quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Um mundo melhor (Sergio Faraco)

Para Jacob Klintowitz



"Na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para afetuar certas ações." ARISTÓTELES, Poética, VI, 145-32



– Amanhã venho te buscar para o ensaio  – disse Russo.

Partiu o amigo, deixando-o no pórtico da galeria que ia dar no saguão do hotel. Absorto, não notou que o lugar, mal-iluminado, estaria deserto, não fosse um grupo de jovens, cinco ou seis rapazes e uma garota, em suspeito silêncio no recuo de uma vitrine.

Ao perceber que o olhavam, era tarde.

O bando o cercou.

Enquanto uns o imobilizavam, outros lhe vasculhavam os bolsos. Quis reagir, e a garota, uma loura sardenta de olhos claros que até então mantivera-se à parte, saltou à sua frente com uma faca. Cessou de se debater, mas isso não evitou que um dos rapazes o esmurrasse no nariz, que começou a sangrar.

– Não deixa melar o casaco – gritou a garota, e suas pupilas faiscavam na contraluz da vitrine.

Também roubaram os sapatos e a carteira. Antes da fuga, um safanão o derrubou. Ouviu vagamente a correria na direção da rua, mas não se moveu de imediato, menos por cautela do que por pasmo. Quando pôde levantar-se, algumas pessoas acorriam e o ajudaram a andar até a portaria do hotel. O nariz ainda sangrava, e o gerente, após certificar-se de que não estava tão mal, ofereceu-lhe um copo d'água e um lenço de papel.

– Quer que chame a polícia?

Não, não valia a pena.

– Não levaram cheques, cartões?

Tinham levado.

– Convém fazer a ocorrência e avisar seu banco.

Sem casaco, descalço, sem dinheiro e documentos, tomou o elevador com participantes de um seminário de lojistas, cidadãos de próspera aparência, com ternos alinhados e impecáveis colarinhos, que o relancearam como a uma parede, como se o não vissem.

À noite, quase não dormiu.

Ler era impossível.

Se fechava os olhos, via os jovens se acercando, a disposição deles, o olhar de aço da garota, o lampejo da faca, e ressentia o murro no nariz. Figurava a garota com ódio, depois se compadecia e ódio outra vez a estremecê-lo, então acendia a luz de cabeceira e sentava-se na cama, ofegante e a transbordar rancores. Quanta ironia, quanto escarmento em seu papel de vítima. Logo ele, um dramaturgo cujas obras a crítica iconizara como fotografias sem retoques das tumultuosas noites urbanas, a brutalidade tão crua quanto aberrantes os processos que a deflagravam. Contra esse conspícuo arauto da violência rebelavam-se seus arquétipos – uma cena burlesca em que os infantes de Cronos cometessem parricídio.

À lembrança do trabalho seguiu-se um conforto: não perdera a vida, como tantos, tampouco se ferira com gravidade e – um truísmo – continuava bem-parado em degrau muito acima daqueles sebentos que, mais dia, menos dia, acabariam na prisão ou a estertorar em periféricas sarjetas. Admitiu que a noite fora menos perversa do que poderia ter sido. Descontados o pequeno inchaço no nariz e o prejuízo material, uma bagatela, nada mudara. Era um autor bem-sucedido, o que lhe facultava, com um pouco mais de prudência, conservar-se distante daquele universo ignóbil, cuja utilidade em sua vida era tão-só a de papel-carbono. Não era assim que produzia suas exitosas peças, estereotipias do noticiário policial? A arte copiando a vida, como queria Sêneca? A vida como ela era, sim, trocando apenas de cenário: no lugar da rua escura, o palco enfumaçado à meia-luz.

E começou a se tranqüilizar.

E apagou a luz.

Pelas frestas da veneziana viu que clareava o dia, uma nova manhã após o árduo combate, e lembrou-se de Homero: Quando a aurora de róseos dedos, filha da manhã... E sem saber que a lembrança já era um sonho, dormiu até perto do meio-dia.

Almoçou no restaurante do hotel.

Dormiu novamente e, à meia-tarde, despertou indisposto. Ou não era bem isso, antes algo que o inquietava, que o estranhava. Como se mal se reconhecesse ou recém começasse verdadeiramente a se reconhecer, como se o incidente na galeria – que outra coisa haveria de ser? – lhe tivesse aberto um portal misterioso cujo limiar receasse atravessar, e surpreendeu-se murmurando algo que lhe vinha à lembrança nas horas de incerteza: Eu, o verme, reconhecendo este tecido de alma ausente...* E foi com um princípio de náusea que viu seu rosto no espelho da pia.

À noitinha, Russo veio buscá-lo. Cogitou de desistir do programa, fazer a mala e antecipar a passagem de volta, mas como poderia, se viera à cidade a convite, para ver o ensaio da peça de que era autor?

E foi e logo se aborreceu, a esgrimir com a absurda sensação de que o texto não lhe pertencia ou, se pertencesse, era produto de aquoso e insípido crisol que agora se esvaziara para dar lugar a outras e ainda ignotas misturas. Molestava-se também com as intervenções de Russo e as repetições de cada cena. Russo queria verossimilhança, e o protesto concernia, mas queria também que a representação ultrapassasse sua própria essência, ou seu limite. Chegou a gritar com um ator:

– Não quero representação, quero vida!

Mais vida? E ele ouviu aquilo como a um desaire, como se alguém, por certo ele mesmo em outra dimensão, com outro rosto e redescoberta alma presente, estivesse a lhe apontar o dedo acusador.

Após o ensaio, foram jantar no hotel.

Conversaram sobre a peça, sobre os atores e o que Russo deles exigia, e em dado momento o escritor, quase sem querer e com ligeira impaciência, viu-se observando que a arte obedecia a certas leis que se desavinham com a vida real: cada elemento precisava ter sua existência justificada e esta era a harmonia. A vida não era assim.

E acrescentou:

– Quando pedes menos representação e mais vida estás pedindo uma arte menor.

O outro abriu os braços.

– Que é isso? Crítica ou autocrítica? Agora descartas teu bem-amado Sêneca? Como podes pensar que um texto ou uma representação se aproximem da arte na mesma medida em que se afastem do que é real?

– Não foi o que eu quis dizer, ou foi, mas de outro modo. Não é uma questão de distâncias. A arte tem de ouvir, como Bilac disse a João do Rio, tem de ouvir e registrar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Mas é um registro como representação, não um fac-símile. Não te parece que essa enunciação de nosso príncipe, considerada isoladamente, está incompleta?

Então o que dissera, ou ao menos pensara, era que a vida, afinal, era o que era ou o que já tinha sido, um caótico enjambement de acasos, “uma história repleta de som e fúria, contada por um idiota” – como não lembrar essa clássica dedução? –, não um organismo ou um sistema que se provasse por ambicionar determinado fim. Ela não buscava o belo ideal, não buscava, como a arte, o mundo melhor. Quisera dizer, então, que a arte tinha de ser basicamente transformadora, e que seu desígnio não era se parecer com a realidade e sim corrigi-la. E acabava sendo – a verdadeira arte – uma imprescindível, primorosa e verossímil mentira. Ou não propriamente uma mentira, mas o que a realidade poderia ou deveria ser...

– ...se viver fosse uma arte.

Russo o olhou por um instante.

– Balzac?

– O belo ideal? Sim e não. Foi o que ele ouviu e acatou, dito pela mãe de Madame de Staël.

– Acho que entendo. Me serves uma sopa canônica, de Balzac a Schopenhauer, com pitadas quânticas e colherinhas de Shakespeare e Voltaire... não te faltou uma receita grega? Não era para tanto. Ou muito me engano ou, se me permites, sem que a comparação te ofenda, estás dando voltas como burro de olaria só para dizer que minha direção não te satisfaz.

– Só estamos discutindo, meu diretor. Nunca te contaram que a dialética da controvérsia favorece a digestão? – e tratou de mudar de assunto, relatando o que lhe ocorrera na véspera.

– O teu nariz... – observou Russo, sinceramente pesaroso. – E numa hora dessas, eu aqui a tagarelar sobre arte.

– Foi um incidente comum.

– E não terminou tão mal.

– Melhor foi o que veio depois.

– Como? Tem mais?

– Hoje à tarde saí, dei uma caminhada. Adivinha quem encontrei num trailer de cachorro-quente.

– Os ladrões!

– A loura.

– A loura!

– A loura sardenta, a da faca. Ela e um menino.

– Nossa, não sei o que eu faria.

Ele se aproximara e a agarrara pelos cabelos. E agora, sua putinha? O menino fugira, continuou, e imagina o espanto das pessoas ao redor, tentando compreender. E diante dele, aqueles olhos não mais implacáveis, olhos de medo e lágrimas de uma pobre menina assustada. E vira também naquele olhar uma saga de miséria e desespero – a versão dos derrotados, como o eram aqueles meninos. Que dos vencedores, como os engravatados do elevador, não obtinham sequer um átimo de reflexão, que dirá um gesto de compreensão, solidariedade e respeito humano.

