante aquela visão. Como era possível uma criatura exercer sobre ele semelhante tirania, era-lhe um mistério. Talvez por ser leve e graciosa ao executar atividades tão servis. No seu entender até brutais para um físico tão delicado. Devia ser nova no ofício, logo percebera, o corpo flutuava dentro do uniforme, os gestos ainda não eram bruscos e automáticos como fatalmente se tornariam com o passar do tempo.Como entendido em arte, logo a classificara: era uma bailarina que dançava em inusitado palco para ninguém, ou melhor, somente para ele que havia descoberto o segredo. Sabia que já a conhecia de algum lugar e isto o intrigou por um bom tempo. Aquela sensação de “déjà vu” o invadia continuamente, logo ele que execrava esse tipo de percepção por achá-la própria de mentes fantasiosas . Certo dia , folheando ao acaso um livro da biblioteca , localizou-a. O sobressalto do reconhecimento, como se uma cortina deslizasse para a entrada da luz.Era ela, sem dúvida, a figura mais impressionante pintada por Degas, “A primeira bailarina”, do famoso quadro do pintor francês. Essa tela sempre o fascinara pela mobilidade, era um quadro vivo, a bailarina parece que voa como se quisesse escapar para a vida, atirar-se nos braços do público. E lograra mesmo fazê-lo, pensava ele um tanto assombrado,pagando o alto preço do anonimato e da servidão. As roupas grosseiras, os chinelos de borracha e a odiosa touca nada lhe roubavam, ao contrário, acentuavam ainda mais a beleza por conta do violento contraste. Fechou o livro com cuidado, antes arrancando a página que retratava a bailarina. Pensou em colocar moldura, pendurá-la na parede ; estaria assim sempre à vista. Mudou de idéia, não a queria para os olhos de qualquer um, resolveu carregá-la junto ao corpo: algo assim como um talismã, um porta-fortuna contra a insipidez em que se transformara a vida. Para tanto, executou elaborado plano: localizou um tatuador artista, de outra cidade bem distante naturalmente, que reproduziu a bailarina com maestria na região abaixo do mamilo esquerdo,onde o coração a fazia balançar.Pensava, entre divertido e maravilhado, que ela jamais poderia escapulir, estava nele para sempre, ainda que não pudesse suspeitar.

Nos primeiros tempos em que se conheceram , fingira ignorá-la,não mais que uma peça na engrenagem de limpeza do prédio, espiando-a, no entanto, freneticamente, pelo canto dos olhos. Ela, humilde, face abaixada, inclinava-se ainda mais à sua passagem para esconder os olhos e o embaraço. Tempos depois, um aceno comedido, de cabeça. E, mais tarde, um “Bom dia” , mais resmungado que dito. E,finalmente, um “ Bom dia, Teresa”.” Bom dia, doutor ”. Era o máximo de intimidade que se permitia.Descobrira na folha de pagamento do edifício que ela se chamava Teresinha, o que lhe causou contrariedade.Uma beleza maiúscula não admitia tal designação. Passou a nomeá-la Teresa, o que lhe garantiu a atenção da moça, surpresa duplamente: era nomeada e rebatizada. O dia só começava para ele quando, saindo para a caminhada matinal, a encontrava, sempre entregue à sua humilhante ocupação. Era o seu momento mais alto, um calor prazeroso se irradiava por todo o corpo e o mantinha assim, acima de todas as pequenas misérias da rotina e da idade. O respeitoso e esperado “bom dia, doutor” ficava dançando nos seus ouvidos, letra e melodia, indo e voltando.

