domingo, 30 de maio de 2010

Recital dos mortos, de Nelson Rego

Tudo estava ruim, mas ficou pior depois que a televisão veio aqui e filmou seu Seis revirando os olhos e recitando sem parar os nomes dos mortos. No início, seu Seis fora apenas o mais doido entre os malucos já contratados por meu pai. Alguns são malucos. Outros, safados fingindo serem médiuns. Eu sei quando eles estão fingindo, eu sinto. E sei quando são doidos e acreditam de verdade.

Seu Seis nunca quis cobrar. Dizia que não se cobra por um dom dado por Deus, não tem preço. Queria jorrar como uma fonte de água pura para todos, era o que dizia. Meu pai convenceu ele a cobrar pelas consultas, em nome de manter a casa. Seu Seis concordou. Cobrava o valor da comissão paga a meu pai e mais um pouco, que era para custear alimentação, luz, essas coisas, já que decidiu ficar morando no quarto anexo ao consultório.

Meu pai tem faro para negócios. Percebeu logo que seu Seis iria render muito. O outro médium, que trabalhava há meses no consultório, continuou atendendo, alternando-se com seu Seis. Por pouco tempo. Era um fingido, mas tinha alguma intuição e compreendeu que o melhor era ir para longe de seu Seis. Meu pai só tem olhos para dinheiro e não viu que, depois de dinheiro, seu Seis traria desgraça.

Tive medo de seu Seis desde que botei os olhos nele pela primeira vez. Inchado como um cadáver, pensei isso. Nunca vi um cadáver dias depois da morte. Sei que é assim porque se fala muito na morte aqui em casa. Meu pai conta piadas e histórias de assombração, debocha. Achei seu Seis estufado como um cadáver apodrecido.

Com o tempo, achei que se tornava a cada dia um pouco maior. Sonhei uma vez que ele inchara até ocupar o tamanho inteiro da sala.

Quando eu era pequena, os médiuns atendiam dentro de nossa casa. Ao perceber que o negócio iria prosperar, meu pai construiu o consultório nos fundos, no pátio. Seu Seis foi o primeiro que preferiu morar no quarto anexo. Movimento de pessoas querendo consultar sempre existiu. Mas só com seu Seis é que se formaram filas.

As pessoas vinham de outros bairros e até de outras cidades. Depois da televisão, passaram a vir de todo o país. Antes, seu Seis dava consultas como qualquer outro médium, só que de um jeito mais impressionante. Revirar os olhos, ele sempre revirou. E os guinchos que solta, antes de falar com aquela voz que vem do fundo de uma caverna, também são os mesmos. O que mudou foi a mensagem.

Seu Seis dava notícias dos mortos. As pessoas ficavam sabendo sobre os planos astrais em que eles recebiam lições, preparando-se para novas jornadas no mundo. Os mortos enviavam conselhos e súplicas, pediam que os vivos acendessem velas para afastar os demônios. As pessoas gostam de levar susto. Quanto mais gente saía de olhos arregalados e dando risadinhas nervosas do consultório, mais gente queria entrar na sala escura. Meu pai fazia fortuna.

Foi então que a coisa começou. Seu Seis desandou a recitar listas de nomes e sobrenomes que ninguém sabia de quem eram. Mal-estar mesmo era causado pelo que ele dizia misturado com as listas. “A bala entrou pelo ouvido esquerdo, os miolos ficaram esparramados pelo chão”. As pessoas trocavam olhares. “A lataria degolou o velho, que nem assim morreu na hora, ficou ali, estrebuchando.” Ninguém entendia nada. “Quatorze anos, quatorze anos, não tinha mais do que quatorze anos.” Misturava essas frases sem nexo com as listas de nomes, repetia sem parar frases e listas. Só se acalmava ao nascer do sol, quando adormecia, recomeçando pelo meio da manhã.

Nessas horas todas falando, bebia apenas uns goles d’água e comia menos ainda, sem sair do transe. Nem por isso deixei de achar que ele continuava aumentando.

As consultas pararam. Ainda vinham pessoas escutar, muitas até, mas ninguém pagava para ouvir listas intermináveis de nomes desconhecidos.

De início, meu pai pensou que a coisa seria passageira e que, após, a fama de seu Seis iria aumentar mais ainda. Pensou que deixar as pessoas assistirem o transe enlouquecido incendiaria o falatório, seria boa propaganda para o estabelecimento.

Depois viu que não tinha jeito, seu Seis não voltaria às consultas rentáveis. Decidiu chamar o pessoal do hospício, para que tratassem de remover o médium, já que ninguém conhecia parente ou amigo de seu Seis que pudesse se encarregar disso.

O azar foi que, no instante em que meu pai colocou a mão no fone para chamar o hospício, uma mulher gritou lá no consultório. Seu Seis dissera nome e sobrenome do sobrinho dela, Rogério Leandro de Oliveira, dissera e repetira, não havia como confundir. E completara com a informação – “baço perfurado”.

A mulher estava histérica e o grupo que a acompanhava, agitado. Seu sobrinho morrera semanas antes num acidente de carro. Ele e outros três, bêbados, haviam se chocado contra a traseira de um caminhão. O ferimento fatal fora perfuração no baço.

“Anota os outros nomes, anota os nomes”, alguém gritava, no meio da confusão de todos falando, da mulher chorando, do seu Seis recitando sem parar. Meu pai, mudo e pálido.

O pior foi em meia hora confirmado. Consultados os parentes das vítimas, três outros nomes correspondiam aos mortos no acidente.

Nas primeiras horas da manhã seguinte, já se formara uma pequena multidão na calçada em frente à casa. Meu pai não queria permitir que fossem escutar seu Seis, mas invadiram o pátio, espremeram-se no consultório, disseram que seu Seis pertencia a todos. Meu pai ameaçou chamar a polícia, mas não chamou.

Ficaram ouvindo seu Seis. Haviam chamado parentes e amigos de pessoas mortas de maneira violenta. Anotaram as frases malucas e os nomes que seu Seis enfileirava.

Passou o tempo. E nada.

Meu pai já estava esperançoso de que fossem embora frustrados. Mas aí aconteceu. Foi como gol marcado em estádio lotado. A vibração começou no consultório, prosseguiu pelo pátio e se alargou pela rua. O ajuntamento era um caldo grosso que a corrente de exclamações atravessava rápida. Andreia Soares, esse o nome reconhecido. Duas amigas dela estavam presentes. Quando seu Seis acrescentou “a facada atingiu o coração” e as duas confirmaram, foi nova gritaria. Até o anoitecer seu Seis marcou uma dezena de pontos, entre centenas de nomes recitados.

Eram também de mortos os nomes não identificados? Para verificar isso, espalharam por todos os modos possíveis os nomes anotados e chamaram mais parentes e amigos de mortos a escutarem o recital. Em dois dias seu Seis alcançou uma centena de pontos. Multidão agigantada tomava a rua, invadia nosso pátio.

A partir daí os acontecimentos são conhecidos por todos. Veio a televisão e depois outras emissoras, e mais rádios e jornais. Seu Seis, meu pai e até eu viramos celebridades. A rua prosseguiu lotada.

Os jornalistas investigaram o passado de seu Seis a partir das informações que ele dera a meu pai. Seu verdadeiro nome seria José Santos. Teria quarenta e poucos anos. Haveria sido casado e comerciante no interior paulista. Há dez anos abraçara a missão a ele confiada por Deus, passando a percorrer o país em nome do Criador.

Nada foi confirmado, seu Seis, que não tinha documentos de identidade, viera do nada.

E tiveram todos que se contentar com a explicação que dera a meu pai sobre seu novo e sagrado nome, Seis: explicação nenhuma. Um segredo entre Deus e ele, segundo o próprio.