– Vi nesse reencontro o teatro.

– Viste a vida, meu amigo. A vida como ela é.

– Não, o teatro. Acreditas se te disser que a soltei e fui embora?

Russo ergueu o cálice:

– Aos teus novos e indistintos conceitos não vou brindar, mas gostaria de fazê-lo à tua atitude. Um perfeito epílogo.

O outro brindou, com um ligeiro sorriso.

Mais tarde, quando se despediram à porta do hotel, ele ficou parado, vendo o amigo afastar-se pela galeria.

Um brinde impróprio, claro.

Perfeito epílogo? Ora...

Russo desprezara seus argumentos e acreditara piamente no reencontro com a garota – pensava ver nele a plausível harmonia, a absoluta comunhão entre arte e vida. Seus postulados se engrenavam, coerentes. Mas que pena essa coerência! Russo nem ao menos suspeitara de que aquele reencontro no trailer jamais acontecera e era tão-só uma correção literária do incidente – o mundo melhor –, isto é, a peça que um dia talvez pudesse escrever, desde que ele mesmo também se corrigisse, convertendo-se no autor que agora desejava ser.
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* Início do romance À beira do corpo, de Walmir Ayala (N. do E.)

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Iluminação do cotidiano (Zélia Delacroix Farina)

Não houve tempo para nada. Para um grito ou uma expressão de espanto. Quando se deu conta, já estava no chão, a todo o comprimento, os cabelos libertos da touca que os domava, a roupa amarfanhada, um chinelo escada acima, outro se equilibrando na ponta do pé. Entre surpresa e aturdida. E na boca aquele gosto invasivo de saliva alheia. Não sabia ao certo se batera com a cabeça e tinha ficado meio inconsciente. O fato é que não havia mais ninguém ali. Somente latões de lixo, balde , esfregão. O que desabara sobre ela tinha a força de um vento de verão tardio, morno e intenso, um desses ventos capazes de soprar desatinos na cabeça dos viventes. Envolveu-a num inesperado misto de violência e delicadeza, buscando-lhe a boca com a boca, enquanto as mãos faziam o seu trabalho de busca e sujeição.

Foi com esforço que se recompôs, o corpo não lhe obedecia, as pernas desenhavam círculos no chão, recusando a postura vertical, a cabeça parecia esvaziada e poderia até pensar ter sofrido uma alucinação devido ao calor, não fosse aquele gosto persistente de saliva. Inúmeras vezes lavara a boca; em vão. O gosto era interminável; nem bom nem mau, estrangeiro. Era sábado, no prédio havia um mínimo de funcionários, como de costume em finais de semana; ninguém aparecera durante o seu período de atordoamento. Melhor assim. Sabia que nenhum daqueles empregados seria capaz de ato semelhante. Viviam todos no mesmo código. Se um deles a quisesse, por Deus, já lhe teria dito e a coisa teria rolado ou não, como tudo na vida. Não era dada a muitas conjeturas; quedava-se, por isso, estupefata. “Quem, nesse prédio de gente rica, podia me querer, logo eu tão diferente de todos eles? Só se fosse..., mas não, bobagem,será possível?, um senhor tão distinto.” O fato é que era objeto do desejo secreto de alguém, um desejo violento porque ansioso e tímido, deliciosamente desajeitado. O corpo não lhe doía, além daquele mínimo que se confunde com prazer. Sofrera um atentado à mesmice da sua vida. Como se num surrado baralho de cartas marcadas, surgisse, inexplicavelmente, uma carta extra: um coringa que talvez pudesse mudar a sua vida.

Para o doutor Nogueira e Silva,nada saíra como o que tinha sido planejado, aliás como costuma acontecer. A ideia era somente pegá-la de surpresa e dar-lhe um beijo na boca, e depois safar-se. Fugir para sempre ou por bastante tempo. Viver daquela lembrança tanto quanto fosse possível. Mudar de cidade, ir morar na praia, ficar uns tempos na casa do irmão. Algo assim meio infantil meio maroto; esconder-se depois de uma travessura e só voltar quando as coisas estão sossegadas. Mas ela, desafortunadamente, pelo inesperado da situação,escorregara no chão úmido e rolara abraçada por ele no piso gelado, desencadeando um desejo irrenunciável. Fato inconteste é que há muito sonhava com ela, dormindo e acordado. Para dizer a verdade, desde que a vira pela primeira vez, limpando as escadas do prédio. Ele, a quem jamais interessou saber quem eram os funcionários do edifício ou o que faziam ou deixavam de fazer, viu-se oscilar, corpo e mente, ante aquela visão. Como era possível uma criatura exercer sobre ele semelhante tirania, era-lhe um mistério. Talvez por ser leve e graciosa ao executar atividades tão servis. No seu entender até brutais para um físico tão delicado. Devia ser nova no ofício, logo percebera, o corpo flutuava dentro do uniforme, os gestos ainda não eram bruscos e automáticos como fatalmente se tornariam com o passar do tempo.Como entendido em arte, logo a classificara: era uma bailarina que dançava em inusitado palco para ninguém, ou melhor, somente para ele que havia descoberto o segredo. Sabia que já a conhecia de algum lugar e isto o intrigou por um bom tempo. Aquela sensação de “déjà vu” o invadia continuamente, logo ele que execrava esse tipo de percepção por achá-la própria de mentes fantasiosas . Certo dia , folheando ao acaso um livro da biblioteca , localizou-a. O sobressalto do reconhecimento, como se uma cortina deslizasse para a entrada da luz.Era ela, sem dúvida, a figura mais impressionante pintada por Degas, “A primeira bailarina”, do famoso quadro do pintor francês. Essa tela sempre o fascinara pela mobilidade, era um quadro vivo, a bailarina parece que voa como se quisesse escapar para a vida, atirar-se nos braços do público. E lograra mesmo fazê-lo, pensava ele um tanto assombrado,pagando o alto preço do anonimato e da servidão. As roupas grosseiras, os chinelos de borracha e a odiosa touca nada lhe roubavam, ao contrário, acentuavam ainda mais a beleza por conta do violento contraste. Fechou o livro com cuidado, antes arrancando a página que retratava a bailarina. Pensou em colocar moldura, pendurá-la na parede ; estaria assim sempre à vista. Mudou de idéia, não a queria para os olhos de qualquer um, resolveu carregá-la junto ao corpo: algo assim como um talismã, um porta-fortuna contra a insipidez em que se transformara a vida. Para tanto, executou elaborado plano: localizou um tatuador artista, de outra cidade bem distante naturalmente, que reproduziu a bailarina com maestria na região abaixo do mamilo esquerdo,onde o coração a fazia balançar.Pensava, entre divertido e maravilhado, que ela jamais poderia escapulir, estava nele para sempre, ainda que não pudesse suspeitar.

Nos primeiros tempos em que se conheceram , fingira ignorá-la,não mais que uma peça na engrenagem de limpeza do prédio, espiando-a, no entanto, freneticamente, pelo canto dos olhos. Ela, humilde, face abaixada, inclinava-se ainda mais à sua passagem para esconder os olhos e o embaraço. Tempos depois, um aceno comedido, de cabeça. E, mais tarde, um “Bom dia” , mais resmungado que dito. E,finalmente, um “ Bom dia, Teresa”.” Bom dia, doutor ”. Era o máximo de intimidade que se permitia.Descobrira na folha de pagamento do edifício que ela se chamava Teresinha, o que lhe causou contrariedade.Uma beleza maiúscula não admitia tal designação. Passou a nomeá-la Teresa, o que lhe garantiu a atenção da moça, surpresa duplamente: era nomeada e rebatizada. O dia só começava para ele quando, saindo para a caminhada matinal, a encontrava, sempre entregue à sua humilhante ocupação. Era o seu momento mais alto, um calor prazeroso se irradiava por todo o corpo e o mantinha assim, acima de todas as pequenas misérias da rotina e da idade. O respeitoso e esperado “bom dia, doutor” ficava dançando nos seus ouvidos, letra e melodia, indo e voltando.