Mas agora,sem querer, estragara tudo. Perdera o controle, logo ele, exemplo de cidadão, homem de bem, curador da Escola de Belas Artes. Chegara perto demais, era isso, aquele perto que não admite retirada. Caíra no torvelinho. E assim, perdera o que não queria perder. Não sabia o que a moça sabia; ou do que desconfiava. Desabara sobre ela sem dizer palavra. E se estivesse rindo dele, da sua pretensão, do seu desatino? E se todos no edifício já soubessem do ocorrido e estivessem planejando uma ação contra ele, atentado ao pudor, abuso, quem sabe até suspeita de senilidade? Que horror! E ainda mais, se sabendo que tinha sido ele, tendo certeza disso, ela já tivesse contado para o marido, amante, companheiro ou sei lá o quê? Poderia ser alvo de vingança, e bem merecida no seu entender. Sim, pois era inimaginável que ela não tivesse alguém; essa era situação para gente como ele, fruto ressequido à espera da queda. Sentia que adentrava terreno movediço, novidade na sua vida. Como agir para manter-se na superfície? Como passar por ela, novamente, e colher aquele mínimo de atenção , “Bom dia, doutor!”, sem ser paralisado pelo medo ou pela vergonha ou até, quem sabe, sem poder reprimir o desejo todo novo de repetir a loucura que tinha vivido com ela. Surpreendia em si mesmo o emergir de um desconhecido, de um outro que estivera sempre à espera.

Naquele dia, só voltou tarde da noite para casa, não queria correr o risco de revê-la ou de ouvir conversas de outros empregados ou moradores.Sabe-se lá o que realmente tinha acontecido a Teresa e o que ela dissera; ou calara. Por dois dias inteiros, não saiu do apartamento.Reclusão. Compasso de espera.Apenas escutava, ouvido rente à porta. Distinguia os sons habituais, risadas dos vizinhos, cumprimentos e até eventuais xingações entre marido e mulher. Isso, em outra situação, poderia ser puro divertimento para ele: um mundo se abria nesse seu novo posto de escuta. Mas um mundo que não o interessava mais,um mundo passivo; queria ser ator, ator principal, nunca é tarde. Conseguia inclusive apreender , ao longe, o roçar da vassoura no chão, a abertura dos sacos de lixo, o ritmado baque do esfregão contra o piso. Todavia não podia saber se era ela, a sua bailarina, a agente de tais ruídos. Teresa trabalhava somente na área de serviço, separada do prédio principal por pesada porta de vaivém, a porta corta-fogo: os sons chegavam, por essa razão, abafados, quase indistintos.

Aqueles dois dias de exílio voluntário, privado das caminhadas e do encontro com Teresa, lhe oprimiam o peito. Diariamente saía do apartamento à mesma hora, sem se desviar jamais do caminho habitual, aliás o menos provável para um morador. Utilizava sempre a área de serviço, onde se localizavam as escadas, os latões de lixo... e Teresa. Era uma doce disciplina que se impunha . Mas devia justificar-se continuamente perante vizinhos e funcionários, surpresos com a recusa ao conforto dos elevadores, logo ele um senhor de certa idade,dizendo que o fazia somente pelo exercício físico. “Doutor, espere um minutinho que já chamo o elevador, oito andares não é brincadeira.“ Ao que ele sempre respondia: “Não se preocupem comigo, sigo conselho médico, devo caminhar o máximo possível. Subir e descer escadas é um exercício completo. ” Sem dúvida, o fazia pelo exercício, porém totalmente desligado de qualquer recomendação médica; seguia , isso sim, a sua recomendação interior, aquela que está gravada a fogo em cada um de nós. Sabia que fatalmente a encontraria em um dos andares, entregue ao seu inconsciente bailado. Era um exercício de encantamento, surpreendê-la, vê-la e ser visto por ela.

No terceiro dia, após o desvario, não aguentou mais: ressurgiu.Com capricho, preparou-se para a caminhada, abriu a porta corta-fogo que dava para as escadas e, nada mais fixo que hora de empregado humilde, lá estava ela, precisamente no seu andar. Imobilizou-se, corpo e pensamento bloqueados. O coração solto,batendo como um martelo contra a tatuagem da bailarina; suor frio, boca seca. Excepcionalmente, ela não empunhava vassoura nem arrumava saco de lixo; estava imóvel, encostada na parede, mão na cintura, olhando para a porta, como se esperasse por ele. Pela primeira vez, um olhar direto, chama e labareda. O cabelo, entre preso e solto, estava liberto da touca. As mãos, sem as luvas grosseiras .O uniforme de brim cáqui, displicentemente aberto nos primeiros e nos dois últimos botões, assemelhava-se a um casulo de onde brotasse uma borboleta.E,no pé, a prova definitiva de que ele não se enganara a seu respeito, era mesmo a bailarina do quadro, a que trazia há tanto tempo gravada no peito: no lugar do indefectível chinelo , uma sapatilha branca, diáfana, de tela finíssima, que a deixava descalça e calçada a um só tempo, pronta para a dança do amor e do desejo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Rapsódia de um inseto (Vilson Ortiz)

1 – O contexto
"Um fosso profundo

faz do castelo

o rosto perfeito

– cruel e imaculado –

como um anjo devasso,

sedento de paz

e repleto de salas secretas...

onde fantasmas gargalham;

reclusos no espelho."



