quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O stripper (Mariano Mendonça Neto)


O meu negócio é tirar a roupa. Ficar de sunga e escancarar os dentes para as coroas. Tudo é feito de maneira profissional. Gilete para depilar e academia todo o dia. Não gosto da depilação, mas é o meu trabalho. Dostoievski entenderia. Leio sempre o mestre russo. Entre uma e outra apresentação avanço nas páginas de seus romances. Reconheço que minha classe é de iletrados. Homens toscos. Embrutecidos pela musculatura avantajada. Dependemos desta estética apolínea. Trabalhamos com o olhar, com o desejo, com o imaginário das pessoas. Sou free lancer. Faço shows em casas noturnas e atendo na casa das clientes. Antes das apresentações, um banquinho de cozinha me basta. Fico ali, vestido de comodoro, de índio apache, de bombeiro, lendo os romances, esperando para entrar em cena. Minha vida profissional de stripper começou por acaso. Trabalhava numa destas livrarias de shopping. Nos intervalos fumava um cigarrinho, lia um livro. Daiane, minha colega, fazia o mesmo. “Olha, Paulo. Presta atenção. Os caras escreveram demais. É muita ideia, muita sacanagem. Não dá para ler tudo de bom que foi escrito. Escolhe só o filé mignon. A carne de pescoço, o Sidney Sheldon deixa no balaio.” Assim foi feito. Às vezes eu pisava na bola. Daiane me encontrava com um Paulo Coelho, com um Dan Brown. Aí eu tinha que ouvir. “Porra, eu já falei. Lê os russos, os franceses, os caras que cagam grosso.” Daiane havia conhecido um professor universitário que a iniciara na grande literatura. Se o professor comia? Eu não comi. Mas graças a Daiane meu vocabulário aumentou. E foi também graças a ela que pude desenvolver minha arte. Estava no almoxarifado, coçando o saco, lendo “Crime e Castigo“ quando Daiane me perguntou: “Paulo, você vai quebrar um galho para mim. Tirando esse monte de cabelo do seu peito, você serve. Tem o tipo apropriado para o serviço.” Nesta época, eu estava matando cachorro a grito. Recebia o salário da livraria que quase não pagava o aluguel da pensão. Daiane fazia bicos de vez em quando. Trabalhava de garçonete ou recepcionista em feiras agrícolas. Sabia o caminho das pedras. “Olhe, Paulo, eu vou te dar um endereço. Você vai fazer uma substituição. O cara adoeceu, pegou uma pereba no tico. Estão precisando de alguém com o teu porte. Alguém com músculos e alguma iniciativa. Vai lá que acaba entrando um trocado.” Imaginei logo o tapete vermelho estendido, pessoas agitadas na fila e eu duro que nem uma estaca, fazendo a segurança de um bar. Mas a encrenca era maior. “Pensa bem, Paulo. É só tirar a roupa e fazer cara de gostoso. Um bando de mulheres insaciáveis querendo se divertir. É só isso.” Eu quis ponderar sem muita convicção. “Eu sou um pouco tímido. Não sei se levo jeito para a coisa.” “Paulo, é pegar ou largar. Tem uma grana boa.” Peguei o endereço e li: “Rua das Acácias 98. Falar com o Baixinho.” Perguntei ainda para Daiane se eu tinha que levar alguma roupa especial, vestir algo mais adequado. “Não, Paulo. A jogada é ficar nu. Entendeu? Nu, porra!” Terminado o expediente, peguei o ônibus e me acomodei no fundo. Fiquei observando as pessoas. Seus silêncios, suas dissimulações. O velho russo gostaria de sentar a bunda no plástico, numa temperatura de 40 graus e eviscerar a alma dos homens. Dostoievski era batuta. Sua narrativa caótica, seus personagens desesperados, sua religiosidade inalcançável eram também ferramentas de um stripper. Uma espécie de stripper da alma humana. Um revelador, um exibicionista do melhor e do pior do espírito humano. Mas, ali, naquele momento, era o suor bruto que se revelava. E um ou outro espertinho dando uma coxeada nas balconistas e estudantes que voltavam para casa. Consegui ler mais algumas páginas do romance antes de descer na parada. Fui caminhando tranquilo pela rua. Eu conseguira dar uma lavada nas axilas e renovara o desodorante. Para enganar a torcida. Estava anoitecendo e não foi difícil encontrar o endereço que Daiane me dera. Uma luz forte iluminava o painel onde se lia “Lady’s Club”. No guichê, uma velhinha de cabelo azul tricotava algo. Levantou os olhos, que também eram azuis, e perguntou: “Trouxeram a cidra? Não vão me quebrar as garrafas. Eu esperava vocês mais cedo. É pelo corredor ao lado. Cuidado com o cachorro!” ”Sou o substituto. Foi a Daiane quem me mandou.” “Baixinho, o rapaz que veio substituir o Marcelão chegou.” Logo a porta se abriu e um sujeito que parecia um halterofilista em miniatura surgiu na minha frente. “Está atrasado. Entra logo que eu tenho que explicar o nosso esquema.” Entrei no salão e o Baixinho me puxou pela manga. Era um bar com mesas e cadeiras. Estavam dispostas ao redor de uma passarela que partia de um pequeno palco ao fundo. Caixas de som estavam estrategicamente localizadas pelo salão. Uma escadinha dava acesso à passarela. Baixinho subiu com dificuldade, mas subiu. “Presta atenção, pois não tem mistério. Hoje a função é para despedida de solteira. São meninas de família, pessoas educadas, distintas. Vai tirando a roupa devagarzinho, com manha, vaselinando no olhar. Dá uma requebradinha e tira uma perna da calça, dá outra requebradinha, tira a outra. Botão de camisa é mais um detalhe. Ajoelha e oferece o botãozinho para as clientes abrirem. Porra, esse teu peito tem cabelo prá caralho. Parece um urso!” Cheguei a me examinar. Estava lendo um romance forte, denso. Nunca se sabe. Mas estava tudo igual.