Investigaram também a vida de meu pai. Quiseram saber se ele possuía outra renda além das comissões sobre as consultas. Meu pai lhes informou que era aposentado por invalidez. Por que invalidez, se era ainda moço e aparentava boa saúde? Perguntou-lhe um repórter com jeito desconfiado. Meu pai falou dos pulmões, puxou uma tossezinha para demonstrar e desconversou.

Algum vizinho soprou um boato e os repórteres foram averiguar na delegacia policial. Acho que subornaram funcionários para obter registros de denúncias contra meu pai, por estelionato. Coisas de sua mocidade. Nada fora provado, ele nunca estivera preso.

Mesmo assim, denúncias e a aposentadoria precoce, que colocaram sob suspeita, serviram para por lenha na fogueira das matérias que indagavam se a casa dos médiuns não explorava as crendices e as dores do povo.

Porém o povo já estava com a sua convicção formada. Para a multidão, seu Seis era mensageiro de Deus. Estava acima de meu pai, livre de contaminações.

Ninguém soube explicar como, mas em poucos dias estabelecera-se um culto, com organizadores, regras e crença. Quando seu Seis dizia o nome de uma vítima de acidente, assalto ou outras violências, se parente ou amigo do morto estivesse naquele momento presente, valia por uma poderosa vela acesa no plano astral. Auxiliava a vítima a liberar-se do trauma e evoluir em seu karma. O benefício estendia-se aos vivos que houvessem testemunhado o momento em que a boca santificada de seu Seis pronunciara o nome.

Daí porque a romaria que tomava a rua e invadia o pátio tornara-se constante. Mães desesperadas, órfãos, legiões de sofredores faziam fila rezando em voz baixa. Esperavam horas pelos instantes em que estariam no grupo com permissão para entrar no humilde santuário de seu Seis.

A maioria saía da sala sem a recompensa desejada. Mas, a cada dia, diversos eram os que saíam exultantes, abençoados pela audição do nome aguardado. Dádiva completa era quando o nome vinha acompanhado do bônus extra da frase com informações exatas. “Derrapou na pista e capotou até descer pelo barranco”, e uma viúva desatava em prantos. “O ônibus bateu de frente contra o caminhão, a menina estava dormindo, sim, estava dormindo, estava dormindo a menina, ainda está para acordar, vai acordar no céu” – os avós iam embora enlaçados, rostos suavizados pelas lágrimas misturadas com o sorriso. “Dois tiros à queima-roupa, agonizou um dia inteiro”, os pais se retiravam quase dispostos a perdoar o assassino.

Testemunhar que muitos eram abençoados incentivava os desafortunados a voltarem nos dias seguintes em busca da mesma dádiva. A crença afirmava que o consultório montado por um salafrário fora o lugar escolhido por Deus para abrigar a missão de seu Seis, num sinal dos misteriosos caminhos através dos quais se realiza a vontade divina. Na sala santa deveria permanecer seu Seis em transe, em respeito à vontade suprema.

Meu pai bem que tentou chorar miséria, fazer-se de inocente e pedir uma moeda por visitante, mas percebeu em seguida que corria o risco de levar uma surra.

Os organizadores do novo culto colocavam ordem nas filas, controlavam o tempo de permanência dos grupos dentro da sala, anotavam nomes e sobrenomes recitados, divulgavam as listas, chamavam o povo. Providenciavam as flores e os incensos. Registravam as preces de agradecimento enviadas pelos sofredores. Revezavam-se dia e noite na vigília em torno de seu Seis. Baniram qualquer pagamento na entrada do consultório, em nome de romper com o passado suspeito da casa. Apenas aceitavam donativos dos abençoados com a escuta dos nomes queridos. Essas coisas todos sabem. Viram na televisão, escutaram no rádio, leram no jornal. Sabem que na rua surgiu e cresceu um comércio ambulante de flores, velas, pedras mágicas, retratinhos de seu Seis e camisetas estampadas com a imagem dele, livros de preces, escapulários, churrasquinhos e lanches rápidos.

Sabem que sou bonita, pois me viram na TV, dando entrevista na frente do portão da casa, declarando que gostaria que aquilo tudo terminasse, e que nunca seu Seis pronunciara nome e sobrenome de minha mãe na lista dos mortos. Assistiram, na reportagem que fizeram no colégio, a estúpida da minha professora dizendo que às vezes chegam até a ficarem assustados com minha inteligência, mas que a lástima é que poucas vezes estou disposta a esforçar-me e tirar melhores notas.

E todos viram, ouviram, leram padres, pastores e líderes espíritas condenando o novo culto. Tomaram conhecimento de psiquiatras explicando que esquizofrênicos podem desenvolver uma memória psicótica, capaz de armazenar inacreditável quantidade de informações sobre o tema de sua obsessão. Acompanharam os jornalistas investigando os quatro mil nomes acertados por seu Seis e verificando que, quase todos, haviam tido suas mortes violentas noticiadas.

Conhecem a controvérsia que se seguiu. Seu Seis fora leitor das páginas policiais em suas horas de folga do ofício mediúnico, antes de afundar no transe ininterrupto. Desde quando poderia estar acumulando informações? Por que não pronunciava nomes de pessoas mortas após sua entrada no transe definitivo? Seus poderes, por acaso, teriam data de validade? E aqueles outros nomes não confirmados, que formavam uma legião muito maior, quem eram? Nomes inventados? Essas evidências e perguntas sem respostas não indicariam que a explicação dada pelos psiquiatras seria verdadeira?

Souberam do mesmo modo que suspeita alguma abalou o ardor dos novos crentes. Como seu Seis poderia lembrar de quatro mil nomes e sobrenomes e, de uma parte destes, saber informações precisas sobre as circunstâncias de suas mortes? Por que ter mais fé na possibilidade de uma fantástica memória do que no milagre da comunicação com os mortos? Quem explicaria a paz celestial que inundava os abençoados com a escuta dos nomes queridos? Viram, ouviram e leram organizadores do culto e parentes e amigos das vítimas dando testemunho de sua fé.

O que não sabem era o que acontecia comigo. Nem o que se passou entre mim e seu Seis enquanto tudo definhava.

A primeira vez foi no metrô. O trem estava atulhado de mortos. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação do tipo que eu pudesse controlar. E era nítida. Nítida demais. A primeira vez foi no metrô. Depois aconteceu na rua, no supermercado, no ônibus, na sala de aula. Fui no estádio e ele estava lotado, de mortos. Fiquei olhando aquela gente ensangüentada, empilhada nas arquibancadas e pensei: esses são os que morreram em acidentes de trânsito no ano passado. Subi no elevador espremida entre rapazes de cabeças furadas, os que foram desovados no lixão durante o carnaval. Desci do ônibus cheio de suicidas. Não queria voltar ao metrô, mas fazer o quê? Não podia deixar de andar pela cidade e ver a multidão de cadáveres descendo as escadas para dentro das bocas negras das estações. E os trens? Eu me apavorava. Mas era até divertido.

Por quanto tempo se prolongaria o novo culto? Eu fazia cálculos. Lembrava de ter lido que, desde décadas, morriam trinta mil, quarenta, cinqüenta mil em acidentes de trânsito todo ano. Isso somava um milhão ou dois, por aí. Os mortos em assaltos, em disputas do tráfico, em brigas de rua ou de bar, em brigas de família, os esfaqueados, os fuzilados e os espancados eram o dobro dos mortos em acidentes de trânsito. Só nos festejos do último Ano-Novo haviam se ralado não sei quantos. E tinha mais uns punhados de soterrados por desabamentos, de fuzilados por engano pela polícia, de mulheres mortas depois ou mesmo antes de serem estupradas, sei lá. Seu Seis iria dizer os nomes de todos esses milhões? Eu duvidava, a tal da memória psicótica não poderia ser assim tão poderosa, nem poderia ter lido todas as páginas policiais, nem todos os mortos eram noticiados. Mas qual o número que ele teria conseguido guardar?

