quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Travessia (Gustavo Grandi)

“I do desire we may be better strangers.”
(William Shakespeare: As You Like It)


Cleide sorria enquanto os desconhecidos rapazes da loja entravam na casa carregando a geladeira nova. “Pode deixar aqui mesmo, ainda preciso limpar o lugar onde ela vai ficar.” O carregador concordou com a cabeça, atento aos movimentos loiros do cabelo de Cleide. “Bonita”, comentaria depois com o colega. Sebastião não estava em casa. A mulher recebeu a entrega, assinou e despediu-se dos carregadores acenando com o pano de prato. Depois sentou-se num banco da cozinha e ficou olhando para a geladeira, imaginando o que faria com cada compartimento. “Deve ser o dobro da outra”, pensou.

A outra, a geladeira velha, já estava no pátio quando chegou a nova. Ainda funcionava. “E o que fazemos com ela?”, perguntara Cleide ainda na loja, enquanto escolhiam. “Vai ser um presente para a tua mãe”, respondera Sebastião. A mãe de Cleide morava sozinha do outro lado da rua, recebendo assim visitas freqüentes do casal.

Naquela manhã, Sebastião acordara mais cedo para arrastar sozinho a geladeira velha até o portão. Chegou atrasado no emprego: a tarefa lhe tomou o dobro do tempo que tinha planejado. Entre suas vendas, pensou algumas vezes na aquisição, no tempo que passaria pagando as prestações, na excitação da esposa quando fecharam a compra. Quando chegou em casa, ela o recebeu no portão. “Veio?”, perguntou. “Veio”, respondeu Cleide procurando o brilho verde nos olhos do marido. “Um negrão de olhos verdes”, dissera para a mãe logo que se conheceram. Depois do estranhamento, a sogra aprovara o genro, dizendo à filha que o havia imaginado pelo menos um palmo mais alto.

A geladeira velha repousaria no pátio por aquela noite; no outro dia atravessaria a rua para ocupar a garagem da mãe de Cleide. “Falo com o Walmor”, disse Sebastião. “Ele me ajuda a carregar.”

Na manhã seguinte, vestiu-se e foi direto à casa ao lado interromper o chimarrão solitário do vizinho madrugador. “O senhor não me ajudaria a atravessar a rua com a geladeira, seu Walmor?”, pediu depois de dar bom-dia. “Muito pesada?”, perguntou o militar, sério, enquanto livrava-se da cuia para poder apertar as juntas dos dedos grossos. “Trabalho para dois”, sorriu Sebastião. “Te ajudo sim”, declarou Walmor. E, cruzando os braços: “Pode ser no fim de semana?” Sebastião tinha pensado em resolver isso já hoje, mas disfarçou e respondeu sorrindo que “Claro, não tem pressa, quando o senhor puder.”

***

“Vivere per sempre
Ci vuole coraggio
Datti al giardinaggio
Dei fiori del male”

(Baustelle:Baudelaire)


Quando Sebastião e Cleide se casaram e compraram a casa naquela rua, Walmor e a família já moravam ali havia muito tempo. O tenente aposentado, um descendente de alemães nascido no interior, morava na cidade desde os dezoito, quando entrou para o quartel. Sua força física não vinha só do serviço militar: a enxada já lhe havia moldado os braços antes que deixasse o campo. Forte no corpo e conservador nas idéias, contrastava com o ambiente urbano como um broche de veludo contrastaria com a sua farda, hoje guardada no roupeiro, longe dos olhos.

Sua aposentadoria veio antes do esperado. O processo iniciara havia pouco tempo e já era a terceira vez que Walmor chegava em casa praguejando por causa do major que estava sempre embriagado. “Imagina que ontem eu tive que mandar o sargento descarregar a pistola dele, de medo que machucasse alguém”, dizia à esposa. “Como chegou a ser major é uma coisa que eu jamais vou entender.” Os comentários ficavam mais ácidos a cada dia, até a noite a em que o tenente Walmor entrou em casa em silêncio. A esposa lhe perguntou o que queria jantar. “Matei o major Aírton”, foi a resposta. O grito não teve coragem de ferir as cordas vocais da mulher e os tímpanos do marido. A confissão foi recebida pelo respeito das esposas prudentes. Resignou-se a entrar no quarto, fechar a porta e chorar em silêncio. “Legítima defesa”, dissera o mesmo sargento que tinha descarregado a arma do alcoólatra, única testemunha. “Ele entrou na sala cambaleando, pegou a arma e começou a brincar com ela apontada pro tenente.” Foi absolvido. Ainda assim, havia matado um superior, devia ser afastado do quartel. Aceleraram seu processo de aposentadoria, negando-lhe, porém, o aumento de salário que recebem os oficiais quando se aposentam. “Dois mil reais por mês”, disse Walmor à esposa. “Isso é o que me custou aquele gambá.”