Passamos pelo palco e entramos naquilo que poderia ser chamado de camarim. Três sujeitos conversavam animadamente. Baixinho fez as apresentações e continuou o seu curso rápido para stripper. “Tocou a música e já entra dançando. Não raciocina. Entra rebolando, sem afobação. Vai se soltando aos poucos, sem pressa. Vocês entram juntos na primeira música, depois vem o número solo. Aí tira tudo, cueca, sunga, lente de contato, o que for. Ô Luizão, alcança aí a roupa de gladiador romano.” O Luizão era um cara alto, forte, com uma barba que lembrava o Falcon. Abriu o armário e puxou lá de dentro um cabide com umas tiras de couro. Era o equipamento de gladiador. Baixinho pegou a fantasia e a avaliou por instantes. “Vai funcionar. Essa aqui é para o primeiro número. O smoking, ali na cadeira, é para a apresentação solo. Vamos arrebentar essa noite.” Peguei o cabide e comecei a me fantasiar de stripper. Os outros dois caras vieram me oferecer um gole de cachaça. Partilhavam uma garrafa que já estava pela metade “Caralho, ô meu. Repara nesse peito, Gledson. O cara é um porco-espinho!” Gledson fez uma cara de espanto. Pegou um frasco que estava no armário e me entregou. “Coloca essa loção na pele, no corpo todo. É loção de amêndoas. É para dar um brilho debaixo da luz. Não vai me gastar todo o frasco.” Logo percebi o movimento frenético do salão. Nossas freguesas começavam a chegar. O ruído era intenso. Foi Luizão quem tomou a iniciativa. Pediu para que déssemos as mãos em círculo. Uma pequena oração foi feita, quase que sussurrada. Havia entrega e concentração naquela modesta homília. Instantes depois já estaríamos nus, plenamente nus. A corrente se fortalecera. Estávamos prontos. O Baixinho voltou e fez a sua última recomendação. “Olha, o troço não tem segredo. Faz o que eles fizerem. Vai imitando o Luizão. Olha para o público e ri, ri muito. Na hora do smoking, abusa um pouquinho mais. Provoca que vai abrir e não abre. Prá arriar as calças também. Não entrega o ouro de cara. Vai arriando com classe, com estilo.” Foi então que comecei a refletir um pouco. Meu desejo era entrar logo naquele salão, tirar a roupa e sair correndo com a grana no bolso. Sem muita frescura. Apenas entrar e ficar nu. Mas logo eu descobriria a arte de tantalizar. Soltar a isca com paciência. Cultivar o olhar alheio através de um encantamento sinuoso, uma hipnose lasciva que promete, mas não realiza. É duro quando se é jovem. Há tanto para se aprender. E logo eu aprenderia, digamos, na carne. Começamos a ouvir a voz do Baixinho no sistema de som. Fazia as primeiras apresentações e garantia uma noite inesquecível. Uma despedida de solteira sem voltas. As freguesas gritavam, batiam os pés, assobiavam com força. Eu sabia. A partir dali, não tinha volta. Eu estava enrascado. O sistema de som largou a primeira música. Entramos os quatro no palquinho balançando as bundas no ritmo acelerado. Entrei por último e acabei ficando na ponta direita, jogando recuado. Fui seguindo a rapaziada, embromando ali com as tiras de couro. De vez em quando, um de nós avançava na passarela e rebolava um pouco. Tirava o traje de combate e ajoelhava no milho. Ficava ali fazendo biquinho para as freguesas. Um ou outro trocado era enfiado na sunga. Peguei