Mas agora,sem querer, estragara tudo. Perdera o controle, logo ele, exemplo de cidadão, homem de bem, curador da Escola de Belas Artes. Chegara perto demais, era isso, aquele perto que não admite retirada. Caíra no torvelinho. E assim, perdera o que não queria perder. Não sabia o que a moça sabia; ou do que desconfiava. Desabara sobre ela sem dizer palavra. E se estivesse rindo dele, da sua pretensão, do seu desatino? E se todos no edifício já soubessem do ocorrido e estivessem planejando uma ação contra ele, atentado ao pudor, abuso, quem sabe até suspeita de senilidade? Que horror! E ainda mais, se sabendo que tinha sido ele, tendo certeza disso, ela já tivesse contado para o marido, amante, companheiro ou sei lá o quê? Poderia ser alvo de vingança, e bem merecida no seu entender. Sim, pois era inimaginável que ela não tivesse alguém; essa era situação para gente como ele, fruto ressequido à espera da queda. Sentia que adentrava terreno movediço, novidade na sua vida. Como agir para manter-se na superfície? Como passar por ela, novamente, e colher aquele mínimo de atenção , “Bom dia, doutor!”, sem ser paralisado pelo medo ou pela vergonha ou até, quem sabe, sem poder reprimir o desejo todo novo de repetir a loucura que tinha vivido com ela. Surpreendia em si mesmo o emergir de um desconhecido, de um outro que estivera sempre à espera.

Naquele dia, só voltou tarde da noite para casa, não queria correr o risco de revê-la ou de ouvir conversas de outros empregados ou moradores.Sabe-se lá o que realmente tinha acontecido a Teresa e o que ela dissera; ou calara. Por dois dias inteiros, não saiu do apartamento.Reclusão. Compasso de espera.Apenas escutava, ouvido rente à porta. Distinguia os sons habituais, risadas dos vizinhos, cumprimentos e até eventuais xingações entre marido e mulher. Isso, em outra situação, poderia ser puro divertimento para ele: um mundo se abria nesse seu novo posto de escuta. Mas um mundo que não o interessava mais,um mundo passivo; queria ser ator, ator principal, nunca é tarde. Conseguia inclusive apreender , ao longe, o roçar da vassoura no chão, a abertura dos sacos de lixo, o ritmado baque do esfregão contra o piso. Todavia não podia saber se era ela, a sua bailarina, a agente de tais ruídos. Teresa trabalhava somente na área de serviço, separada do prédio principal por pesada porta de vaivém, a porta corta-fogo: os sons chegavam, por essa razão, abafados, quase indistintos.

Aqueles dois dias de exílio voluntário, privado das caminhadas e do encontro com Teresa, lhe oprimiam o peito. Diariamente saía do apartamento à mesma hora, sem se desviar jamais do caminho habitual, aliás o menos provável para um morador. Utilizava sempre a área de serviço, onde se localizavam as escadas, os latões de lixo... e Teresa. Era uma doce disciplina que se impunha . Mas devia justificar-se continuamente perante vizinhos e funcionários, surpresos com a recusa ao conforto dos elevadores, logo ele um senhor de certa idade,dizendo que o fazia somente pelo exercício físico. “Doutor, espere um minutinho que já chamo o elevador, oito andares não é brincadeira.“ Ao que ele sempre respondia: “Não se preocupem comigo, sigo conselho médico, devo caminhar o máximo possível. Subir e descer escadas é um exercício completo. ” Sem dúvida, o fazia pelo exercício, porém totalmente desligado de qualquer recomendação médica; seguia , isso sim, a sua recomendação interior, aquela que está gravada a fogo em cada um de nós. Sabia que fatalmente a encontraria em um dos andares, entregue ao seu inconsciente bailado. Era um exercício de encantamento, surpreendê-la, vê-la e ser visto por ela.

No terceiro dia, após o desvario, não aguentou mais: ressurgiu.Com capricho, preparou-se para a caminhada, abriu a porta corta-fogo que dava para as escadas e, nada mais fixo que hora de empregado humilde, lá estava ela, precisamente no seu andar. Imobilizou-se, corpo e pensamento bloqueados. O coração solto,batendo como um martelo contra a tatuagem da bailarina; suor frio, boca seca. Excepcionalmente, ela não empunhava vassoura nem arrumava saco de lixo; estava imóvel, encostada na parede, mão na cintura, olhando para a porta, como se esperasse por ele. Pela primeira vez, um olhar direto, chama e labareda. O cabelo, entre preso e solto, estava liberto da touca. As mãos, sem as luvas grosseiras .O uniforme de brim cáqui, displicentemente aberto nos primeiros e nos dois últimos botões, assemelhava-se a um casulo de onde brotasse uma borboleta.E,no pé, a prova definitiva de que ele não se enganara a seu respeito, era mesmo a bailarina do quadro, a que trazia há tanto tempo gravada no peito: no lugar do indefectível chinelo , uma sapatilha branca, diáfana, de tela finíssima, que a deixava descalça e calçada a um só tempo, pronta para a dança do amor e do desejo.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Rapsódia de um inseto (Vilson Ortiz)

1 – O contexto
"Um fosso profundo

faz do castelo

o rosto perfeito

– cruel e imaculado –

como um anjo devasso,

sedento de paz

e repleto de salas secretas...

onde fantasmas gargalham;

reclusos no espelho."



Ele recém escapara do ataque de uma aranha quando percebeu sons estranhamente articulados em sua mente. O mais desconcertan-te de tudo é que entendia o que aqueles ruídos mentais significavam. Porém, expandira sua psiquê de tal forma, atravéz de conceitos abs-tratos, que estranhava tudo a sua volta. E via tudo de forma diferente, com uma profundidade antes desconhecida, com significados que reduziam tudo a um padrão sonoro e imagético mental. Foi quando reparou no seu corpo: perdera as antenas, as asas rígidas e suas seis patas. Estava quase do tamanho da árvore que outrora fora seu univer-so. Tornara-se gigante. Apesar de todas as novidades, sua primeira atitude foi esmagar a aranha que o atacara no gramado. Olhava para o novo corpo e via alguns seres semelhantes perto de onde estava. No entanto, eles cobriam suas peles com trapos de tecidos coloridos.

Porém, para seu espanto, todos fugiam apavorados quando ele tentava pedir alguma explicação sobre sua nova condição. Sem entender porque todos o evitavam, resolveu fazer o que sabia: pulou sobre um senhor bem vestido. Lhe obrigaria a explicar o que devia fazer em sua nova forma de vida. Contudo, seu gesto causou confusão. Foi preso e levado para a delegacia. Os policiais lhe deram roupas e perguntaram o que ele fazia nu no parque. Pensou que finalmente receberia alguma explicação sobre sua metamorfose e contou ao delegado toda sua história. Este, achou tudo muito engraçado e lhe aconselhou a r-tornar para casa – recomendando que parasse de se drogar ou procurasse tratamento psiquiátrico. Desconsolado, caminhou até sua árvore. No parque, reparou que, usando roupas, seus semelhantes não o evitavam de imediato. Porém, os poucos que lhe escutavam, expulsavam-no após ele contar sua história.

Sentia fome, sensação que não lhe era estranha. Contudo, ninguém lhe dava de comer. Revirava as latas de lixo do parque, mas o que antes banqueteava com frenesi agora lhe repugnava. A noite se aproximava. O parque assumia tonalidades sombrias, diminuindo a eficiência de seus novos olhos, em relação aos antigos, melhor adaptados à pouca luz. As dores que sentia na barriga, devido à fome, aumentavam sua ansiedade – condição que conhecia desde os tempos de inseto. Desesperado, decidiu novamente fazer o que sabia – caçar comida. Armou-se com um galho de madeira resistente e surpreendeu um cão perdido, que farejava entre as árvores – o qual matou a pauladas. Mas não sabia como comeria aquilo. Tentou morder a pele dilacerada do animal. Porém, um de seus novos colegas de espécie – que observava tudo escondido, apresentou-se a ele e explicou que, se comesse a carne do cachorro crua, acabaria doente.

Seu novo conhecido lhe ensinou a fazer fogo, carnear a presa e depois assá-la. Ambos dividiram o churrasco, em torno da fogueira, que fizeram atrás das raízes de uma figueira. O ex-inseto reparou que aquele homem, que lhe ensinara tanto, vestia roupas rasgadas e sujas. Porém, foi o único que ouviu seu relato com atenção – até o fim. Depois de escutá-lo, o homem disse que se chamava Batista e lhe explicou sobre sua nova condição de vida – seria muito parecida com a anterior: teria de roubar para comer e fugir de predadores maiores, como a polícia. A grande diferença era que, a partir de então, não utilizaria garras ou tentáculos, mas esperteza. O mais estranho para o ex-inseto foi compreender que não precisava procurar comida – bastava possuir dinheiro. Batista não possuía dotes pedagógicos, e levou tempo até convencer seu conhecido que o novo mundo onde ele teria de viver era movido pelo dinheiro. Mostrar uma das poucas cédulas que carregava não ajudou, pois seu novo amigo viu pouca diferença entre ela e as folhas das árvores do parque.