Anos depois, mudavam-se para a casa ao lado Cleide e Sebastião. Iam-se embora os vizinhos antigos, gente que não se despediu de Walmor por causa de uma árvore de cinamomo. O tenente tinha um jardim, adquirira com a aposentadoria esse passatempo. Passava tardes inteiras envolvido com as plantas, ora cuidando com os dedos grossos das flores frágeis, ora martelando na escada ornamental de madeira. A mesma árvore que dava sombra para os antecessores do casal enchia de folhas e galhos o jardim do tenente. Ainda que a sujeira caísse do lado de cá, o tronco ficava do lado de lá do muro, fora do terreno do militar. Na quinta vez que tentou convencê-los a derrubarem a árvore, Walmor não conteve um soco que fez o vizinho cair batendo a cabeça no tronco que causara a discórdia. Dali até a mudança foram quarenta dias. Logo que viu o casal chegando, o militar foi falar com Sebastião, pedir permissão para cortar a árvore. Sebastião pensou na sombra, depois pensou que no futuro queria ter uma piscina e paz com os vizinhos. Passou a tarde seguinte ajudando Walmor e mais meia dúzia de militares a serrar através de um tronco que mal podia ser abraçado por duas pessoas. Fizeram uma pausa, e Cleide trouxe uma jarra de cerveja para os homens. Seu cabelo loiro brilhava como a bebida, pensou Sebastião, feliz. Orgulhava-se de perceber que os olhos daquele velho tenente alvejavam sua esposa.

No próximo domingo, enquanto Walmor assava um churrasco para os filhos e netos, sua esposa pensava na prestatividade do vizinho novo. “Ele ficou a tarde inteira ajudando vocês?”, perguntou. O tenente confirmou. “Por que tu não dás um pouco de churrasco pro casal?”, perguntou a esposa. “Ele parece gostar de carne branca”, respondeu com um esgar. “Quê?” “Nada. Leva o espeto de frango pra eles”, respondeu o marido. A mulher obedeceu, mas a frase não a abandonou durante a semana que se seguiu. No outro domingo, quando os filhos já tinham ido embora, ela entrou na sala e encarou o marido. “Se ele fosse branco tu tinhas atirado?”, perguntou. Como resposta recebeu um tapa que a pôs deitada. Walmor saiu de casa e foi beber cachaça no bar. Durante as três doses, ficou sentado em silêncio, olhando para as mãos. Quando voltou, a esposa já dormia virada para a parede. Olhou para a mulher por um tempo, deu meia-volta e caminhou até o seu jardim. Sentou-se na escada ornamental entre as flores para apertar as juntas dos dedos grossos. Com a luz dos postes da rua, podia ver que o jardim não estava mais contaminado por galhos e folhas de cinamomo.

***

Pela terceira vez na semana, o despertador arrancou Sebastião da cama antes do habitual. Era um sábado nublado, fresco. Foi novamente até a casa de Walmor e percebeu antes de bater palmas que o carro não estava na garagem. A esposa do tenente atendeu ao chamado. “Ele foi visitar a irmã”, gritou da janela. “Volta só à noite.” “Tudo bem”, respondeu Sebastião, convencido de ter visto indulgência na expressão da mulher. O sol se fora e Walmor não vinha. Foi só quando, deitado, tentava dormir, que Sebastião ouviu o barulho do carro entrando na garagem do vizinho, tarde demais para cobrar a ajuda prometida.