Não deixava de ser engraçado voltar da escola e abrir passagem entre o grupo de defuntos que se apinhava no portão da casa, entrar e fazer meu lanche de final de tarde. Meu medo diminuía, até mesmo no trem. Em troca, crescia o tédio. Sempre ouvira falar em morrer de tédio, agora começava a entender que isso poderia ser mais do que um jeito de falar.

Quando alguém levaria seu Seis embora? Meu pai não ia no juiz pedir a remoção de seu Seis por medo de que os crentes, em represália, exigissem do poder púbico a revisão de sua aposentadoria. Eu não tinha para onde ir, casa que me recebesse. Na verdade, nem queria. Eu me consolava assistindo a desgraça de meu pai, sujeitando-se à situação por causa da aposentadoria mixuruca, temeroso não sei de quais outras represálias. Bem feito, pensava.

Sabia que seu Seis sairia do transe quando esgotasse o estoque de mortos identificáveis. E quando isso acontecesse, algo mais aconteceria, eu sabia, sentia. Mas o quê? E quando?

Adivinhava que continuaria enxergando mortos enquanto seu Seis morasse nas peças nos fundos da casa. Já não sentia medo. Nem no trem, espremida pela multidão sendo devorada pelos vermes. E deixara de achar engraçado. Tudo era hábito, não sentia nada. A única coisa que me interessava era saber quando seu Seis iria embora.

Um dia tive uma iluminação. Minha pergunta estava errada. Não era quando. Era o quê. O que seu Seis queria para ir embora? Mal pensei isso e um defunto se virou para mim. Não posso dizer que me olhasse, já que no lugar dos olhos tinha a fenda aberta por uma machadada. Movia os lábios devagar, falava baixinho. Não consegui entender o que dizia, mas tive uma intuição.

Naquela noite, como em todas, fui ao consultório. Depois que o expediente das visitas terminava, permaneciam com seu Seis apenas dois ou três dos organizadores. Revezavam-se na vigília de proteção ao santo, anotavam os nomes e frases que ele continuaria pronunciando até o nascer do sol. Eu levava bifes e arroz, sanduíches e café para eles. Essa era a forma que meu pai encontrara de ainda ganhar uns trocados com seu Seis. Negociara com os organizadores que eu providenciaria todas as noites as refeições e eles pagariam uma taxa pelo serviço.

Às vezes eu permanecia na sala, observando seu Seis, enojada. Ele suava sempre, pegajoso, melento. Sentia cheiro de carne podre desprendendo-se do homem enorme.

Sabia que seu Seis parara de alimentar-se apenas nos primeiros dias do transe profundo. Depois, durante a noite, em segredo, os vigilantes o alimentavam com parte das refeições que eu preparava com fartura, obedecendo à exigência deles. Ninguém me contara isso. Eu sabia. Para o público eles mantinham a imagem milagrosa de que seu Seis apenas ingeria goles d’água e quase nada de comida. Eu imaginava seu Seis cagando durante a madrugada e aqueles cretinos limpando o asqueroso em transe. Desejava que o consultório, o quarto, o banheiro pegassem fogo.

Era comum os vigilantes abandonarem a tarefa de anotar os nomes. Seu Seis repetia várias vezes as listas antes de iniciar novas. Os vigilantes cansavam. Retiravam-se para um canto, conversavam em voz baixa.

Naquela noite permaneci mais tempo na sala. Sentada no chão diante de seu Seis esparramado sobre a poltrona, revirando os olhos, recitando as listas.

Seu Seis passou a pronunciar mais devagar os nomes, fazia breves intervalos. Os vigilantes prosseguiram em sua conversa em voz baixa, no canto da sala.

Então eu vi. Seu Seis fixou seus olhos nos meus e moveu devagar os lábios. Não emitiu som, mas entendi o movimento. Ele pronunciara o nome de minha mãe. Retornou de imediato ao recital, no momento em que os vigilantes interromperam a conversa e voltaram seus rostos para nós, alertados pelo intervalo de silêncio mais prolongado.

Saí da sala sem sentir paz celestial alguma por ter lido nos lábios repulsivos o nome de minha mãe, não me senti como os outros, que se consideravam abençoados pela audição de um nome aguardado.

Para mim acontecera de modo diverso. E diferente deveria ser o significado do acontecido, pensei. Tive outra intuição. Passei a ler todos os dias as páginas policiais. No sexto dia aconteceu: a reportagem sobre uma mulher de nome e sobrenome iguais aos de minha mãe, assassinada de modo idêntico. Seu marido estava assistindo futebol na TV, à noite. Esvaziara todas as garrafas e queria mais. Não iria deixar de assistir o jogo para buscar as cervejas no bar, quadras adiante. Mandou a mulher, que sumiu no trajeto da rua escura. Encontraram seu corpo na manhã seguinte, num terreno baldio, degolada, de bermudas arriadas. A polícia confirmara que havia esperma em seu ânus. Do mesmo exato modo como meu pai mandara minha mãe para a morte, seis anos antes.

Seu Seis não me dissera um nome do passado. Dissera o futuro. Pensei isso um minuto antes de escutar uma mudança no vozerio habitual que vinha da rua. Deixei o jornal sobre a mesa da cozinha. Lavei a louça do meio-dia antes de sair à rua. Não sentia pressa. Era reconfortante ouvir aquela mudança para um tom aflito nas conversas da multidão de peregrinos. Eu adivinhava qual seria a novidade.

Fui até os fundos. Minha entrada no consultório era sempre permitida pelos organizadores. Seu Seis interrompera o recital. Permanecia balançando devagar a cabeça, mirava o teto. Tinha uma mistura de riso silencioso e careta medonha na cara. Alguns peregrinos observavam a cena. Talvez agora enxergassem a verdade, eu pensava, olhando para seus rostos pasmos.

O recital de seu Seis nunca fora em solidariedade aos mortos. Ele sentia necessidade de estar rodeado de tanta dor. Sentia prazer. Eu sabia.

Prolongara com nomes falsos a expectativa pela audição dos nomes aguardados. Nenhuma vela fora acesa em outros planos pela salvação dos mortos, quando um nome fora recitado.

Seu Seis é doido de atar. Mas não é apenas doido. Ele se comunica de verdade com alguma coisa. Demorei a entender isso. Foi só naquele momento, depois de ler que uma mulher de nome igual ao de minha mãe fora assassinada do mesmo modo, olhando para o riso medonho do monstro, que eu soube.

Eu olhava para os rostos dos tolos, tentando adivinhar se eles enfim enxergariam a verdade. Mas, não. Eles estavam assustados. Perdidos. A verdade, eles não queriam encontrar.

O que aconteceu depois todos assistiram na TV, ouviram no rádio, leram nos jornais. Sabem que o culto definhou, que agora poucas pessoas permanecem em frente à casa, esperançosas ainda de que seu Seis volte a recitar os mortos.

Acabou o noticiário, e todos lembram dessa história, pois foi há menos de um mês que iniciou o declínio do culto.

O que nunca souberam é o que acontecia comigo. Eu retalhava porções de carne a cada noite, preparando os bifes que levava com arroz, sanduíches e cafés para os vigilantes, que alimentavam o santo em jejum. Minha mão tornava-se mais destra a cada noite, forte, ágil, incisiva no corte. A faca longa e afiada passara a ser um prolongamento de meus dedos. Eu me perguntava se o novo transe de seu Seis, sorrindo para o teto, seria profundo a ponto de impedi-lo de defender-se de um golpe.