2 – O observador


Juro a vocês. Precisam me ouvir. Sei que pareço um maluco – e que as roupas rasgadas que visto não ajudam os senhores a me respeitarem. Mas me dêem um pouco de crédito. Afinal, pelo que sei, sou o único que conhece toda a história do novo sócio que os senhores investigam. Mas, se os senhores duvidam da credibilidade deste mendigo que lhes fala, saibam que, antes de viver nas ruas, fui como um de vocês. Inclusive, me formei em jornalismo. E compreendo todo o asco que nutrem em relação a minha pessoa. Por que fui parar nas ruas? É difícil explicar. Teria de lhes descrever um longo processo de ruptura com minhas crenças – pois começou assim. Depois comigo mesmo. E o efeito dos remédios que me deram no hospital psiquiátrico. A solidão – coisas que os senhores temem e não querem ouvir. Sim, durante alguns períodos da vida perdi a sanidade – mas sempre consegui resgatá-la, pelo menos até agora. Querem que eu lhes conte a história do Gregório?! Não costumo trair amigos, mas ele nunca foi meu amigo e, quando não precisou mais de mim, simplesmente me descartou.

Os senhores precisam estar com a mente aberta – ou não acreditarão no que contarei. Imploro para que escutem o jornalista, e não o mendigo. E, se julgarem minha história digna, me consigam todo o dinheiro que prometeram, pois não agüento mais dormir nas calçadas. O conheci aqui, nesse mesmo parque, há seis anos – acho. Nas ruas o tempo passa de forma diferente – não sei explicar se mais rápido ou devagar. Mas o que isso importa? Conheci o Gregório nesse parque e, acreditem em mim, praticando o ato mais selvagem que já presenciei – e olha que vivo na rua... Ele matou um cachorro a pauladas e tentava devorá-lo cru – rasgando a pele com os dentes. Não sei de onde e-le veio – me contou uma história maluca: de que era um inseto e que se transformou em gente. Mas já vi tanto delírio que não o recriminei. Fui eu quem lhe ensinou tudo – inclusive a cozinhar a comida. Nem dinheiro ele conhecia e nem do nome lembrava. Fui eu quem lhe botou o nome de Gregório. Por quê? Por causa da história maluca que me contou sobre ser um inseto. Gregório era o personagem de um livro que li na juventude – A metamorfose, ou algo assim.

Como ele começou? No início roubávamos e pedíamos. Mas ele era muito rápido e forte. Cedo começou a assaltar e a vender pó nos bares próximos. No tempo em que traficou, eu ainda convivia com ele. O cara me dava medo – matava seus concorrentes sem a menor piedade. Percebi que era muito mais louco do que eu pensava. Acabei trabalhando com ele – vendendo erva, pois ele me considerava incompetente para vender pó. E foi assim: enquanto eu vendia maconha e era preso, ele se tornava o maior traficante da cidade. Mas ficou pouco tempo no ramo. Comprou uma empresa e começou a se dedicar aos negócios e à política... mas isso vocês devem saber. Querem saber de seu temperamento? Contei que ele matou um cachorro a pauladas? É, ele fazia o mesmo quando um de nós não correspondia ao que ele estava esperando. Vi, com meus olhos, ele executando dois caras com pauladas na cabeça. Primeiro batia no rosto – para defigurar e causar dor. Triturava carne e ossos – os caras não tinham mais rosto, só uma massa de carne homogênea. Era horrível. Depois, deixava eles assim por algumas horas – sofrendo. Finalmente matava, batendo em suas cabeças com o bastão. Não sei o que fazia com os corpos. Alguns diziam que ele os devorava no dia seguinte. Isso mesmo, comia carne humana. Louco ele era, mas não sei se chegava a tal ponto.

Sim. Ele era muito frio. Nada o emocionava ou comovia – dava a tudo uma finalidade prática e descartava o que lhe parecia desnecessário. Ainda não havia pensado no que vou lhes dizer, talvez seja apenas o delírio de um bêbado, mas ele parecia mesmo um inseto. Como na história em que me contou no dia em que o conheci. Nunca presencei uma demonstração de carinho – ele via o mundo como um inseto. A diferença é que era muito racional. Tinha uma inteligência assusta-dora – e sabia como convertê-la para fins práticos. Inclusive, não refle-tia ou se questionava. Usava toda sua inteligência para obter vantagens sobre os outros. Pegava tudo que lhe servia e descartava o que considerava inútil. Dizem – não sei – que como empresário ele faz muito sucesso. E eu acredito. Mas por favor: não contem a ele que me fizeram essas perguntas. Nem falem da história do inseto, pois não sei se ele a contou a outras pessoas... Claro. É evidente que temo por minha vida. Por menos que ela valha, é só o que me resta. E lhes garanto que ele não teria qualquer consideração por mim. Assim como não terá por vocês, quando se tornarem desnecessários a seus objetivos. Quanto a seus objetivos? Não sei. Nunca me disse o que queria. Nada o divertia – nem o que podia comprar com toda a grana que tinha. Acho que só o poder. Não! Não porque gostasse de mandar nas pessoas. Tenho a impressão de que tudo era apenas porque sentia medo. Só estando acima de todos ficava tranqüilo.



3 – O objeto

Dois meses sem o sol. Talvez séculos. E esse corpo estranho – restrito por regras falsas. Odeio toda essa gente, principalmente aqueles que me bajulam. Ao contrário dos que me agridem, os bajuladores querem me comer aos poucos – perna por perna. Já devoraram mi-nhas antenas. No espelho vejo um rosto estranho. Uma imagem que aparece nas revistas de negócios como outras: um dos dez homens mais ricos do país. E daí? Todos querem me derrubar, se vingar. Mais ainda os hipócritas que me procuram – que me chamam de “amigo”. Só aguardam o momento apropriado para me desferirem um bote fatal. Quase duas décadas fechado nesse mausoléu – que todos cobiçam. Nesse casarão cercado por bosques, câmeras e grades. Assas-sinando aranhas e formigas. Jogando na bolça de valores com o computador. Números. Números. Números e mais números – é tudo a que me reduzi. Cada vez mais rico, mais poderozo, mais invejado, mais só... cada vez menos complicado. E a evidência é arrasadora. Não que tivesse ilusões, mas nem prazer sinto. Semana passada torturei uma jovem até a morte. Levei dois dias para matá-la. Nem sua pele branca coberta de sangue – visão que alguns anos antes me encheria de orgulho – despertou qualquer emoção em minha mente. Foi puro desperdício de súplicas e gemidos. Naquela hora, nem os números me salvaram... Até eles revelaram-se malditos paradoxos.

Restam os corredores escuros e esse cômodos repletos de vazio – meu império. Se ao menos os móveis dançassem, ou se o piano me engolisse. Retornaria à selva, em seu interior infinito. Mas sequer posso invejar minha antiga condição. Não há nada mais crítico que viver no meio do caminho – com essa maldita racionalidade humana e com esse pragmatismo artrópode. Não sinto nada: afeto, ódio ou qualquer outro sentimento. Fico mais rico a cada dia, mas não tenho nada. Nem a mim. Sou estranho até para o espelho. Se pudesse, detonaria todas as bombas atômicas do mundo de uma só vez e acabaria com esse pesadelo. Daria um fim glorioso à angústia de bilhões – todos perdidos em labirintos semelhantes ao meu. Um espetáculo pirotécnico jamais visto como epílogo da história. Exterminá-los seria perfeito, sem qualquer sentimento: apenas átomos se descombinando para depois se combinarem de outras formas – menos miseráveis. Mas quem sou eu para julgar a miséria? O rei dos miseráveis? Sim, talvez, mas nunca o dos hipócritas. Mas seria a plenitude – sentir os átomos livres como cometas, saindo pala tangente e dirigindo-se ao nada, ao insondável, unindo-se a tudo em algum buraco negro. Que breve conforto infinito para minha alma mal sincretizada. Que ode aos cupins que devoram as fundações de nossos palácios...

Nunca acreditei na vida. Nada me difere das paredes desse ca-sarão que me exila dos sorrisos. Nem os criados podem me ver – eu odeio essa gentalha servil e traiçoeira. Só ocupam a ala de serviços – e me servem comida na sala de refeições sem que os veja. Tocam o sino – que indica que já serviram a comida e foram embora. Me sinto ligado a tudo, menos a esses vermes bípedes que ousam separar-se de tudo e centralizam o universo a sua volta. Mas nem os odiar consigo, pois entendo os mitos infames de que precisam se servir para continuarem vivendo sem desconfiarem que estão apenas sonhando con-sigo mesmos. E como desprezo suas ridículas personalidades – revestidas de ouro e recheadas de merda. Acho que apenas troquei facilidades: a vida descomplicada dos insetos, mas dura; por esse teatro, igualmente duro, mas adornado com castiçais reluzentes e pedrarias brilhantes. E o pior de tudo é que, quanto mais aceleram suas vidas, mais se aproximam de meus desertos – das taças que transbordam areia que bebo todas as noites enquanto contemplo a lua, da janela do quarto. E em poucas décadas serei o modelo de todo horror que espalharão no planeta. Mas por que me importaria? Que venham até onde estou e me libertem de suas lendas. Eis minha utopia, disfarçada de pragmatismo: o mundo será dos insetos – a revolução artrópode não pode mais ser contida. Me resta o consolo de que sou o século XXI.