logo o jeito. Avancei decidido pela passarela e encarnei o gladiador romano. Era comigo mesmo. Já fui tirando o saiote, o dólmã de couro e se tivesse lentes de contato tirava também. As freguesas deliravam com a minha performance. Comecei a inventar novos passos de dança. Ampliava o movimento dos quadris e oferecia o sexo com impudica irresponsabilidade. Os gritos aumentavam a cada passo, a cada provocação que eu fazia. Consegui ouvir o Baixinho no microfone. ”Pode tocar, mas não arranca pedaço! Esse é o fabuloso elenco do Lady`s Club! Artistas renomados, com experiência internacional.“ Fomos para o camarim e logo vesti o smoking. Na minha vez, já entrei esparramando as pernas, gingando com malícia e estendendo as mãos para as clientes. Baixinho estava na plateia, ao lado da garota que se despedia dos bons tempos. O mestre de cerimônia usou o microfone de novo. Pedia que eu descesse até eles. Queriam minha presença ali, bem pertinho. Desci pela escadinha e me aproximei da garota. Fui fazendo um gingado malemolente, bem debochado. Cheguei perto e lasquei um beijo na boca. Um beijo bem molhado. E ainda ofereci os botões da camisa para que fossem violados. Logo tinha mais gente em volta metendo a mão. Queriam mesmo era arrancar um naco do bacana aqui. Não tive dúvida. Puxei a garota pela mão e a levei para a passarela. Lá em cima realizei os últimos movimentos de minha apresentação. Fiquei dançando nu, me esparramando em volta dela. Os aplausos vieram em seguida. Curvei-me ao estilo dos atores de teatro tal qual um menestrel desnudo. Desejei boa sorte à futura noiva e retirei-me de cena como um experiente stripper. Na coxia, Luizão esperava-me com um robe de chambre e uma taça de cidra. “Fez tudo certo, campeão. Já pode fazer parte da trupe.” Peguei a taça e fui para o camarim. Meus colegas se revezavam agora nas apresentações. Trocavam de roupa e voltavam rápido para o palco. Sentei numa poltrona toda esburacada por pontas de cigarros. Fui relaxando até que acabei tirando uma pestana. De repente acordei e vi Baixinho diante de mim. “Foi bom. Se quer continuar, vai ter que usar um Presto Barba nesse peito. Vamos lá, rapaz. Todo mundo já foi embora.” Puxei um cigarrinho e fiquei ali fumando, pensando na vida. A noite fora lucrativa e isso me bastava. A velhota do cabelo azul apareceu de repente. Estávamos sozinhos no teatro. “É uma pouca vergonha! Com o troço todo para fora! Essa juventude não respeita mais nada! Veste, veste logo a calça e vai embora.” Vesti minha roupa e deixei a velhota cacarejando no meio das fantasias. A noite estava quente e soprava uma leve brisa. Eu tinha recebido o suficiente para pegar um táxi. Levantei o dedão e o carro estacionou na calçada. Sentei ao lado do motorista e dei as coordenadas. O taxista queria conversa. Falava das manchas solares, dos mistérios da superfície de Marte, da teoria do caos. “E aí os caras dizem que até um prego pode mudar toda a tua vida e...” Fez uma pausa para frear diante do semáforo. Aproveitei e perguntei: “Você quer ouvir uma boa história?”. O taxista silenciou. “Bom, é sobre um cara que mata uma velhota. O cara é bom, sabe das coisas. Mas ocorre um lance que ele não tinha previsto. O nome dele é Raskolnikof e ele não tinha medo.”