Ele recém escapara do ataque de uma aranha quando percebeu sons estranhamente articulados em sua mente. O mais desconcertan-te de tudo é que entendia o que aqueles ruídos mentais significavam. Porém, expandira sua psiquê de tal forma, atravéz de conceitos abs-tratos, que estranhava tudo a sua volta. E via tudo de forma diferente, com uma profundidade antes desconhecida, com significados que reduziam tudo a um padrão sonoro e imagético mental. Foi quando reparou no seu corpo: perdera as antenas, as asas rígidas e suas seis patas. Estava quase do tamanho da árvore que outrora fora seu univer-so. Tornara-se gigante. Apesar de todas as novidades, sua primeira atitude foi esmagar a aranha que o atacara no gramado. Olhava para o novo corpo e via alguns seres semelhantes perto de onde estava. No entanto, eles cobriam suas peles com trapos de tecidos coloridos.

Porém, para seu espanto, todos fugiam apavorados quando ele tentava pedir alguma explicação sobre sua nova condição. Sem entender porque todos o evitavam, resolveu fazer o que sabia: pulou sobre um senhor bem vestido. Lhe obrigaria a explicar o que devia fazer em sua nova forma de vida. Contudo, seu gesto causou confusão. Foi preso e levado para a delegacia. Os policiais lhe deram roupas e perguntaram o que ele fazia nu no parque. Pensou que finalmente receberia alguma explicação sobre sua metamorfose e contou ao delegado toda sua história. Este, achou tudo muito engraçado e lhe aconselhou a r-tornar para casa – recomendando que parasse de se drogar ou procurasse tratamento psiquiátrico. Desconsolado, caminhou até sua árvore. No parque, reparou que, usando roupas, seus semelhantes não o evitavam de imediato. Porém, os poucos que lhe escutavam, expulsavam-no após ele contar sua história.

Sentia fome, sensação que não lhe era estranha. Contudo, ninguém lhe dava de comer. Revirava as latas de lixo do parque, mas o que antes banqueteava com frenesi agora lhe repugnava. A noite se aproximava. O parque assumia tonalidades sombrias, diminuindo a eficiência de seus novos olhos, em relação aos antigos, melhor adaptados à pouca luz. As dores que sentia na barriga, devido à fome, aumentavam sua ansiedade – condição que conhecia desde os tempos de inseto. Desesperado, decidiu novamente fazer o que sabia – caçar comida. Armou-se com um galho de madeira resistente e surpreendeu um cão perdido, que farejava entre as árvores – o qual matou a pauladas. Mas não sabia como comeria aquilo. Tentou morder a pele dilacerada do animal. Porém, um de seus novos colegas de espécie – que observava tudo escondido, apresentou-se a ele e explicou que, se comesse a carne do cachorro crua, acabaria doente.

Seu novo conhecido lhe ensinou a fazer fogo, carnear a presa e depois assá-la. Ambos dividiram o churrasco, em torno da fogueira, que fizeram atrás das raízes de uma figueira. O ex-inseto reparou que aquele homem, que lhe ensinara tanto, vestia roupas rasgadas e sujas. Porém, foi o único que ouviu seu relato com atenção – até o fim. Depois de escutá-lo, o homem disse que se chamava Batista e lhe explicou sobre sua nova condição de vida – seria muito parecida com a anterior: teria de roubar para comer e fugir de predadores maiores, como a polícia. A grande diferença era que, a partir de então, não utilizaria garras ou tentáculos, mas esperteza. O mais estranho para o ex-inseto foi compreender que não precisava procurar comida – bastava possuir dinheiro. Batista não possuía dotes pedagógicos, e levou tempo até convencer seu conhecido que o novo mundo onde ele teria de viver era movido pelo dinheiro. Mostrar uma das poucas cédulas que carregava não ajudou, pois seu novo amigo viu pouca diferença entre ela e as folhas das árvores do parque.