O relógio não precisou acordar Sebastião mais cedo no domingo. Dormira mal toda a noite, e quando amanheceu não fez mais nenhum esforço para adormecer novamente. Levantou-se da cama, vestiu-se e foi à casa de Walmor, passando pela geladeira que já estava ali havia quatro noites . “Ele foi à missa”, gritou novamente a mulher, desta vez com clara desaprovação da atitude do marido. Quando voltou, o tenente trazia sacolas de carne e um saco de carvão. Sebastião não teve coragem de interromper o rito dominical do vizinho. Ao fim da tarde, quando os filhos do militar foram embora, Walmor foi ao bar, desta vez para passar horas bebendo. Quando Sebastião o viu voltar, já de noite, mal conseguia caminhar. Ao ser cumprimentado por um berro ébrio, Sebastião se limitou a olhar para Cleide e dizer: “Amanhã eu peço para o Márcio.”

***

Então saiu da cama na segunda-feira e foi comer uma laranja no quintal, sentado em uma cadeira de praia ao lado da geladeira, que começava a demonstrar sinais do tempo que passara ao relento. Esperava que Márcio, o vizinho do outro lado, saísse para o trabalho. Queria abordá-lo para pedir a ajuda que Walmor não lhe dera, mas em seus pensamentos nasceu também uma secreta esperança de que Márcio lhe oferecesse carona. Surgiu mirrada, fraca, e foi-se alimentando de lembranças em que Sebastião era sempre gentil com o vizinho, ainda que não se falassem muito. Na hora em que Márcio saía de casa, agitando com os dedos o cabelo molhado e pendurando o paletó no banco do carona, já não era mais uma esperança: tornara-se um mero reconhecimento de que qualquer outra postura seria rude.

Da janela de casa, Cleide viu Sebastião se precipitar em direção ao carro de Márcio, enquanto este disfarçava o susto, cumprimentava e esperava que o vizinho falasse, justificasse a abordagem sem precedentes. Cleide via o marido que falava e apontava ora para a geladeira, ora para a casa da mãe. Márcio, com as mãos no volante, mantinha o semblante simpático e demonstrava pressa. Quando Sebastião entrou em casa, disse: “Ele trabalha até tarde hoje, mas me ajuda amanhã”. Cleide concordou com a cabeça e produziu da geladeira nova os ingredientes para o café da manhã, que o marido tomou apressado, regulado pelo horário do ônibus.

***

“I’m waiting in this cell because I have to know
Have I been guilty all this time?”

(Pink Floyd: The Wall)

Um pessimista que passasse tempo suficiente na casa de Márcio podia chegar ao extremo de acreditar na utopia da família feliz. Cumprimentavam-se na cozinha com bons-dias ensolarados, comiam frutas de uma mesa colorida e riam juntos da inteligência inesperada do filho de quatro anos. O trabalho do casal já rendia o suficiente para planejarem a compra de uma casa maior. A jovem esposa previa um segundo filho, mas Márcio, ao se imaginar criando irmãos, enxergava uma possível semelhança com seu próprio pai, sob quem crescera junto com um caçula. “Uma vez o velho me deu uma surra”, gritava para ser ouvido entre as gargalhadas dos amigos “porque eu tinha apanhado de uma garotinha do meu colégio. A gente nunca esquece apanhar duas vezes no mesmo dia!”, dizia, limpando as lágrimas que soem acompanhar o riso sonoro. Homem macio, pouco mais de trinta anos, Márcio produzia o brilho que emana dos homens que ainda não se entediaram da própria capacidade de sustentar a família. Caminhava de duas maneiras: durante a semana flutuava veloz, com a elegância que as roupas sociais lhe davam ao corpo saudável; quando trazia o filho pela mão, flanava lento como um turista.

A família convivia em casa à noite e saía nos fins de semana, para fazer coisas que fazem famílias iniciantes. Márcio não trabalhava nas manhãs de terças e sextas-feiras, usava esse tempo para praticar natação. Chegava cedo, nadava por uma hora e ia para o chuveiro, onde chegava a passar três horas aproveitando o prazer que a água quente lhe dava. Podia até parar de nadar, pensava, mas não imaginava uma semana sem os longos banhos na academia. Tornaram-se um hábito tão forte, que com freqüência se pegava devaneando no trabalho sobre os chuveiros do vestiário. Quando saía do banho antes do meio-dia, comprava alguma coisa para a esposa antes de almoçar. Uma edição ilustrada de Confissões de uma Máscara foi o presente que mais lhe dera prazer oferecer à mulher. Ela era japonesa por parte de mãe, justificara. Precisava conhecer a literatura de suas origens.