Seguia minha rotina. Continuava enxergando os mortos, amarrada ao tédio com cordões e laços fortes. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação que eu pudesse controlar. Assistia o espetáculo. A diferença era que, agora, os mortos pareciam ter medo de mim. Não viravam em minha direção seus rostos. Mantinham distância respeitosa. Retiravam-se aos poucos do local em que eu estivesse. Até o metrô tornava-se rarefeito. Sei que era imaginação minha. Mas, nítida demais.

Eu levava as refeições todas as noites até os fundos. Os vigilantes não tinham mais o mesmo ânimo. Até dormir, dormiam. Ouvira eles comentando que esperariam mais uma semana ou duas. Se o santo não voltasse a recitar milagres, seria removido para o asilo.

Meu pai se lamentava pela perspectiva de perder a venda das refeições. Repetia para mim, como se esperasse que eu inventasse uma solução, que a credibilidade fora perdida, não seria possível reativar a casa com outros médiuns. Meu consolo era assistir seu tormento.

Prosseguia em minha rotina. Esperava por algo, sem saber o quê. Ficava observando seu Seis, uma noite após outra. Os imbecis dos vigilantes permaneciam conversando no fundo da sala. Dormiam. Eu me perguntava se, durante esse tempo todo, nenhum deles percebera que seu Seis continuara a crescer. Cada vez mais alto, mais inchado.

Todas as noites levava as refeições e permanecia um tempo diante do monstro. Ouvira os vigilantes comentando que não existiam motivos para adiar a remoção do seu Seis. Só que eu já não desejava isso. Não enquanto tudo não estivesse, de verdade, terminado.

Eu sabia, sentia, que deveria escrever sobre os acontecimentos. Escrevi isso tudo na noite retrasada, sem parar.

Ontem à noite o demônio falou em voz baixa comigo. Os vigilantes estavam distraídos no canto da sala, jogando baralho. Eu permanecia em pé diante de seu Seis, observando seu inchaço. Imaginava se ele não explodiria como um balão se fosse furado. Estava com os olhos fixos em seu estômago, saltado sob a camisa, quando senti um formigamento na testa. Antes mesmo de levantar a cabeça, adivinhara: o olhar de seu Seis estava cravado ali. Sei que não era apenas reflexo do único abajur aceso no canto da sala, havia mesmo um brilho próprio saindo de seu olhar, um brilho de coisa ruim. Seus olhos pareciam duas cabeças de cobras encarando-me desde cima. Seu olhar foi baixando. O monstro estava me admirando. Seu olhar deliciou-se com meu umbigo, deixado à mostra por minha calça de cintura baixa. Sua língua asquerosa fez movimentos para fora da boca como se lambesse, enquanto fixava meus pés descalços. Chupou meus dedinhos à distância, um por um. Ele demorou o olhar em meus peitos, salientes sob o tecido da camiseta branca. Então começou a mover os lábios em silêncio. Não consegui ler o que diziam. Aproximei-me para entender, mesmo sabendo que aconteceria o que aconteceu. A mão suada de carne podre acariciou meu braço, enquanto eu lia e relia nos lábios do pestilento o nome do meu pai.

Os dois vigilantes abobados nada viram. Mal responderam ao boa-noite que desejei ao me retirar. Nem perceberam que, na porta, ainda me virei para seu Seis e mandei para ele um beijo prolongado.

Não duvido mais de seus poderes. Sei que ele pode chamar forças obscuras para produzir acontecimentos. E entendi a troca que ele me propôs. Sei que ele pode prever o futuro. Mas não todo o futuro. Ele também se deixa cegar.

Passei a noite em claro. Em alguns momentos pensei em recuar, porém me foi nítido que, quando fraquejava, o tédio, ou a raiva, ou o medo, sei lá, tornava-se tão grande e pavoroso que não sei se era uma enchente que vinha do fundo de mim para me afogar ou se era um mar de ondas gigantes vindo de fora, do mundo.

Passei outra noite em claro. Mas estou sem sono. Escrevo essas últimas linhas agora pela manhã. Meu pai tomou cerveja em vez de café. Saiu sem me dizer palavra. Notei que o bolso de sua calça estava estufado por um bolo de dinheiro e que a ponta de uma nota de cinqüenta estava à mostra. Ele já não sabe mais o que faz. Sempre se achou esperto, sequer percebe o quanto está débil. Foi jogar sinuca no boteco, fazer apostas. Em sua ilusão, pensa que vai voltar para casa com mais dinheiro do que saiu. Não vai voltar para casa. Vai ser assaltado. Vai reagir. Vai ser morto. Foi a última vez que o vi. Eu sei.

Voltei da rua faz meia hora. Só vi as pessoas de sempre, as que vivem suas vidinhas. Os mortos desapareceram. Em instantes meu pai vai se juntar a eles. Minha mente está expandida. Compreendo tudo como nunca havia compreendido. Estou sem medo, sem sono. Estou desperta como jamais estive.

Os dois vigilantes abobados bateram na porta da cozinha. Vieram me dizer que vão sair mais cedo. Os dois outros não demoram a chegar. Não preciso me preocupar com seu Seis, ele está dormindo um sono pesado, tão cedo não acorda.

Na verdade, os outros dois vigilantes vão demorar. Eu sei. Depois de todos esses meses, estaremos só eu e seu Seis na casa. Eu, aqui na cozinha. Ainda agora, retalhava a carne. Ele, lá nos fundos. Dormindo, acreditaram os dois abobados. Só eu e ele.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

A devota, de Caetano Sordi

Naqueles dias, em que o mundo conhecido parecia ter sido colocado de cabeça para baixo, apenas uma consternação habitava os pensamentos de Fermín Arantza: conduzir a mãe, pela última vez, à Igreja de Santiago Apóstolo, em Amorebieta, para se confessar. Os dias que restavam para Suri Arantza na companhia dos vivos eram poucos. Os sinais disso eram tão evidentes quanto o rastro dos aviões alemães no céu: de uns tempos para cá, a velha mãe não aquietava a língua um só segundo, destilando, do nascer ao pôr do sol, as cantilenas religiosas, en el “idioma”, que todos, num raio de duzentos quilômetros, saberiam acompanhar.

O problema que se interpunha na mente de Fermín era de ordem prática: o padre confessor havia sido transferido dois anos antes para Amorebieta. Padre Xoaquín, um dos poucos galegos conhecidos que aprenderam o idioma, era, na cabeça de sua mãe, autoridade inviolável em termos de confissão. Suri Arantza jamais se subordinaria aos conselhos de um padre mais jovem. Ainda mais se ele se recusasse a falar euskera e tivesse “aqueles olhos andaluzes” como tinha o então abade da capela local. Era de suma importância, portanto, que o bloqueio dos nacionalistas fosse atravessado para que sua mãe pudesse habitar a eternidade ao lado direito do Senhor.

Desde o dia em que eclodira a guerra, foram poucos os gentios do povoado que tinham visto jorrar sangue ou explosões de pólvora à sua frente. Protegido, à leste e ao sul, por umas colinas baixas; e a norte e à oeste pela coroa dentada do Cantábrico, o vilarejo, até então, havia sentido somente os efeitos secundários do fratricídio peninsular. Os racionamentos de comida e mantimentos já duravam um ano. Os aldeões já tinham se resignado a comer estritamente aquilo o que produziam, tratando produtos enlatados, bem como industrializados de toda sorte, sob o registro de bem-vindas exceções domingueiras. A situação piorara, entretanto, desde que os nacionalistas haviam bloqueado a Estrada Grande, na altura de Amorebieta, por volta do entardecer da quinta-feira de Pentecostes.