2 – O observador


Juro a vocês. Precisam me ouvir. Sei que pareço um maluco – e que as roupas rasgadas que visto não ajudam os senhores a me respeitarem. Mas me dêem um pouco de crédito. Afinal, pelo que sei, sou o único que conhece toda a história do novo sócio que os senhores investigam. Mas, se os senhores duvidam da credibilidade deste mendigo que lhes fala, saibam que, antes de viver nas ruas, fui como um de vocês. Inclusive, me formei em jornalismo. E compreendo todo o asco que nutrem em relação a minha pessoa. Por que fui parar nas ruas? É difícil explicar. Teria de lhes descrever um longo processo de ruptura com minhas crenças – pois começou assim. Depois comigo mesmo. E o efeito dos remédios que me deram no hospital psiquiátrico. A solidão – coisas que os senhores temem e não querem ouvir. Sim, durante alguns períodos da vida perdi a sanidade – mas sempre consegui resgatá-la, pelo menos até agora. Querem que eu lhes conte a história do Gregório?! Não costumo trair amigos, mas ele nunca foi meu amigo e, quando não precisou mais de mim, simplesmente me descartou.

Os senhores precisam estar com a mente aberta – ou não acreditarão no que contarei. Imploro para que escutem o jornalista, e não o mendigo. E, se julgarem minha história digna, me consigam todo o dinheiro que prometeram, pois não agüento mais dormir nas calçadas. O conheci aqui, nesse mesmo parque, há seis anos – acho. Nas ruas o tempo passa de forma diferente – não sei explicar se mais rápido ou devagar. Mas o que isso importa? Conheci o Gregório nesse parque e, acreditem em mim, praticando o ato mais selvagem que já presenciei – e olha que vivo na rua... Ele matou um cachorro a pauladas e tentava devorá-lo cru – rasgando a pele com os dentes. Não sei de onde e-le veio – me contou uma história maluca: de que era um inseto e que se transformou em gente. Mas já vi tanto delírio que não o recriminei. Fui eu quem lhe ensinou tudo – inclusive a cozinhar a comida. Nem dinheiro ele conhecia e nem do nome lembrava. Fui eu quem lhe botou o nome de Gregório. Por quê? Por causa da história maluca que me contou sobre ser um inseto. Gregório era o personagem de um livro que li na juventude – A metamorfose, ou algo assim.

Como ele começou? No início roubávamos e pedíamos. Mas ele era muito rápido e forte. Cedo começou a assaltar e a vender pó nos bares próximos. No tempo em que traficou, eu ainda convivia com ele. O cara me dava medo – matava seus concorrentes sem a menor piedade. Percebi que era muito mais louco do que eu pensava. Acabei trabalhando com ele – vendendo erva, pois ele me considerava incompetente para vender pó. E foi assim: enquanto eu vendia maconha e era preso, ele se tornava o maior traficante da cidade. Mas ficou pouco tempo no ramo. Comprou uma empresa e começou a se dedicar aos negócios e à política... mas isso vocês devem saber. Querem saber de seu temperamento? Contei que ele matou um cachorro a pauladas? É, ele fazia o mesmo quando um de nós não correspondia ao que ele estava esperando. Vi, com meus olhos, ele executando dois caras com pauladas na cabeça. Primeiro batia no rosto – para defigurar e causar dor. Triturava carne e ossos – os caras não tinham mais rosto, só uma massa de carne homogênea. Era horrível. Depois, deixava eles assim por algumas horas – sofrendo. Finalmente matava, batendo em suas cabeças com o bastão. Não sei o que fazia com os corpos. Alguns diziam que ele os devorava no dia seguinte. Isso mesmo, comia carne humana. Louco ele era, mas não sei se chegava a tal ponto.