terça-feira, 3 de maio de 2011

A tulipa descartada (Guilherme Bica)

Descia as escadas da redação com a pressa de quem deixou para trás quatro provas de páginas ímpares e pares para revisar. Uma amiga dela me avisara que ela queria falar comigo, queria acertar tudo, saber se era isso mesmo, se tinha acabado daquele jeito, se já era o fim. Eu passei pela porta do prédio, ganhei a rua e vi Carmela sentada num daqueles toscos exemplares de mesa metálica que normalmente pertencem a botecos malcheirosos, mas ali preenchia a calçada em frente a uma sorveteria. E aquela imagem tão insólita de uma guria tão linda como Carmela recostada num objeto de invariável natureza ordinária, que dava sinais de gasto e perdia a cor branca nas laterais para denunciar a verdadeira pele de um cinza metálico escuro, aquela imagem me causou de pronto uma vulgar estranheza inicial.

Juntei-me a ela, puxando uma cadeira de uma mesa vizinha, e tentei um Oi para avaliar se me respondia. Ao que Carmela suspirou algo que não compreendi e obrigou-nos silenciosos por alguns segundos. E aquele silêncio poderia calar todos a nossa volta: os taxistas narradores de piadas obscenas, o cara engravatado da revenda de automóveis que anunciava a promoção do dia e até o carro de som num volume anormal que convidava a todos para a festa de sábado no clube.

E aí, eu perguntei pra ela, e aí ela sorriu aquele sorriso irônico que só ela sorri, mesmo que com quinze anos poucos saibam o que significa ironia, e me despejou uma centena de lamentos do tipo Tu não tava comigo?, Eu achei que a gente estava começando a se entender, mas agora já não sei, O que tu quer, afinal?, Tem que escolher!, Eu não vou dividir ninguém!, A gente parecia bem, e o tom agressivo foi minguando à medida que ela começou a encolher os lábios para não chorar e eu não me lembro das outras reclamações pertinentes de Carmela, só recordo que tentei pegar em sua mão e fui repelido rapidamente.

Ela voltou a ficar muda e a única coisa que se movia nela era a franja bem aparada, dividida ao meio, expondo a testa e balançando pouco com o vento que não decidia se vinha ou ia embora. Parecia que só eu via a discrepância daquele relacionamento incipiente que não deveria vingar. Eu na faculdade, eu estagiando, eu tomando cerveja, vodca, uísque, eu lendo Neruda, Nassar, Faulkner, eu ouvindo Tom, Chico, Vinicius, eu vendo Glauber, Godard, Antonioni, eu distante tantos anos do colégio. Ela denunciada pela juventude da camisa verde e larga desenhada pelo brasão da escola que encobria o seio esquerdo, ela vestida com a calça preta do uniforme juvenil ainda no corpo, ela refém de toda aquela limpeza que nos tornava tão afastados, a limpeza na boca, nos dentes, nos braços, cabelos e até na voz.