Sim, me rebelei com a condição de objeto, imposta nas revistas de fofoca. Aqui estou, em minha mansão, vagando por corredores que parecem novos a cada dia. Porém, no meio de tantas relíquias artísticas – compradas ou roubadas – apenas um espelho, da mobília do rei Luis XIV, dá sentido a meu rosto. Todas as noites, antes de vagar no quintal, olho para ele por horas a fio – tentando captar-me. Mas, quanto mais focalizo a visão, mais meu rosto parece fugir – torna-se abstra-to. Como se também eu fosse apenas um arquétipo. Mas a muito desisti de buscar a sinceridade no reflexo: hoje tento apenas me comunicar com os cupins que devoram a moldura de madeira do espelho, entalhada com rigor e pintada com ouro. Eles me espiam de seus bura-cos, como se por eles vazassem lampejos divinos. E isso tudo me irrita muito, pois sou ateu. Duvido do primata estúpido que vejo – mas as frestas dos cupins compensam o meu horror. Já tentei conversar com o reflexo, mas ele me dizia palavras tão vãs que desisti. Era monstruoso. Desde então, tento me aproximar dos cupins – me comunicar com eles. Ajudar em sua tarefa. Devorar esse precioso espelho até sua últi-ma lasca, para sua imponência ser esquecida para sempre. Sei que eles me olham, me contemplam assombrados.

Nos primeiros anos me entreguei às bacantes. Esse casarão abrigou as mais famosas orgias da cidade. E, como continuava enriquecendo, ninguém se importava. Pelo contrário, recebia a nata da sociedade local – sedenta de prazeres proibidos. A cocaína pura circulava em bandejas de prata e era inalada pelos convidados em canudos do mais fino cristal de murano. Devorávamos tudo o que podíamos – enquanto nossos corpos agüentavam. Mas isso acabou me entediando. Transformou-se em uma espécie de ritual – quanto mais tentava modificá-lo, mais se aproximava de um padrão. Uma noite expulsei todos de casa e desde então vivo recluso – com meus cupins. Como me torno mais rico e poderoso a cada dia, todos respeitam minhas particularidades – “é um gênio dos negócios”; dizem. Caso estivesse empobrecendo, diriam que sou louco. Mas e daí?! – tal aprovação não me convence. Quanto mais me odeiam, mais me admiram. Minhas empresas agem como aranhas no mercado – e recebo prêmios humanitários. O que teria de fazer para que assumissem que me odeiam? Tudo o que faço revela que os desprezo – e, quanto mais os desprezo – mais me adoram. Mas nunca conseguiriam entender o que sinto, aprisionado em seu mundo de aparências – transformado em espetáculo. Sou um deus laico que deseja apenas esquecer todas as palavras e retornar ao labirinto incogniscível da relva noturna. Um Odisseu que deseja voltar à época em que devorava para existir – e bastava existir. Hoje, ao contrário, existo para devorar – e, até que eu devore tudo, existir nunca bastará. Se os cupins soubessem o que é a inveja – entenderiam o quanto os invejo.

Diário de um inseto, 20 de setembro de 2015.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Feito homem (Rudiran Messias)

Chora, mano. Pode chorar. Eu sei a dor que tu sente.

E não vou dizer pra ninguém.

O medo é assim; a dor é assim: ninguém entende antes de sentir na própria carne. Essa miséria de tá amarrado sem poder fazer nada. Foi assim que eu me senti todos esses anos, apodrecendo no inferno, sem ninguém pra me consolar. E por tanto tempo, tanto tempo, que eu queria ver se tu era macho de agüentar. Mas tu já chora.

Desde pequeno a vida foi padrasta pra mim. Tu, pelo menos, tinha pai vivo pra te defender se alguém quisesse te ferrar. O Laurindo sempre ali, passando a mão na tua cabeça enquanto eu tinha que me virar do jeito que podia. Quando eu voltava do colégio, ele mal deixava eu almoçar e já me enxotava de casa. Dizia que se ele e a mãe trabalhavam, eu também tinha que fazer a minha parte. Só tu que ficava aqui dentro, na boa: vendo televisão, jogando videogame.

A mãe também tava sempre do teu lado. Era como se tu fosse o único filho que ela tinha botado no mundo, porque tu parecia com ela e eu não. Da mãe, eu não tinha nem os olhos, nem o formato do rosto, nem o cheiro, nem a cor da pele. Então ela olhava pra mim e lembrava dele, aproveitava pra dar o troco. Acho que ela sabia o que o Laurindo fazia comigo, mas tava cagando. Deixava ele me esfolar de tanto bater, depois olhava pra mim e dizia: tu é bem como o traste do Dione. Merece cada uma dessas biaba que o teu padrasto te deu. Então eu chorava, como tu tá chorando agora.

Chorava quando ele aproveitava que a mãe tinha saído e te levado junto com ela. Aí ele me chamava na cama e me amarrava bem apertado, o teu pai. Ele fazia isso comigo. Um dia eu falei tudo pra mãe, mas ela não acreditou e ainda me deu um tapa na cara. Disse que eu só tava inventando aquilo porque o Laurindo tinha me dado uma sova. Depois ainda contou tudo pra ele, que negou e me surrou ainda mais. Ameaçou de me expulsar e falou pra eu não inventar história, pra não usar aquele palavreado na casa dele – ele tava falando desse barraco aqui, que o meu pai construiu com os próprios braços e que foi onde eu nasci. A mãe, do lado dele, só perguntava onde eu tinha aprendido tudo aquilo, se tinha sido com os capangas do Tonho. Mas eu tinha aprendido tudo aquilo era com o Laurindo, mesmo.

Só quem acreditou em mim foi o Tonho. Também foi ele quem me deu trabalho quando eu precisei, porque tinha sido amigo do meu pai. E me deu a faca do Rambo, quando eu contei o que o Laurindo tinha feito comigo. Primeiro me ofereceu um berro, mas eu vi a bichinha brilhando na cintura dele e disse que preferia a matar com faca, porque eu gostava do filme do Rambo. Quando eu disse isso, ele me olhou com orgulho, como só o meu pai já tinha olhado pra mim antes. Então eu voltei pra casa e furei aquele filho da puta do teu pai quando ele tava dormindo. Eu cheguei no quarto e ele tava de bruços, dormindo só de cueca, com aquela bundinha virada pra mim, se oferecendo. Daí eu cravei o aço e o Rambo comeu ele. Mas não demorou pra mãe chegar contigo, e vocês nem pensaram duas vezes antes de me entregar pros porco. Correram daqui chorando, como nunca tinham chorado por minha causa, que nem tu tá fazendo agora.

Chora mano, pode chorar.

A mãe tá lá dentro e não vai acudir.

Ela também não me ajudou quando eu precisava. Só o Tonho que me deu a mão. Ele sempre foi um pai pra mim depois daquele dia. Quando eu fui em cana ele disse pra eu agüentar um tempo lá, enquanto a história esfriava. Disse que assim eu ia aprender a ser homem – e eu aprendi, sofrendo, sem chorar. A cadeia me mostrou que pra ficar vivo a gente tem que ser forte, mano. E agora eu sou forte, por isso o Tonho deu um jeito de me tirar de lá.

Chora, mano, pode chorar.

Mas não tem como ser diferente.

Agora eu saí da cadeia e chegou a vez de provar que eu virei homem. Não adiantou o Laurindo ter feito aquilo comigo. Eu ainda sou macho – e sujeito homem vai lá e faz justiça, não espera que os outros façam. Foi o que o Tonho disse, quando me deu essa pistola.

Tá vendo essa belezinha aqui? Essa arma é o meu ticão, que eu vou meter no teu rabo do mesmo jeito que o teu pai fez comigo, do mesmo jeito que ele fez com a mãe. Aí tu vai ver como foi que o Laurindo fudeu a nossa família.

A mãe entendeu tudo bem direitinho e agora tá lá dentro, dormindo sono ferrado.

Chora, mano. Pode chorar.

Eu não vou dizer pra ninguém.

Vou contar que tu morreu feito homem.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ouvindo a chuva (Paulo de Tarso Riccordi)

Dia ainda claro, do horizonte avançava uma barra escura de nuvens carregadas, quase sólidas de tanta água.

Vó Neca falou:

- Aí vem temporal.

Luizinho confirmou e logo se surpreendeu. Voltou-se para observar a bisavó. Teria recuperado a visão?! Não. Ela continuava com os olhos pregados no vazio, tão cegos como sempre.

- Como é que tu sabe que vai chover, vozinha?

Ela riu. - Pelo ar. Não sentes os sinais?

- Eu tô vendo o tempo fechar.