Sim. Ele era muito frio. Nada o emocionava ou comovia – dava a tudo uma finalidade prática e descartava o que lhe parecia desnecessário. Ainda não havia pensado no que vou lhes dizer, talvez seja apenas o delírio de um bêbado, mas ele parecia mesmo um inseto. Como na história em que me contou no dia em que o conheci. Nunca presencei uma demonstração de carinho – ele via o mundo como um inseto. A diferença é que era muito racional. Tinha uma inteligência assusta-dora – e sabia como convertê-la para fins práticos. Inclusive, não refle-tia ou se questionava. Usava toda sua inteligência para obter vantagens sobre os outros. Pegava tudo que lhe servia e descartava o que considerava inútil. Dizem – não sei – que como empresário ele faz muito sucesso. E eu acredito. Mas por favor: não contem a ele que me fizeram essas perguntas. Nem falem da história do inseto, pois não sei se ele a contou a outras pessoas... Claro. É evidente que temo por minha vida. Por menos que ela valha, é só o que me resta. E lhes garanto que ele não teria qualquer consideração por mim. Assim como não terá por vocês, quando se tornarem desnecessários a seus objetivos. Quanto a seus objetivos? Não sei. Nunca me disse o que queria. Nada o divertia – nem o que podia comprar com toda a grana que tinha. Acho que só o poder. Não! Não porque gostasse de mandar nas pessoas. Tenho a impressão de que tudo era apenas porque sentia medo. Só estando acima de todos ficava tranqüilo.



3 – O objeto

Dois meses sem o sol. Talvez séculos. E esse corpo estranho – restrito por regras falsas. Odeio toda essa gente, principalmente aqueles que me bajulam. Ao contrário dos que me agridem, os bajuladores querem me comer aos poucos – perna por perna. Já devoraram mi-nhas antenas. No espelho vejo um rosto estranho. Uma imagem que aparece nas revistas de negócios como outras: um dos dez homens mais ricos do país. E daí? Todos querem me derrubar, se vingar. Mais ainda os hipócritas que me procuram – que me chamam de “amigo”. Só aguardam o momento apropriado para me desferirem um bote fatal. Quase duas décadas fechado nesse mausoléu – que todos cobiçam. Nesse casarão cercado por bosques, câmeras e grades. Assas-sinando aranhas e formigas. Jogando na bolça de valores com o computador. Números. Números. Números e mais números – é tudo a que me reduzi. Cada vez mais rico, mais poderozo, mais invejado, mais só... cada vez menos complicado. E a evidência é arrasadora. Não que tivesse ilusões, mas nem prazer sinto. Semana passada torturei uma jovem até a morte. Levei dois dias para matá-la. Nem sua pele branca coberta de sangue – visão que alguns anos antes me encheria de orgulho – despertou qualquer emoção em minha mente. Foi puro desperdício de súplicas e gemidos. Naquela hora, nem os números me salvaram... Até eles revelaram-se malditos paradoxos.

Restam os corredores escuros e esse cômodos repletos de vazio – meu império. Se ao menos os móveis dançassem, ou se o piano me engolisse. Retornaria à selva, em seu interior infinito. Mas sequer posso invejar minha antiga condição. Não há nada mais crítico que viver no meio do caminho – com essa maldita racionalidade humana e com esse pragmatismo artrópode. Não sinto nada: afeto, ódio ou qualquer outro sentimento. Fico mais rico a cada dia, mas não tenho nada. Nem a mim. Sou estranho até para o espelho. Se pudesse, detonaria todas as bombas atômicas do mundo de uma só vez e acabaria com esse pesadelo. Daria um fim glorioso à angústia de bilhões – todos perdidos em labirintos semelhantes ao meu. Um espetáculo pirotécnico jamais visto como epílogo da história. Exterminá-los seria perfeito, sem qualquer sentimento: apenas átomos se descombinando para depois se combinarem de outras formas – menos miseráveis. Mas quem sou eu para julgar a miséria? O rei dos miseráveis? Sim, talvez, mas nunca o dos hipócritas. Mas seria a plenitude – sentir os átomos livres como cometas, saindo pala tangente e dirigindo-se ao nada, ao insondável, unindo-se a tudo em algum buraco negro. Que breve conforto infinito para minha alma mal sincretizada. Que ode aos cupins que devoram as fundações de nossos palácios...