Na volta da mesa da qual recendia uma tensão lúgubre e lúbrica ao mesmo tempo, as sete amigas de Carmela me julgavam e mimetizavam o sorriso irônico, mas sem a propriedade da boca verdadeira. E me deu uma vontade de contrariar tudo o que eu havia demonstrado sem palavras nas últimas semanas – as ligações não atendidas, as mensagens não respondidas –, e me ajoelhar ao lado de Carmela para pedir desculpas e dizer que ela era a mais bela guria que eu já havia conhecido, que eu não estava nem aí para eu ter vinte e quatro e ela nove anos a menos, que tudo daria certo daqui pra frente.

Mas não dava. E foi o que eu disse. Carmela, não dá! Sei que ela ficou surpresa. Porque aqueles olhos cor de tijolo claro e o corpo em sublimada adolescência e fulminado com justificada sede por todos os homens pelos quais ela cruzava – e ela alcançava a idade de tomar consciência disso – não estavam acostumados à rejeição. A minha feiúra discreta cometia a insolência de descartar a beleza de tulipa de Carmela. Ela se recompôs, amparada pelas amigas, e me disse Se mudar de idéia, me avisa, e aquela frase eu sabia que traria comigo por muito tempo ainda, tanto que estou eu aqui a escrever sobre ela, impelido talvez por uma esperança ingênua de que um dia ela leia estas linhas e reflita na pele de um espelho honesto com sua beleza aquele mesmo sorriso limpo e irônico, mas agora com outro sentido, mais autônomo e consciente.

Elas deixaram a sorveteria e encaminharam-se para a esquina, Carmela com os braços entrelaçados nas amigas. Ainda tive tempo de subir as escadas, correr até a sala de meu chefe e esticar o pescoço para fora da janela e vê-la sorrindo e me esquecendo, antes de sumir atrás de um ônibus que resolveu aparecer justo naquele momento inoportuno.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Noturno (Gecy Belmonte)

O vento bate com força nas árvores em frente a varanda do quarto. Nuvens escuras se superpõem rápidas, prenunciando tempestade. Nenhuma estrela no céu. Pela janela entram riscas de luz vindas do poste que ilumina a rua. Ele fecha os olhos com força. Precisa dormir cedo e parar de fazer manha, esta é a determinação dos pais.

Ao lado da cama pode enxergá-lo no escuro, os olhos esbugalhados brilham e o bafo fétido dele está bem próximo. Cobre a cabeça com o edredom, o aperto no peito volta e a respiração escorrega fina pela traquéia até chegar à boca e ao nariz, sente o suor gelado molhar as mãos e os pés. Precisa resistir, inspirar e expirar bem devagar (isso ajuda), não fazer barulho, ele deve acreditar que está dormindo. Ou morto, assim o deixará em paz.

Mas como fazer para ficar ali, com o medo crescendo, crescendo. Sabe que não dará conta por muito tempo. Quer cumprir a ordem dos pais para não mudar para o quarto deles no meio da noite, ir atrás da mãe, como passou a fazer nos últimos meses. Mas o pavor que sente ali, sozinho, no escuro, é maior que o temor do castigo no dia seguinte. Retira as cobertas, coloca as pernas para fora, primeiro uma, depois a outra. Levanta-se, tem os passos abafados pelo carpete, assim não há risco de despertá-lo. Quer a mãe, só ela consegue acalmá-lo quando o pânico noturno chega.

Alcança a porta, gira o trinco com cuidado e saí. Deixa o inimigo lá, fechado, com os brinquedos, os livros que adora e as figuras do Super Homem que ornamentam as paredes azuis do quarto. Pode ser que, quando despertar, ele se distraia e não vá atrás dele. Corre descalço até o quarto dos pais, ao fundo do corredor, e abre a porta de mansinho. Não há ninguém.