- Os sinais da chuva que vem vindo estão no ar. É como um mensageiro que nos traz notícias de longe. A Natureza também fala.

Estendeu a mão e tocou na cabeça do bisneto.

- Fecha os olhos.

Ele fechou.

- O que estás ouvindo?

- Um automóvel.

- Te concentra mais. Não escutas os passarinhos?

- Passarinhos?

- É. Ouve: eles pressentiram o temporal e estão buscando as árvores para não serem pegos pela chuva durante o vôo.

Luizinho, agora concentrado na audição, ouvia, sim, o rebuliço da passarada no arvoredo em torno. Era a mesma algaravia de sempre, mas agora parecia amplificado por sua atenção.

- Agora te concentra com o corpo. O que estás sentindo?

Luizinho sentiu a leve, ainda levíssima, brisa chegar até eles.

- Tá ficando mais fresquinho.

- É, na frente da chuva vem o vento frio. Está correndo para onde o ar é mais quente para ocupar seu lugar.

Ele agora o percebia nos braços e nas pernas, arrepiadas.

- Agora respira fundo. E então?

Ele concentrou-se, nariz erguido.

- Cheiro de capim. E de barro.

- É, já está chovendo nos campos fora da cidade. A chuva vem vindo de lá para cá.

Luizinho entreabriu os olhos e viu a bisavó apontar com o queixo exatamente o rumo de onde vinham as nuvens.

- Agora as plantas estão felizes. A terra está molhada. Elas precisam de sol, mas também de muita água para crescer. Ficam mais fortes, crescem mais rápido. E o gado também fica mais feliz, porque tem o que comer. Não estás sentindo um cheiro de bosta de vaca?

Não, ele não sentia. Era sutileza demais para ele.

- Eu tô sentindo é cheiro de eucalipto.

- É, naquela direção. - A avozinha apontou adiante. - Deve haver uma grande plantação de eucaliptos lá.

Luizinho mais uma vez surpreendeu-se. Avistava a meio caminho da linha do horizonte um mato de eucaliptos. Fechou os olhos e aspirou profundamente o ar impregnado desse perfume familiar. Era costume naquela família ter sempre uma lata com folhas de eucalipto a ferver à beira do fogão a lenha “para desinfetar o ambiente”.

- Ainda estás com os olhos fechados?

- Tô.

- Sentes que o ar está mais pesado?

- Não. Eu tô sentindo é cheiro dágua.

- É, já tem cheiro de umidade no ar. Eu sinto no corpo e nas juntas dos ossos que a umidade já aumentou bastante. Logo isso vai se condensar e formar gotas.

- E aí vai pingar e começar a chuva.

- É, por isso vai chover.

O lençol escuro de nuvens os alcançou, cobrindo o que restava de céu.

- Pronto, o sol se foi. Agora ficou frio mesmo. Vamos entrar para não nos gripar.

A avozinha levantou e arrastou consigo a cadeira, subindo as escadas e avançando pela casa, sabendo onde cada coisa se encontrava, melhor do que se enxergasse. Nunca precisava de auxílio para nada ali dentro.

- Vou preparar um chá de cascas de laranja.

Da janela da cozinha Luizinho ficou olhando a chuva chegar. Era a velha chuva de sempre, e ao mesmo tempo uma completa novidade. Primeiro o vento sacudiu as folhas das árvores do pátio, agitando-as desordenadamente em todas as direções. Depois as grossas gotas iniciais vieram tamborilar nos vidros. Quando a chuva chegou total, veio como uma cortina, avançando rua a rua, casa a casa.

- Luís, tem um pano velho aqui debaixo do fogão. Enrola ele e põe junto à porta, que está entrando água por aí.

Outra surpresa. De fato, a água começava a entrar na cozinha por baixo da porta.

- Como sabias disso, vozinha?

- As gotas estão batendo contra a porta. É sinal de que o vento as está empurrando também por baixo dela. E depois, pelo barulho, o ralo do pátio deve estar entupido.

Ela não confessou, mas isso ela não ouvira, não. Fora a empregada quem, de manhã, dissera que a calha estava entupida de folhas secas e que “amanhã” iria limpá-la.

Ele deixou-se ficar diante da janela, mas com os olhos fechados, deixando que os demais sentidos continuassem a perceber temperaturas, sons.

A lembrança dessa tarde lhe voltaria ao longo da vida, trazida pelo ruído de chuva, pelo perfume de terra molhada e eucalipto, pelo sabor do chá de laranjeira e pelo abraço de um corpo mirradinho de carnes. Nunca mais as chuvas deixaram de trazer notícias das cercanias e do passado.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Encontro na praça (Ayalla de Aguiar)

A primavera explodia em roxos, como explodem as primaveras e os roxos em tempos de Feira. Gabriel Garcia Marquez explodia em Cem anos de solidão e eu ansiava para mergulhar em Macondo quando, por graça, perguntei ao vendedor da barraca de livros se ele não me venderia apenas Oitenta Anos de Solidão, e me daria um desconto. Um senhor ao meu lado, sem nenhuma cerimônia, introduziu-se na conversa e quando eu me virei para ver quem estava rindo da bobagem que eu dissera, dei de cara com Mario Quintana, em carne e osso, que, alegremente, falava comigo.

Agarrei-me à oportunidade e, rápida, pedi licença para comprar um de seus livros para que ele o autografasse. Ao rapaz, solicitei um exemplar de A Vaca e o Hipogrifo, lançado naquele ano, se não me engano. Mais que depressa, Quintana atalhou a minha conversa com o vendedor e disse:

– Não, não leva a vaca, o quilo de carne está muito caro! Não leste no Correio do Povo? Subiu o preço do boi!

Surpresa, retruquei:

– O que, então, o senhor sugere?

– Leva o Pé de Pilão. Se achar demais, leva só o Pilão, deixa o Pé, que não tem muita serventia.

Comprei o Pilão, com Pé e tudo e o entreguei ao Autor, para que autografasse. Perguntando meu nome, ele escreveu:

“Para a menina Ayalla, que ainda deve estar espiando por detrás da sra. Aguiar, o amigo velho – Mario Quintana. P. Al. 4/11/77”.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Infância (Amilcar Bettega)

Nós éramos crianças e orgulhosos das nossas arminhas de chumbinho. Cada feliz brincadeira de nossos dias longos era, sem que soubéssemos, intensa e definitiva como um passo iniciático. Caçávamos passarinhos. Joões-de-barro, sabiás, bem-te-vis e tico-ticos abundavam naqueles lados de laranjeiras enormes, pereiras magníficas, macieiras, pessegueiros, e eucalipto e campo, um campo interminável, que nos isolava e protegia, como a cândidos reis infantis.

Foi um passarinho de estrutura doce e frágil, cujo nome nunca nos foi dado saber. Depois a chamamos de pombinha, talvez pelo branco incomum, quase um milagre naquele mundo de telúricos pássaros marrons; talvez pela brandura dos movimentos, que nos pareceram inequivocamente femininos; chamamos de pombinha porque nunca soubemos, de fato, que espécie de ave era aquela, tão pequena e tão diferente e que depois de tudo, e por muito tempo, ainda nos fez cogitar, na solidão escura de nossos quartos de dormir, que nem ave era, algum espírito disfarçado, uma coisa sagrada, e que nos vigiava o sono. Mas chamamos de pombinha, sobretudo, porque precisávamos de um nome, precisávamos contar, aos outros e a nós mesmos, nas histórias que sempre voltavam quando nos reuníamos, a experiência que foi caçar a pombinha.

Foi vista num relance por um de nós, e antes que todos a víssemos, vimos os galhos secos do pessegueiro que se agitaram num tremor repentino, como se uma pedra pelo meio deles caísse. E ainda assim, e já ela vista em seu vôo branco de alegres asas lépidas, algum de nós insistiu que se tratava de uma borboleta, esses fúteis pássaros de papel que saem do sonho de sestas indolentes, pulando no ar como se vivessem um desenho animado. Não era borboleta, era a pombinha, com corpo e vôo bem mais exato, feita de sangue e carne, o que a tornava, de pronto, coisa viva e real, maior e mais grave do que mil borboletas desabaladas. “Borboleta nada”, dissemos nós, meninos com sedes de aventura, ou realidade, ou o nome que se dê a essa gana de ser crescido.

Os primeiros três ou quatro tiros dissiparam-se em ecos aflitos, no infinito: não éramos tão bons quanto pensávamos. Costumávamos treinar em alvos fixos: as latas e tampinhas de garrafa. Ou então em sanhaços gordos e sonolentos da fartura das laranjeiras. Mas nada, nada como ouvir o rude bater de uma asa, o remexer frenético nas folhas, descobrir na placidez monótona da árvore o lugar exato de onde vem aquele movimento; essas coisas todas nos aproximavam de uma verdade quase táctil, sentíamo-nos vertiginosos, o sangue correndo mais ligeiro no corpo, o coração gritando na axila, no ombro que sujeita o cabo da espingarda, que pula, como se ela própria, a tirana, quisesse sozinha fazer o serviço.