Nunca acreditei na vida. Nada me difere das paredes desse ca-sarão que me exila dos sorrisos. Nem os criados podem me ver – eu odeio essa gentalha servil e traiçoeira. Só ocupam a ala de serviços – e me servem comida na sala de refeições sem que os veja. Tocam o sino – que indica que já serviram a comida e foram embora. Me sinto ligado a tudo, menos a esses vermes bípedes que ousam separar-se de tudo e centralizam o universo a sua volta. Mas nem os odiar consigo, pois entendo os mitos infames de que precisam se servir para continuarem vivendo sem desconfiarem que estão apenas sonhando con-sigo mesmos. E como desprezo suas ridículas personalidades – revestidas de ouro e recheadas de merda. Acho que apenas troquei facilidades: a vida descomplicada dos insetos, mas dura; por esse teatro, igualmente duro, mas adornado com castiçais reluzentes e pedrarias brilhantes. E o pior de tudo é que, quanto mais aceleram suas vidas, mais se aproximam de meus desertos – das taças que transbordam areia que bebo todas as noites enquanto contemplo a lua, da janela do quarto. E em poucas décadas serei o modelo de todo horror que espalharão no planeta. Mas por que me importaria? Que venham até onde estou e me libertem de suas lendas. Eis minha utopia, disfarçada de pragmatismo: o mundo será dos insetos – a revolução artrópode não pode mais ser contida. Me resta o consolo de que sou o século XXI.

Sim, me rebelei com a condição de objeto, imposta nas revistas de fofoca. Aqui estou, em minha mansão, vagando por corredores que parecem novos a cada dia. Porém, no meio de tantas relíquias artísticas – compradas ou roubadas – apenas um espelho, da mobília do rei Luis XIV, dá sentido a meu rosto. Todas as noites, antes de vagar no quintal, olho para ele por horas a fio – tentando captar-me. Mas, quanto mais focalizo a visão, mais meu rosto parece fugir – torna-se abstra-to. Como se também eu fosse apenas um arquétipo. Mas a muito desisti de buscar a sinceridade no reflexo: hoje tento apenas me comunicar com os cupins que devoram a moldura de madeira do espelho, entalhada com rigor e pintada com ouro. Eles me espiam de seus bura-cos, como se por eles vazassem lampejos divinos. E isso tudo me irrita muito, pois sou ateu. Duvido do primata estúpido que vejo – mas as frestas dos cupins compensam o meu horror. Já tentei conversar com o reflexo, mas ele me dizia palavras tão vãs que desisti. Era monstruoso. Desde então, tento me aproximar dos cupins – me comunicar com eles. Ajudar em sua tarefa. Devorar esse precioso espelho até sua últi-ma lasca, para sua imponência ser esquecida para sempre. Sei que eles me olham, me contemplam assombrados.

Nos primeiros anos me entreguei às bacantes. Esse casarão abrigou as mais famosas orgias da cidade. E, como continuava enriquecendo, ninguém se importava. Pelo contrário, recebia a nata da sociedade local – sedenta de prazeres proibidos. A cocaína pura circulava em bandejas de prata e era inalada pelos convidados em canudos do mais fino cristal de murano. Devorávamos tudo o que podíamos – enquanto nossos corpos agüentavam. Mas isso acabou me entediando. Transformou-se em uma espécie de ritual – quanto mais tentava modificá-lo, mais se aproximava de um padrão. Uma noite expulsei todos de casa e desde então vivo recluso – com meus cupins. Como me torno mais rico e poderoso a cada dia, todos respeitam minhas particularidades – “é um gênio dos negócios”; dizem. Caso estivesse empobrecendo, diriam que sou louco. Mas e daí?! – tal aprovação não me convence. Quanto mais me odeiam, mais me admiram. Minhas empresas agem como aranhas no mercado – e recebo prêmios humanitários. O que teria de fazer para que assumissem que me odeiam? Tudo o que faço revela que os desprezo – e, quanto mais os desprezo – mais me adoram. Mas nunca conseguiriam entender o que sinto, aprisionado em seu mundo de aparências – transformado em espetáculo. Sou um deus laico que deseja apenas esquecer todas as palavras e retornar ao labirinto incogniscível da relva noturna. Um Odisseu que deseja voltar à época em que devorava para existir – e bastava existir. Hoje, ao contrário, existo para devorar – e, até que eu devore tudo, existir nunca bastará. Se os cupins soubessem o que é a inveja – entenderiam o quanto os invejo.

Diário de um inseto, 20 de setembro de 2015.