Ouve vozes que vêm do escritório, no andar de cima da casa. Dirige-se para lá, sobe os degraus de dois em dois. A porta está fechada. Escuta a voz alterada da mãe e do pai, e para. Eles gritam um com o outro. O barulho da chuva que começou a cair o impede de ouvir o que dizem. Assusta-se, isso nunca aconteceu antes. Enquanto está ali, criando coragem para entrar, percebe um ruído vindo da parte debaixo. É ele, deve ter acordado e está à sua procura, é capaz de sentir seu arrastar paquidérmico rumo às escadas.

Quer a mãe, precisa dela e não ficará ali, parado, no piso frio. Empurra a porta, os pais viram-se surpresos, cessam a discussão, mas a fratura está exposta, sem sangue, só o osso partido ao meio. Corre para o colo da mãe e percebe que ela chora. Não um choro comum, mas um tipo mais fundo, como um soluço para dentro, lágrimas escorrendo pela face. O pai, em pé, do outro lado da mesa, olha os dois sem saber o que fazer, mas também está triste, tem os ombros caídos, parece mais velho sob a luz branca do escritório.

A mãe o abraça com força, beija seu rosto, seus cabelos. Está tremendo, tem uma certa aflição nos dedos. Por um momento ele aquiesce no enrosco morno e seguro. Pode escutar a batida dos corações, os ritmos de ambos se fundem, mãe e filho são um só, fitas de dupla face. Entende que algo muito grave está acontecendo, quer perguntar mas falta coragem (se não souber pode ser que o não-dito não se realize e que a possibilidade dessa coisa ruim se estanque). Agarra-se ainda mais ao pescoço da mãe, não consegue chorar ou emitir som, o ar começa a faltar, pensa que vai morrer (mas crianças não morrem, viram estrelas). Quer sair dali, quer levar o pai e a mãe juntos, os três no aconchego da grande cama de casal, para onde está acostumado a fugir, mesmo correndo o risco de ser levado de volta para o seu quarto no meio da noite ou de ficar de castigo no dia seguinte.

O pai, por fim, começa a dizer alguma coisa, mas ele não escuta. No canto do escritório, perto da estante cheia de livros e documentos, vê a mala grande que ele usa sempre para viajar. Está pronta. Do outro lado da porta, ainda fechada, sabe que o inimigo o alcançou, resfolegante pelo esforço de subir a escada. A chuva e o vento tornam-se mais fortes, ouve o estrondo de um trovão e o de um transformador que se rompe, bem perto. A luz se apaga. Sem velas ou lanterna, os três ficam ali, mudos, no escuro. O silêncio faz a noite tornar-se mais lúgubre, medos guardados afloram, sente que todos os monstros maus estão presentes na pequena sala.

Agarra-se mais ao pescoço da mãe, quer retê-la para sempre. O pai diz para se acalmar, garante que não há porque ter medo, enquanto usa o celular para jogar um pouco de claridade sobre a mesa, na direção deles. Em minutos a luz retorna. O pai diz que está na hora de ir, pega a mala, as chaves do carro, o paletó, dá-lhe um beijo na cabeça e parte, prometendo sempre vir vê-lo. Mal olha para a mãe, cujo rosto se mantém paralisado, como se as lágrimas que rolam viessem de outra face que não a sua. Sabe que o pai não voltará, embora não entenda bem o que está se passando. Não sabe o que fazer, não quer que o pai vá embora, mas, ao mesmo tempo, fica contente, não será mais castigado, a mãe, agora, é somente sua.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Zaaap! (Marcel Citro)

“Como vocês podem ver, lá embaixo existem vestígios de estruturas, de edifícios... Esta cidade provavelmente foi construída próxima a uma bacia hidrográfica. Lembrem-se, falamos há pouco que já existiu água aqui.”