Levá-la seria de grande facilidade e simplicidade se a devota não estivesse acometida do furor cantinolento que a fazia repetir, uma atrás da outra, todas as cantigas de Igreja conhecidas em Euskadi, sem que nada, absolutamente nada fizesse-lhe parar. Pelas ordens do generalíssimo, todas as línguas peninsulares que não o castelhano estavam expressamente proibidas em território nacionalista. Mesmo que cruzasse o cerco conduzindo a mãe com sua demente cantoria, o simples fato de andar por Amorebieta ao seu lado poderia produzir graves problemas para ambos; e de problemas, Fermín Arantza já possuía a complicada vida da etxalde. Se todos os problemas do mundo fossem como aqueles da vida pastoril, por exemplo, recolher uma ovelha morta do leito de um rio, a existência seria significativamente menos complicada. Assim pensava Fermín Arantza toda vez que a polícia implicava com algum conhecido seu por chamar as coisas por seu nome de verdade.

Sim, na cabeça de Fermín Arantza, as coisas tinham nomes de verdade e nomes de mentira; os primeiros, evidentemente mais antigos e potentes que os segundos. Não havia motivo que o convencesse para chamar Donostia de San Sebastián, euskera de basco ou mesmo “vascuense” (palavra horrível ouvida de um sujeito local conhecido como “o gramático”), bem como a sagrada etxalde de “fazenda” e substituir o corriqueiro e fluido Egun On por um frio e cortadiço “Buenos dias”. Explicar-se em castelhano, assim como explicar o problema da sua mãe em castelhano para a soldadesca armada, era uma situação do mundo dos possíveis que nada agradava Fermín Arantza, justamente por ter de substituir as palavras autênticas pelas palavras mentirosas.

A Fermín Arantza, que nunca fora muito afeito à atmosfera citadina, restringir seus horizontes à cerca da etxalde nunca havia se configurado como um problema. Até mesmo visitar o povoado, distante a poucas léguas do seu portão, consistia para ele uma tarefa aborrecida, destas que se faz somente por se fazer. Desde que o irmão mais novo Ignacio – ou Iñaki, no idioma – havia partido para um convento em San Sebastián, a responsabilidade pela velha casa e a velha mãe tinha recaído totalmente sobre si. Suri Arantza, aos oitenta e quatro anos de idade, já não enxergava com a mesma eficiência com que alguns anos antes conseguia identificar grãos de milho fugidios nos interstícios das lajotas do assoalho; da mesma forma, seus movimentos, outrora tesos e certeiros, tinham definhado até os simples atos humanos de falar e respirar. Caminhar ainda lhe era possível, uns poucos passos, assim como conduzir a colher de sopa até a boca. Todos os dias, a velha dirigia-se até a latrina sozinha e, pacienciosamente, respeitava o imperativo de suas necessidades corporais. O pouco de autonomia que ainda possuía frente ao filho era celebrada diariamente neste ritual sem mais significações. Praticamente fundido às necessidades da mãe e da lida na etxalde, Fermín Arantza não tinha tempo algum para mulheres, jogar pelota, distribuir insultos etílicos na taverna e todas as atividades mundanas que consumiam o tempo dos varões ilhados pela guerra civil. Bonito e forte, não eram poucas as moças que viam nele um casamento promissor; belos e robustos filhos como Fermín e toda a estirpe dos Arantza, cuja presença naquele úmido vale do Cantábrico remontava ao tempo dos romanos ou dos visigodos. Os Arantza, assim como seus vizinhos Iturbide e os irascíveis Oyarzábal da outra margem do riacho (com os quais os Arantza sempre possuíram disputas demarcatórias), eram o que de mais antigo – depois das pedras – poderia ser encontrado entre aqueles montes tristes.

A velha passava os dias deitada numa cama antiga, que havia assistido ao parto de seus filhos, além de júbilos e infernos da vida conjugal. Da grande janela à sua frente, conseguia ter uma visão bastante ampla das terras da etxalde, embora não conseguisse mais distinguir dos vultos as suas formas essenciais. Fermín, após a lide no campo, passava longas horas velando a mãe, sentado em uma poltrona puída, como que antecipando um funeral.

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. – ordenou Suri Arantza – o que está acontecendo lá embaixo, lá no rio? Olha com atenção.

- É uma ovelha, mamãe. – respondeu Fermín – Há tempos que está afogada.

Já se contavam três dias desde que a carcaça do animal havia sido trazida, pela correnteza, à margem do pequeno riacho lindeiro à etxalde dos Arantza. Nem Fermín nem os empregados da propriedade haviam tomado qualquer providência em relação àquilo. Pensaram, primeiramente, que os cachorros tratariam de fazer o trabalho sujo, deglutindo os restos da pobre ovelha como bendiria seu instinto ferino. Os ossos, posteriormente, poderiam ser guardados pelos homens para usufruto próprio. Em tempos de penúria como aqueles, a utilidade de todas coisas – até mesmo as mais absurdas e prescindíveis, em outras épocas – era ponderada com seriedade. “É quando o mundo parece se dilacerar”, pontificava Xabier Iturbide, velho amigo e vizinho dos Arantza, “que as coisas se revestem de mais dignidade”.

Os dias iam se seguindo e o sol se punha cada vez mais triste atrás dos dentes do Cantábrico; o fim de tarde vinha sempre acompanhado do monstruoso rufar das hélices alemãs. Fermín Arantza mal e mal comia, importunado como estava não só pelo problema da missa e da subseqüente confissão, mas também pela intermitente ladainha que se ouvia desde o dormitório da sua mãe. Por alguns momentos esquecia daquilo e era como se a fraquejada voz de Suri Arantza ditasse o ritmo do mundo; de fato, aquelas cantigas eram declamadas na língua do nome verdadeiro de todas as coisas, e nada mais adequado ao mundo e à vida do que o nome que cada coisa tem. No entanto, toda vez que se afastava um pouco da velha casa e podia desfrutar de um silêncio mais profundo, era como se outra voz, ainda mais verdadeira, independente dos homens e das suas guerras civis, falasse ao seu ouvido. Longe da mãe, longe de tudo, apenas na companhia dos grilos e dos imprevisíveis sons do vale e do riacho, era como se ouvisse um idioma mais autêntico que o idioma autêntico: o som das palavras sem boca, diretamente coladas nas coisas que definem.

Toda vez que retornava à casa e ao tecido sonoro produzido por Suri Arantza, Fermín sentia-se novamente jogado sobre a realidade. Aquela língua há pouco ouvida como que se dissipava novamente dentro do espectro das palavras corriqueiras, dentro do universo de nomes e verbos produzidos pelo idioma, a língua falada pela sua estirpe desde eras ancestrais. Volta e meia a mãe interrompia os cânticos e, mirando Fermín, fundo nos olhos, lhe perguntava:

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que está acontecendo ali? Olha com atenção.

Não era mais a carcaça da ovelha que atraía seu olhar cansado. Ela já havia sido retirada. A persiana da janela mais próxima é que se mexia freneticamente, por causa do vento, dando secos murros na parede. Como era noite de lua cheia, portanto bastante clara, uma tímida luz vinha de fora. Esta luminosidade parca, acoplada ao vai-e-vem da persiana, produzia sombras fantasmagóricas no dormitório da devota.

- É o vento, mamãe. Tua janela está aberta.

Desde que Suri Arantza havia perdido boa parte da visão, Fermín também fazia as vezes de olhos para sua mãe. Aos vultos que ela via aqui e acolá – sobretudo aqueles do lado de fora da janela – ele dava a digna e honesta interpretação. “Vejo agora através das tuas palavras, Fermín”, dizia ela, sempre agradecida, nos momentos de lucidez em que cessava a cantoria. Eles eram diários e repetiam a mesma forma, como se um demônio meridiano tivesse implantado uma loucura sã, ou uma demência matemática no juízo da pobre velha.