E o pior, o terrível, foi que a pombinha não fugiu. No mais das vezes era só uma chance que tínhamos, ou, como atiradores infalíveis: uma só chance que dávamos. Raro era o passarinho que nos desafiava assim, pulando para uma árvore vizinha após errarmos o primeiro tiro. Raríssimo. Impossível. Nunca, jamais um passarinho ficou zanzando de cá para lá entre as árvores, depois de quatro disparos vergonhosamente perdidos.

No quinto ela desandou.

Estava num galho alto e desceu flagrantemente viva, não como uma bergamota madura e abatida como tantos joões-de-barro, sabiás, bem-te-vis, tico-ticos, tantos que assim caíam; mas desceu com as asas semiabertas, se debatendo numa espalhafatosa resistência. Tanto que não foi ao solo. Ficou meio que agarrada num galho mais baixo, quieta, num silêncio em que a surpresa, o medo, talvez a dor e a consciência de estar viva juntaram-se, imóveis. Foram grandes minutos, foram anos, até que um de nós a viu de novo: uma flor branca, se na árvore houvesse flores brancas. Imediatamente, como que dotada de percepções estranhas, ela se moveu, já desassossegada por aquele incômodo pedaço de metal incrustado sob a asa, e procurou escalar um galho mais acima, pondo nas garras a força que lhe faltava em uma das asas. Era já um alvo fácil, e essa facilidade intimamente nos irritou. Tivemos que atirar três vezes. Três vezes atiramos, três vezes, para que então sim ela viesse ao chão, com barulho e, pensávamos, ferida de morte.

Foi sim.

*

Foi sim. E não poderia ser diferente disto: uma sensação de que o mundo some, de que num repente desaparecem todas as forças que nos sustentam e de que algo terrível nos puxa para o nada. Sentir que um frio repentino nos chupa a vida. Sentir que se cai sem tempo de saber que se cai, ou de ao menos preparar o corpo para queda: talvez abrir uma asa, aprumar a pata, girar o torso no ar para que o peito amorteça o baque. Não. Ao contrário, sentir que tudo é pior e que não há força capaz de evitar o pior. Sentir com inequívoca certeza que se vai morrer, e que se queria tanto continuar vivo. A queda é feia e de bico, o pescoço entorta, e só depois as costas contra a grama, como um tambor que se rompe, chocho. E ali ficar, passado o susto, quase feliz naquela estranha convalescência de capins. O peito arfa de medo e cansaço, e há como que um sutil relaxamento dos membros, rapidíssimo, porque então vem o inevitável momento em que a dor se acomoda no corpo como quem chega de mudança.

Estirada assim, olhando o céu e as nuvens, os galhos que filtravam o sol como uma cortina puída, a pombinha pensou. Aguardou, imóvel e sem esperança, que alguma coisa viesse salvá-la. Mas aguardar não era mais do que pretexto para se dar o tempo de juntar forças, porque sabia — e talvez soubesse tanto isso — que estava sozinha. Trazia já uma asa inerte, pedaço morto de si, e o sangue vazava do corpo com uma lentidão de sono. Talvez sonhasse e talvez o sonho fosse bom: o céu azul, uma árvore baixa, uma quase comovente liberdade. Mas qualquer coisa, qualquer coisa que certamente era dentro de si, despertava e a trazia para um mundo de nuvens cruzando o céu e raios de sol furando a copa das árvores, um mundo onde alguma coisa lhe fustigava o flanco com crescente energia. E assim, ainda deitada em sua cama verde, ouviu ruídos que se propagaram perigosamente pelo solo, um tropel de pés muito maiores — sempre tudo muito maior e perigoso — e num só e brevíssimo instante teve de aprender a não ser pássaro e correr terrenamente por entre os ramos de capim, como criança começando a andar. O outro tiro entrou pelas costas, uma furiosa pedra quente que lhe lambeu a espinha e ergueu no ar inúmeras penas como na explosão de um travesseiro. E inúmeras carícias lhe caíram lentas sobre a cabeça, numa improvável tarde de neve. Uma ardência, uma crescente ardência. Eram já cinco os nacos de chumbo que dormiam no seu corpo, e a partir daí decidiu não mais contar. Simplesmente correu. Correu muito, sem saber como nem para onde, os flancos inchados, num esforço supremo para vencer os gigantescos tocos de capim que lhe arrebentavam as patas e se enterravam na carne das coxas. Intimamente sabia que os ramos altos e duros consumiam com velocidade assustadora as suas últimas energias, mas agradecia, a isto que lhe matava, por ser também a selva que a protegia do tiro fatal.

E não foi um, mas vários, a julgar pela quantidade de ecos que se multiplicaram nos ouvidos. Caiu, por fim, exausta, irrevogavelmente derrotada, mas com uma dignidade que não julgava ter. A asa morta, amarrotada sob o corpo como uma folha de papel inútil. Ficou assim estática por dois magros segundos, até que a outra asa, sem menos nem mais, como que atiçada por uma corrente elétrica, abriu-se num leque — e as penas todas, do lombo à nuca, arrepiaram-se num estertor de morte. Era a morte, não havia dúvida, e havia naquilo qualquer coisa de divino. Uma profunda dor no lado e o bico se abriu para puxar um ar que não vinha. O esforço de comprimir-se inteira em busca do nada rendeu-lhe apenas um vômito lento e incolor, pouco mais que um soluço. O bico se fechou num difícil gole em seco, a garganta ardia. Espichou o pescoço para facilitar a entrada do ar e, muito devagar, como quem teme que alguma coisa rebente, abriu outra vez o bico para que surgisse, retesada, a minúscula língua cor-de-rosa. Depois foi se encolhendo, a cabeça baixando no peito, como quem cai no sono.

Quando já não se pode imaginar mais nada, quando o ser parece esgotado de tudo o que nele vive, quando já se é uma massa alquebrada e inerte, quando já se está para sempre vencido e destroçado e batido e morto, é só nesse instante que se é o que de fato se é. A pombinha, nesse instante, como que tomada por forças sabe-se lá de que lugar de si, fez bruscos movimentos com a asa num arranco raivoso, abrindo espaço sôfrega e desabaladamente entre a grama, uma asa arrastando no chão, a outra tentando alçar um vôo absurdo, caindo e levantando e voltando a cair. E assim continuou por uns três, talvez quatro metros, que são vinte, mil, milhões de metros de uma trilha bêbada, caindo e levantando e voltando a cair — e nesse momento ela foi assustadoramente humana.

Então caiu, de uma vez por todas.

Finalmente podia relaxar, deitada sobre o amontoado dormente que lhe pendia de um lado, e acreditou que dormia. A outra asa permaneceu aberta, tal qual um veleiro abatido, com sua vela espalmada e balouçante sobre a superfície do mar. Alguma coisa ainda se agitou por um tempo dentro de si, mas o sono acalmou tudo. O olho, voltado para o alto, ficou aberto e com a sensação de ser a última coisa a morrer.

*

E foi ali.

Foi exatamente ali naquele olho aberto e lustroso, que nos vimos todos refletidos, todos à volta daquela mancha branca — e agora manchada de vermelho — sobre a grama, todos nós, meninos se aprontando, orgulhosos das nossas arminhas de pressão. Nós éramos crianças. E repetimos: nós éramos crianças. Repetimos muitas vezes, éramos crianças. E ainda seguimos repetindo, repetindo sempre.

A vantagem de atravessar a madrugada no ocidente (Daniela Langer)

Sono. Você me diz com o rosto já procurando um jeito de encaixar no meu ombro, acomodando-se entre as dobras das cobertas e o meu corpo. A madrugada caminha pelo quarto e eu suspiro cada segundo – em vez de carneirinhos, pulam, um por vez, todos tipos de pensamento. Vou e volto do oriente, faço na ponta dos dedos a conta de um fuso-horário. Tibete, Índia, Tailândia.

Sombras desenham elefantes entre a cômoda e o vão da porta, murmuro no Japão o império durou milênios e eram tão lindos os imperadores, todas aquelas honras, você não acha? até que, grudando seus lábios nos meus, - e em algum lugar do meu sonho que ainda não começou - você ri, só no Japão que já amanheceu, vai dormir.

Tarde, e não consigo desembarcar desse mundo inteiro. O reflexo de um safári no espelho oposto à tv me faz caçar a voz monocórdia do locutor no volume quase mínimo.

Tarde, e é tão bom sentir seus pezinhos mornos debaixo das cobertas. Viro para você que amolece quando meus dedos invadem as pontas dos tecidos da sua roupa. Minhas mãos lhe convidam para seguir comigo para o outro lado do mundo, quem sabe giramos e giramos sempre na beira do penhasco, um leopardo sai das savanas, tribo ao norte balança suas lanças, calor do seu rosto, seus lábios no meu ouvido vem, ainda é hoje.