Quando Sebastião e Cleide ocuparam a casa ao lado, Márcio foi o primeiro a recebê-los na rua. Conversou por mais de uma hora com o casal, falando sobre como a rua era tranquila e seu filho logo poderia brincar com as outras crianças. Semanas depois, numa sexta-feira em que Márcio saía de casa para ir nadar, olhou do carro para as pernas de Sebastião. Passou segundos mirando o vizinho que saíra de casa de bermuda para tirar o lixo, antes de ir para o trabalho. Logo percebeu o ridículo de estar parado na calçada, com o motor ligado, olhando para as coxas de outro homem. Foi sair, deixou o carro apagar. Dirigiu até a academia pensando que se tivesse pernas tão fortes teria mais impulso na piscina.

Sob o sol da manhã de sábado, Márcio despertou depois da esposa. Foi até a cozinha e a encontrou à mesa, de pernas cruzadas, comendo uma maçã. Sentou-se também ele. “E então, com quem era?” a mulher o olhava com malícia. “O quê?” “O sonho que tu tiveste essa noite. Achas que eu não ouvi como ficou a tua respiração?” Márcio corou violentamente. Tinha um medo vivo de falar dormindo desde que seu irmão lhe perguntara por que insultava o pai no sono. “Vamos, fala.” Ela sorria, mostrando-se compreensível. “Quero saber quem é essa mulher que toma meu lugar de noite!” Agora ela ria, afetando uma brincadeira exagerada. Márcio encarava o prato, sentindo o rosto incandescer. “Não tem mulher nenhuma”, murmurou. Ela gargalhou: “Ah, claro, quer dizer então que tu tens esse tipo de sonho com homem!” No mesmo momento, todo o sangue que há pouco se apressara em ocupar os vasos de seu rosto abandonou Márcio a uma palidez hospitalar. A esposa percebeu e ficou séria. Não soube o que fazer por alguns segundos, depois se levantou e foi para o quarto do filho dizendo “Vamos ver como está o pequeno dorminhoco”. Ficou olhando o menino que dormia. Quando ele acordou, foi carregado pela mãe até a cozinha, entre cócegas e risadas. Márcio olhou para os dois e sorriu, levantando com dificuldade os olhos do prato vazio.

Decidiram passar o sábado na casa dos sogros de Márcio. Ligaram para avisar que lhes levariam o neto para uma visita e foram almoçar em família. Depois do almoço, o avô dormia, e a avó ensinava o filho a fazer dobraduras de papel. Márcio segurava a mão da esposa, mas o casal não se olhava. Em casa, à noite, a mulher o olhou com bondade e o beijou. Dormiram abraçados.

***

A terça-feira chegou para ameaçar com chuva sólida a geladeira velha, agora coberta por uma lona. Sebastião sequer pensou em falar com o vizinho sobre a possibilidade de realizar o trabalho com aquele tempo. No outro dia, de tempo bom, quando Sebastião acordou, Márcio já saíra. Voltou à noite apenas para pôr a família no carro e sair novamente, sem sequer olhar para o vizinho que o esperava ao lado da geladeira. Sebastião não quis chamá-lo, sua pressa era clara já desde a maneira com que estacionou o carro na calçada.

Quando Márcio saía para o trabalho na quinta-feira, Sebastião esperava por ele no portão, com a lona embaixo do braço. Entre gentil e tímido, Sebastião interrogou o vizinho sobre a ajuda. Márcio, de dentro do carro, respondeu: “Eu preciso trabalhar. Não sustento a minha família carregando eletrodomésticos.” Antes que pudesse reagir à aspereza, Sebastião viu o carro passando o sinal fechado e dobrando a esquina. Caminhou lento até seu pátio, fechou o portão e parou em frente à geladeira, cuja pintura já descascava.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

A poética do conto em word

Leitores do Blog,

para receber cópia de A poética do conto é preciso remeter-me um e-mail:

charleskiefer@uol.com.br

O texto está em word e mando o arquivo completo.

Só poderei fazer isso até o final deste ano, pois recentemente assinei com a Editora Leya o contrato de segunda edição. O livro será re-lançado em 2011 e a partir de janeiro do próximo ano, por força desse mesmo contrato, não poderei mais enviar o livro a ninguém.

Abraço,

CK