Podia ser às cinco horas da tarde ou às sete horas da manhã. Variava. Fermín chegava ao quarto minutos antes e, silenciosamente, acomodava-se na poltrona de feltro, colocada ao lado do leito de sua mãe. A ladainha religiosa arrefecia lentamente e, de repente, após alguns segundos de calado suspense, ela dizia:

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. Diz-me o que lá se vê. Diz-me com atenção.

Para a mulher do vizinho Iturbide, o ritual diário não passava de mais uma manifestação do sagrado coração de Cristo, indício de que Suri Arantza necessitava o quanto antes se confessar para sua redenção. Tais coisas oprimiam o coração de Fermín como um cruel torniquete. Antes que achasse uma solução viável para o problema, temia enlouquecer de vez. O vento que sopra do Mar Cantábrico em direção à península, assim que bate nas encostas de Navarra, retorna sobre Euskadi com a úmida força de uma resignação abatida. Em todas as direções que olhava, Fermín Arantza via indícios de seu mundo acabando. A ovelha que encontrara em seu riacho, tomara ciência posteriormente, havia sido abatida por fogo humano, impiedoso. Da guerra das pessoas, também os bichos estavam padecendo. A guerra chegara naquele ponto do mundo que quase ninguém havia conseguido transpor. A língua de Fermín e das ladainhas da sua mãe só havia resistido por força destas contingências, meio naturais, meio humanas, que preservam resquícios da fundação do mundo aqui e acolá. Assim que terminasse a guerra, temia Fermín, também terminaria a sorte de sua gente.

A ininterrupta corrente das efemérides era cada vez mais permeada pela angústia de Fermín e ritmados pela cantilena a São Tiago Apóstolo, às Virgens de Covadonga e Begoña, Santo Antônio e São Sebastião. Os Iturbide, comovidos com a situação do rapaz, trataram então de emprestar-lhe um bem valioso, para que pudesse ouvir, de quando em quando, outras melodias que não aquelas da sua mãe. O enorme rádio de botões circulares foi posicionado ao lado da cama de Suri Arantza, para que também ela pudesse variar um pouco a monotonia dos pensamentos. Naquela altura dos acontecimentos, qualquer mudança de tom representaria um temporário alívio.

Pois que os resultados de tal empresa não foram os melhores, tendo em vista os planos ainda vivos na cabeça de Fermín de cruzar o cerco dos soldados e chegar ao Padre Xabier a tempo de operar a salvação da alma materna. Após um estafante dia de trabalho na plantação contígua à casa da etxalde, Fermín Arantza levou à mãe, como de costume, uma pequena ração de leite, biscoitos e café. Ao entrar no quarto, deparou-se não com as costumeiras cantorias religiosas, mas algo muito pior; muito mais difícil de ser aceito e passar imperceptível pelos aquilinos ouvidos da soldadesca. Com força surpreendente para uma velha entrevada, Suri Arantza, um tom acima da sua voz normal, cantarolava as malditas palavras:

Eusko gudariak gara


Euskadi askatzego


Gerturi daukagu odola


Bere aldez emateko...

Fermín Arantza conhecia muito bem aquela melodia. Quando a sua mãe ainda freqüentava o baile dos humanos sãos, ele volta e meia se dirigia, após as lides na propriedade, para a única cantina do povoado, tendo como objetivo consumir uns tragos. De quando em quando, gente de Bilbao aparecia propalando, numa ridícula versão pomposa do idioma, idéias tão absurdas quanto imaginar um morto insepulto feliz. Era um fato, conhecido e acreditado, que Fermín Arantza nunca gostara muito de gastar sua língua com castelhano e com a gente que o falava naturalmente. Todavia, reconhecia como sacrossanta a união das foralidades de sua gente e Reis Católicos. Questionar tais coisas parecia, para sua mente aldeã, tão sacrílegas quanto jogar aos porcos o sangue eucarístico. Uma das grandes irritações suas com o mundo daqueles dias era justamente o fato dele parecer estar se dilacerando através da suspensão destes liames sagrados; a fidelidade a certos princípios estava impressa em sua alma. “Quando ovelhas mortas aparecem boiando em riachos e pobres velhas são impedidas de se confessar, é porque tudo, absolutamente tudo está perdendo lentamente o seu sentido” – assim dissera Fermín Arantza para o amigo Iturbide, um pouco antes de regressar à casa depois de se aconselhar sobre a novidade da mãe.

O fato preocupante não era agora o idioma em si: era o conteúdo das novas ladainhas da sua mãe. Fermín conseguia imaginar com perfeição a sua carroça avançando pela estrada, sua mãe escondida como podia, nada conseguindo abafar a cantilena que vem da sua boca. O primeiro soldado os aborda. Do fundo da carroça se escuta:

Eusko gudariak gara


Euskadi askatzeko...


Nós somos os soldados bascos


Que a Euskadi libertaremos...

Os soldados entendem rudimentos do idioma. Em todo caso, mesmo não o entendendo, saberiam identificar a melodia republicana. Maldito dia em que os Iturbide haviam lhe emprestado aquele rádio. Melhor seria que os franquistas escutassem Done Jakue e “santo santo santo é o Senhor” do que aquelas palavras que ele mesmo não via razão de serem. A própria palavra gudariak não existia na sua língua normal, herdada dos avós e bisavós. Como bem lhe informaram alguns, tratava-se de mais um dos verbetes criados pela gente de Bilbao para falar de coisas que no mundo de antanho não existiam, mas que como a pólvora, a espingarda, a metralhadora de repetição e a bomba de fósforo, passaram a habitar o mundo das coisas conhecidas e demandavam nomes para si.

Em meio a tudo isso, chegara o frio, e Suri Arantza fora acometida de uma violenta gripe que a colocou por algumas semanas mais próxima da morte do que da vida. Paradoxalmente, a doença acabou dando a Fermín Arantza uns dias de paz, uma vez que a cantoria - agora política - e não religiosa, havia trazido para a etxalde novamente o calar-se das coisas inertes. Temia, no entanto, que a mãe retornasse do silêncio proferindo outras verborragias, quem sabe insultos e palavrões. O medo acabou não se concretizando, mas assim que retornara ao pouco de lucidez que lhe restava, Suri Arantza apenas lhe perguntou:

- Levanta-te menino, põe-te de pé. O que é esta claridade lá fora?

- É a neve, mamãe. O inverno chegou.

Fermín apreciava muito o brancor gelado que cobria os campos naquela época do ano, mas em tempos difíceis, nada pior do que a chegada do frio. O racionamento de víveres tinha se tornado ainda mais cruel. Os nacionalistas que bloqueavam a Estrada Grande haviam organizado, na semana anterior, uma campanha de recolhimento de todo tipo de tecido e peles, nas etxalde dos arredores, para o esforço de guerra. A propriedade dos Arantza não havia ficado de fora. Fermín e os empregados conseguiram esconder apenas uns casacos seus e umas mantas puídas de velhos tempos, de modo que patrão e empregados – os homens – faziam um rodízio semanal de agasalhos para organizar a penúria de modo mais ou menos decente. Na visita dos soldados, Fermín escondera a mãe no galinheiro, para que os castelhanos não ouvissem seus cantares revolucionários. Por vezes sentia toda aquela situação como ridícula, mas há muito as coisas perdiam sua seriedade e modo grave de ser.