“É claro que havia urbes mais importantes, mais sofisticadas na superfície estéril que vocês vêem agora: Emissões de rádio mencionam lugares que protagonizaram os eventos mais marcantes da época que antecedeu o colapso. Hoje, ‘Pequim’ e ‘NY’ são termos vazios de sentido, mas grande parte das ondas captadas vieram destes locais. As últimas, inclusive, foram enviadas de NY. De qualquer maneira, estamos neste ponto do planeta e não em qualquer outro porque aqui se situa a cidade melhor preservada. Chamava-se Porto Alegre.”

“Estão vendo, ao longo do leito seco daquele rio? As edificações estavam dispostas na sua margem direita, em sentido longitudinal. Por favor, aproximem um pouco mais os seus visores halogêneos: viram? Chamavam-se edifícios. Assim como os mais fortes exploravam os mais fracos, os habitantes desta cidade também moravam uns sobre os outros, não sabemos ainda os critérios que utilizavam para definir cada posição. Há bastante controvérsia sobre o modo como interagiam estas pessoas, há os que sustentam que alguns viviam diretamente sobre o solo, e até mesmo embaixo dele.”

“Estudos revelaram que havia também construções menores, habitadas por um grupo familiar individualizado. Não sabemos se estas estruturas isoladas era um indício de abundância ou não. De qualquer forma, destas construções menores quase nada restou.”

“Vou explicando enquanto vocês observam. Só há três certezas sobre esta civilização: comiam pedaços de animais mortos, utilizavam o ar como meio de propagação de várias línguas faladas – lembrem-se, falar era valer-se de um aparelho fonador para produzir vibrações em estruturas grosseiras chamadas cordas vocais – e adotavam um denominador comum de troca chamado ‘dinheiro’. Na verdade, era mais do que um denominador, constituía-se na religião mais influente aí embaixo. A maioria destas pessoas pautava sua vida em função dele, colocava sua obtenção como tarefa primordial a ser executada por todos os grupamentos celulares, acima de tudo e de todos”.



“Estou projetando agora uma halografia multidimensional do conteúdo do disco que encontramos na sonda espacial Voyager... isso é a imagem de um ser humano...curioso, não é? Aqui, imagens de outros planetas deste sistema solar, eles detinham uma tecnologia ainda bastante embrionária quando ocorreu o colapso. Procuramos muito a imagem deste...deste deus nas diversas faixas de cobre do disco, mas não encontramos nada que pudesse se enquadrar”.

- Será que não era justamente isso, o dinheiro, que determinava o lugar de cada um nos edifícios que estamos vendo?

“É possível. Pesquisas demonstraram que a maioria dos seres humanos vivia em lugares improváveis. Parece que o determinante para isso teria sido justamente a falta de dinheiro. O que não é de estranhar, um dos poucos estudos extensos realizados neste planeta, logo depois de termos encontrado a Voyager, revelava que dez por cento da população da terra controlava oitenta por cento dos recursos. Não é à toa que a civilização acabou por colapsar por completo.”

- E o colapso aconteceu com aquela história do estrondo ou do...como era mesmo a palavra?

“Bem lembrado! Na última transmissão de rádio que detectamos, alguém citando outro ser humano chamado T.S. Eliot declarou que o mundo não iria acabar com um estrondo, mas com um gemido. Não sabemos exatamente o que é um gemido, mas parece bastante poético, não é?”





“Bom, pelo jeito não há mais questionamentos. Estou percebendo que todos estão concentrados nas observações, mas tenho que avisá-los que nosso tempo aqui acabou. Ainda temos que visitar, neste quadrante, os anéis de saturno, a nebulosa de Órion e as anãs-vermelhas perto do quasar oeste”.

- Mas afinal de contas, isso tudo acabou com um estrondo, ou com o tal de gemido?

“ Ah, isso não sabemos...nunca iremos saber. Mas foi algo muito, muito rápido.”

- Alguma coisa tipo Zaaap?

“Exatamente. Zaaap!”