Assim que foram embora, percebera que um dos soldados deixara um enorme pala vermelho com as insíginias dos Reis Católicos sobre as almofadas do sofá. “Bem feito, filho da puta”, pensara de si para si em foro íntimo, e ajuntou a nova coberta ao leito da doente mãe. A gente do povoado tornara-se, naquele inverno, uma pequena população de inventores. A miséria fizera com que os objetos ainda não consumidos pelos esforço de guerra se tornassem polivalentes, servindo em todos os lares para muito mais funções do que aquelas em vista das quais vieram ao mundo. Esta situação derivou numa mudança de mentalidade por parte do vizinho Iturbide, que abandonara sua doutrina da dignidade ampliada dos objetos em tempos difíceis e adotara a máxima de que, por força da matança sem sentido, “os objetos haviam todos se prostituído”.

Assim que a primavera deu os primeiros indícios da sua chegada, colorindo pouco a pouco o campo da etxalde com pequeninas flores branco-e-amarelas, Suri Arantza pareceu um pouco mais disposta e aventurou-se para além da cama em passos tímidos e contidos, debruçando-se sobre o parapeito da janela. Fazia tempo que não via o mundo desde aquela perspectiva. Embora conseguisse mirar o exterior desde a sua cama, daquele ponto de vista o mundo de fora ocupava todo espectro do visível, por pior que fossem suas capacidades de distinguir a realidade dos borrões que via aqui e ali. Fermín Arantza a observava desde a poltrona com uma pequena alegria estampada na alma; freqüente nos momentos em que a mãe cessava o torpor melódico e retornava ao mundo das conversações normais.

- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que é isto que se move lá?

Fermín levantou-se um tanto abruptamente. Da poltrona, via uma figura humana crescendo em direção à casa desde o exterior. Cambaleava. E parecia estender a mão. Da janela, pode enxergar melhor. Antes de correr para fora, respondera:

- Mamãe, é um rapaz que chega à nossa casa. Parece exausto!

- Dê ao moço água e pão. Casa com visita, casa com Deus.

Fermín não parecia tão disposto a seguir à risca o ancestral preceito da sua mãe. Naqueles dias, uma visita também poderia significar o inferno de uma casa. Saiu para encontrá-lo, portanto, bastante receoso. Sempre tinha um revólver no coldre por precaução. Ao dar-se de cara com o visitante, percebeu que não se tratava nem de um galego, nem de um castelhano, cântabro ou basco; o surrado uniforme denunciava ser ele um membro das brigadas, inimigo dos nacionalistas e possivelmente estrangeiro. De fato, seus louros cabelos de visigodo e os profundos olhos azuis denunciavam qualquer coisa nórdica; para efeito de satisfação identitária, Fermín decidiu considerá-lo um alemão.

- Que queres aqui? – perguntou em castelhano.

- Água. Comida. – respondeu o visitante, possivelmente dando voz à metade do seu vocabulário em espanhol.

- Me acompanhe.

Fermín sentiu que o gesto para segui-lo havia sido mais eficiente que as palavras ditas.

Conduziu-o até a cozinha. Lá, preparou café forte e deu-lhe duas fatias de pão branco; um punhado de manteiga, o pote de açúcar. “Presunto?”, “Agradecido”. “Geléia?”, “Deus lhe pague”. Para si, Fermín serviu-se de café com um bocado de leite. Percebeu que fazia três anos que não dividia a ampla mesa de madeira com alguém de fora da etxalde.

- Brigadas?

- Sim – assentiu o outro.

- Como você veio parar aqui? Não há um bloqueio dos nacionalistas logo aqui a frente?

- Amorebieta caiu. Divisão italiana matou tudo nacionalista, pá, pá, pá! – esclareceu o visitante, gesticulando, com forte sotaque germânico – Eu perdi meu Kommandant. Escondido na floresta... dois dias caminhando até casa de bom homem.

Enquanto o estrangeiro comia, Fermín Arantza reparava nas cicatrizes que seu corpo de normando sustentava, talvez como troféus. O sujeito comia como se nunca tivesse visto um prato de sopa em toda a sua vida. Tristes tempos, em que um mísero pedaço de pão provoca as mesmas reações que uma barra de ouro.

- O caminho agora está livre? Daqui até Amorebieta não há nacionalistas?

- Não. Amorebieta caiu. Kaputt. Wir haben es geschafft.

- Amigo – disse Arantza após respirar fundo – se você é grato pela minha solidariedade, gostaria de lhe pedir um favor. De gente honesta para gente honesta.

- Por favor.

- Escolte a mim e à minha mãe até a Igreja de São Tiago Apóstolo em Amorebieta. É questão de vida ou morte.

O outro não estava em condições de recusar qualquer pedido. Ao final da tarde já estavam com tudo pronto para a viagem. O coração de Fermín Arantza, pela primeira vez em anos, desde o início daquele cerco sem sentido, via-se pleno de alguma esperança. Cumpriria com orgulho sua função de bom filho: encomendaria de modo justo e decente a boa-morte de sua mãe. Viajariam durante a noite, por ser mais seguro. Embora os franquistas tivessem sido vergonhosamente abatidos por uma força tarefa de voluntários alemães, franceses, argentinos e italianos, era bem possível que alguns deles ainda perambulassem pela mata, humilhados e ansiosos por tomar o sangue de qualquer coisa que viesse a cruzar o seu caminho.

A carroça avançava lentamente pelo curso da Estrada Grande. Cada vez mais longe da etxalde, Fermín Arantza conseguia compreender melhor o estrago sobre o mundo que o fratricídio ibérico estava causando. Não havia árvore, não havia bicho, não havia casa arruinada ao longo do caminho que não gritasse: “salvem-me, pois também sou vítima desta barbárie”. Fermín pensou então em Cristo e o sagrado mistério do sacrifício. Se um homem morre pela humanidade inteira, por que em alguns casos a humanidade inteira parece morrer por força de uns poucos homens?

Os raios de sol já surgiam desde os cumes cantábricos quando sua diligência adentrara às portas da cidade recém tomada. Amorebieta ainda cheirava à peste; o fedor de pólvora, misturado com sangue e madeira queimada impregnava suas vias nasais. O estrangeiro, feliz pela retribuição paga, deixou-se ser levado mais uns metros pela carroça da família Arantza. Simpatizara com aquela velha louca, porém bondosa, que cantara a viagem inteira o hino da Internacional. Antes de se alistar em seu país natal, havia ouvido que não há lugar na península mais pitoresco e verdadeiro que aquelas terras do norte, espremidas entre o mar e a montanha, entre Deus e o Diabo, entre a Espada e a Cruz. Tal raça não parecia habitar a face da terra. Não, pelo menos, no mesmo registro que os demais povos ao redor. A viagem de escolta ao lado dos Arantza havia apenas confirmado esta impressão.

Das poucas ruas de Amorebieta não tomadas pela ocre lama da destruição, a praça central pareceu a Fermín Arantza a mais apropriada para estacionar a carroça e fazer descer, com segurança, sua pobre mãe. Dali até a igreja do Apóstolo eram uns poucos passos. Nada que as pernas de Suri Arantza, num sacrifício final, não estivessem aptas a fazer. Apesar do lento apagamento do mundo, o céu estava, naquele dia, assustadoramente azul. Traços brancos da aeronáutica alemã cruzavam sua imensidão lembrando aos mortais que o terror ainda persistia. Pelo menos para Suri Arantza, as coisas pareciam se encaminhar para um desfecho mais feliz.

Subitamente, mãe e filho escutaram zumbidos de todos os lados. Vozes, muitas vozes, gritavam ordens em duas, três, quatro, infinitas línguas, de infinitas partes do mundo; de todas as partes da Terra, ao menos, que haviam enviado um pouco da sua gente para ter suas vísceras expostas naquela guerra de horrores. “Viva a República!”, ouvia-se à esquerda; “Es lebt die spanischen Republik!”, assoprava o vento à direita; “Por Franco, por España!”, de todos os lados; até mesmo um familiar “Gora Euskal Herria! Gora Euskal Herria askatuta!” conseguiram captar. Os zumbidos das balas eram cada vez mais próximos. Sem poder apressar o passo, Fermín Arantza tentou cobrir a mãe como pôde, puxando-a de um lado para o outro, de porta em porta, janela em janela, procurando defender a ambos da rajada de chuva prateada que os atinge e desperta: ou bem enfrentam o trovejar da guerra, ou bem Suri Arantza morre sem se confessar.

De pronto, avistaram a Igreja de São Tiago Apóstolo cercada de anarquistas. Também ela havia sido tocada pelas balas. Do alto de um buraco na parede, outrora ocupado por um vitral, um soldado atirava na estátua de Cristo Rei. Rapidamente ele os avista, mãe e filho, Fermín coberto por um pala vermelho com a efígie dos Reis Católicos. Cumpridor de ordens, o soldado não titubeia. “Franquista!”, grita, e Suri Arantza suspende a respiração. Seus olhos não conseguem identificar nada mais que movimentos incertos, apenas a imagem de Fermín, jogado ao chão, destaca-se, visível, na tessitura do seu olhar.

- Levanta-te, menino. Põe-te de pé. O que está acontecendo aí frente? Que vozes são estas e que línguas são estas que eu não compreendo?

- É o mundo, mamãe. São as palavras novas, mamãe. Nem elas, nem o mundo, nos pertencem mais.

terça-feira, 11 de maio de 2010

CORPO FECHADO, de Isabelle Fontrin

Deitado de olhos abertos no escuro do quarto, Doca recheia a noite insone com desespero. O sofrimento se esparrama e se aprofunda há dois dias. O medo resseca-lhe a boca. O coração dispara ao ritmo da angústia. Leva a mão à barriga e constata que o ferimento continua sangrando; e a dor, insuportável. Gostaria de sair porta afora espantando o impossível. Imagina-se correndo ladeira abaixo, a descer o morro, pegar o asfalto e fazer a única coisa na qual é bom.

“Tocaiar um otário voltando num carrão da balada. Estraçalhar o vidro, fincar o berro na cara.”

Doca gostava mesmo era do poder que sentia ao ver o terror nos olhos de suas vítimas sem saber o que viria.

“Na paz, irmão! Leva tudo, mas me deixa.”

Quantas vezes ele ouviu estas palavras? Em vozes trêmulas, contraste com a firmeza de sua mão empunhando a arma que lhe dava coragem.

“E aí, caralho, quem pode mais? Hein? Hein?

E gritava:

“Passa tudo, passa tudo, porra!.”

Quanto mais se encolhiam mais aumentavam as ofensas de Doca.

“Irmão é o escambau, mané, quem é mermão aqui? Sou filho do demo, não tenho parceiro, faço meus trampo na proteção do Poderoso.”

E ele acreditava no que dizia.

Na dolorosa madrugada leva a mão ao peito em busca da proteção que traz pendurada ao pescoço desde menino, presente de Mãe Vânia, poderosa na magia negra, temida no morro. Doca nunca se esqueceu da noite em que ela o pegou pela mão e o levou onde ninguém entrava sozinho ou sem permissão. Ele sempre fora curioso do lugar, mas tinha medo do poder da mulher que a todos na comunidade impunha limites. Aos olhos infantis-de-menino-que-já-viu-de-tudo o lugar parecia aterrador.

Dezenas de estátuas bizarras abarrotavam o minúsculo quartinho nos fundos do barraco da batuqueira. Lugar sem janelas, repleto de sombras subindo pelas paredes de madeira podre, desenhadas pelas chamas das velas que faziam o ambiente sufocante. Cheiro de morte. Sua protetora, com hálito de cachaça, avisou-lhe:

“Desde hoje, meu fio, tu não precisa mais tê medo de nada nem de ninguém. Tô te dando a proteção de um Pai muito melhor do que o teu verdadeiro”.

Ela bebeu e deu de beber a ele, rodaram dentro do círculo pintado em carvão no piso, contornado pelas velas acesas, evocando palavras incompreensíveis ao menino. O ritual terminou com o sacrifício de um galo preto, retirado de um saco de estopa. O bicho teve o peito aberto em segundos pelos dedos de Mãe Vânia; o coração arrancado e colocado na pequena mão espalmada, ainda pulsante, quente, banhado em sangue. Doca lembra-se da sensação do músculo apertado, fechado entre seus dedos, o galo esperneando, como por magia, ainda conectado à vida que já não tinha. No final, recebeu um colar acompanhado da promessa-ameaça de nunca tirá-lo, um quadrado de couro preso a uma tira do mesmo material, recheado com misterioso conteúdo jamais conhecido.

“Tu tá protegido, guri. Ninguém mais mete a mão contigo. Chega de abusarem de ti porque é sozinho. Teu pai agora é o Poderoso. Fala pra todo mundo que eu disse isso. Nada de mal vai te acontecer, nem agora, nem no resto dos teus dias”.

E a partir daquele dia, a vida de Doca mudou mesmo. Ele se sentiu mais seguro, ninguém o incomodava, deixou de obedecer aos maiorais, como se seus donos fossem e passou a viver e ganhar a vida por ele.

“Um dia faço a mala e aí vou ter o que mereço.”

Era o que sempre esperava.

Agora, colada ao corpo suado do rapaz, a encardida guia permanecia como a finada Mãe Vânia ordenara. Na quente e sofrida noite havia inferno dentro do barraco e nas estranhas de Doca. Tinha 25 anos e nunca havia sido pego apesar das dezenas de mortes nas costas. Antes era parte do serviço, já há algum tempo lhe dava prazer.

“Passa os troféu aí e vaza filha da puta, vaza, senão te encho de pipoca”.

Esta oportunidade ele dava apenas aos que não se metiam a valentes. Colocava a grana, relógio, celular, tudo que pudesse virar pó, nos bolsos e se preparava para o próximo. Mudava de local, tinha os pontos perfeitos. Fazia como rotina.

“A fita é cabulosa. Ô, meu pai, me tira dessa!”

Há horas não conseguia mais se mexer, sem beber água, sem nada no estômago. Alternava momentos de lucidez e delírio. A febre e o vício consumindo dizimada energia. O calor, o calafrio, o ferimento podre, sangue se sobrepondo ao anterior, negro, seco.

“Passa tudo, passa tudo, passa tudo, puta do cão”

“Calma, calma, meu filho, estou indo para o trabalho, sou freira, que o Senhor esteja contigo”.

Como Doca adivinharia que a mulher de meia idade, miúda à sua frente era uma religiosa? Sem hábito, dirigindo sozinha na madrugada, em zona tão perigosa?

“Cala a boca, barata do caralho.”Tô na maior fissura passa tudo ou te colo o brinco. Não pensa que tu é outra.”

Doca falou que ela não era diferente dos demais, mas, achou que sim. Entrou no carro, tinha pressa, e cometeu o erro que cria de bandido nenhuma faria: baixou a guarda. Sentou-se no banco do carona; tentou arrancar das mãos da mulher a pasta que ela mantinha agarrada ao peito.

Um movimento brusco, e junto com ele, veio também uma inesperada mão, forte, ágil e na ponta desta, a bicuda que afundou na barriga de Doca com força descomunal. Uma só mortal estocada.

“Mas o que é isso, barata da porra, tu pirou?”

Na surpresa, foi só o que disse.

Pela porta aberta e com um empurrão certeiro foi atirado na calçada, caindo ao lado do carro que arrancou rápido, sem que ele tivesse tempo de reagir.

“Fica com Deus, meu filho. Que o Senhor te acompanhe.”