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O dia seguinte (Moacyr Scliar)

Se há alguma coisa importante neste mundo, dizia o marido, é uma empregada de confiança. A mulher concordava, satisfeita: realmente, a empregada deles era de confiança absoluta. Até as compras fazia, tudo direitinho. Tão de confiança que eles não hesitavam em deixar-lhe a casa, quando viajavam.

Uma vez resolveram passar o fim de semana na praia. Como de costume a empregada ficaria. Nunca saía nos fins de semana, a moça. Empregada perfeita.

Foram. Quando já estavam quase chegando à orla marítima, ele se deu conta: tinham esquecido a chave da casa da praia. Não havia outro remédio. Tinham de voltar. Voltaram.

Quando abriram a porta do apartamento, quase desmaiaram: o living estava cheio de gente, todo mundo dançando no meio de uma algazarra infernal. Quando ele conseguiu se recuperar da estupefação procurou a empregada:

— Mas que é isso, Elcina? Enlouqueceu?

Aí um simpático mulato interveio: que é isso, meu patrão, a moça não enlouqueceu coisa nenhuma, estamos apenas nos divertindo, o senhor não quer dançar também? Isso mesmo, gritava o pessoal, dancem com a gente.

O marido e a mulher hesitaram um pouco; depois — por que não, afinal a gente tem de experimentar de tudo na vida —aderiram à festa. Dançaram, beberam, riram. Ao final da noite concordavam com o mulato: nunca tinham se divertido tanto.

No dia seguinte despediram a empregada.

domingo, 18 de outubro de 2009

O retorno (Eni Allgayer)

Mofo! O cheiro de mofo e poeira está em todos os lugares. Pelo jeito, o sol não entra no quarto há muito tempo. Estranho isso! Ele sempre gostou de luz. Detestava penumbra e poeira. Lembrei então de sua renite. Como estaria? Senti vontade de abrir as cortinas e janelas, deixando o ar puro e o sol entrar, mas me contive. Não seria prudente. Onde estavam as empregadas? Suzi e Verona sempre foram caprichosas, mantendo a casa limpa e perfumada. Será que ele as despediu? Homens são tão insensíveis! Ora, onde já se viu despedir duas empregadas que já estavam conosco há pelo menos vinte anos. Quem estará cuidando dele agora? Ninguém vive sem cozinhar, lavar, passar e limpar. E, ele nunca teve jeito para essas coisas. Lembro-me de como era desajeitado quando tentava me ajudar, nas folgas das empregadas. Chegava a ser engraçado, aquilo: pratos, copos e travessas não resistiam às suas mãos, e a toalha acabava cheia de manchas. Isso sem falar na comida queimada. Bom, vou deixá-lo dormir mais um pouco. Passei a mão em seu rosto áspero, estranhando a barba de dias, mas ele não se moveu. Acomodei-me ao seu lado, resgatando anos de silenciosa vigília. Depois de algum tempo, deixei-o na inconsciência do sono e fui revisar os outros aposentos. Que horror! A sala também tem as cortinas cerradas. Isso não está certo. Nunca pensei que ele pudesse mudar tanto. Antes, era ele quem abria portas e janelas pela manhã, para que o perfume do jardim invadisse todos os recantos. Era a sua maneira de demonstrar amor, pois sabia o quanto eu gostava das flores e árvores que havíamos plantado. Não raro, surpreendia-me com um botão de rosa, resultado de suas investidas furtivas ao roseiral. Chegando à cozinha, pensei preparar um café da manhã no capricho, lembrando que não havia nada que o agradasse mais do que um farto desjejum. No armário, pão dormido; na fruteira, uma banana passada, de casca escurecida; na geladeira, uma caixa de leite desnatado pela metade. O que está acontecendo com ele? Como pode deixar isso acontecer? Inconformada, retornei para o quarto. Encontrei-o encostado na cabeceira, com os cabelos revoltos e os olhos fechados. Sentei na cama, recostando-me ao seu lado, como nos velhos tempos, entrelaçando meus dedos nos seus. Ele permaneceu quieto, num silêncio sofrido. Acariciei-lhe as mãos, como costumava fazer, quando as coisas ficavam difíceis. Pensei ver um sorriso fugaz bailar em seus lábios. Depois de alguns minutos, ele levantou, começando a se vestir, com a calma costumeira. Esperei que fizesse sua higiene, e fomos para a sala. Finalmente ele descerrou as cortinas e, o meu coração se confrangeu ao ver que não existia jardim, nem roseiras, mas apenas plantas daninhas se enredando nas árvores. Por que isso?, perguntei, desgostosa. Num encolher de ombros, ele sentou em frente à escrivaninha. Na sala, pilhas de livros e jornais ocupavam mesas, cadeiras e sofás. Naquele momento, arrependi-me, sinceramente, por não ter adotado uma criança, como chegamos a cogitar, quando os médicos finalmente concluíram que ele era estéril. Voltei a questioná-lo sobre o que estava acontecendo, mas ele me ignorou, continuando a examinar os papéis que tirara de uma gaveta. Algum tempo depois, levantou para acender o abajur. Então me aproximei, tomando-o nos braços. Minha cabeça ainda estava recostada em seu peito, quando fixei o olhar na imagem solitária refletida no espelho. Só então compreendi a tristeza que havia em nossa casa.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

A princesa e o dragão (Jeferson Flach)

A PRINCESA E O DRAGÃO



E vens me convidar com um sorriso

dizendo que tive uma grande sorte

por entrar onde um dragão desde o norte

guarda o jardim ao sul do teu paraíso?



És palácio semovente, impreciso

miro as colunas e penso na morte

e ainda mais se toco o contraforte

o quanto deixo para trás meu juízo.



O que dizes ser apenas nanquim

sabe a carne, tem cheiro de jasmim

e se fujo assim, tão desajeitado,



É que me lembro agora do perigo

das princesas que trazem sob o umbigo,

escondidinho, um dragão tatuado.

domingo, 20 de setembro de 2009

Dia de fechar negócio (Paulo Tedesco)

Desliguei o telefone. O Festugatto ia ficar puto com as novidades.

– Era o Vicente – eu disse. – O Albumir fechou o negócio dos Scaparo.

– O que tu falou?!

– Isso mesmo que tu ouviu, o Albumir fechou o negócio com os Scaparo.

– Não pode ser! O negócio era meu! Tava se arrastando há mais de um ano para fechar! É cliente antigo!

– Acho que tu vai ter que falar com o Osni. Liga para ele, antes que seja tarde.

O Festugatto começou a andar de um lado para outro, no meio da calçada.

– Me faltava essa, ter que implorar para um gerente de merda por uma venda que era minha. Minha, tá ouvindo? Eu que arranquei esse negócio do nada, eu que encontrei o cliente, eu que mostrei a mercadoria. Porra, até no aniversário da filha do cara eu fui! Aquele bando de chato ouvindo música de corno e tomando água, e eu seco por uma cerveja gelada, só querendo uma nega para eu dormir.

– Festugatto, tu sabe como são as coisas na imobiliária, a regra é a do cada um por si. No teu lugar eu já teria ligado e chorado alguma coisa. Sou teu amigo e tô querendo te ajudar, se falar com o Osni ele ao menos vai saber do que tá acontecendo. Gerente é para essas coisas.

– O Albumir nunca respeitou o besta do Osni. Não te lembra do caso do Morro da Pedreira? Quando o Osni conseguiu todo o loteamento para vender e, no fim, quem levou a comissão foi o Albumir? Chega a dar pena do Osni, é gerente mas não sabe vender e, quando se alia com alguém, ainda toma rasteira.

– Por que não liga para o Giacomin? Ele é o dono do negócio. Liga e pede uma reunião. Sei lá, inventa uma desculpa, diz que ficou sabendo de alguma negociação grande, e por isso precisa falar pessoalmente...

– E aí digo que o Albumir me passou a perna porque confiei no cliente e não assinei um pré-contrato de venda? Que a minha amante tava me aporrinhando para passar um fim-de-semana em Gramado e o cliente foi me procurar justo no plantão do sábado em que eu não estava e o Albumir tava lá e fez a parte dele? Porra, Vander, o cara é dono de meia cidade, tem amigo até no governo federal, tu acha que ele tem tempo para resolver briguinha de corretor? E se ele resolve confrontar a história com a do Albumir? Tu acha que o Albumir já não esquentou o próprio lado? Deve ter pré-contrato assinado, que pode ser falso, mas que ele tem, tem!

– Bom, Festugatto, tu é grande e sabe te virar – eu disse, enquanto procurava nos bolsos a chave do carro. – Eu tô indo para a imobiliária, mas antes vou passar no cartório para pegar umas autenticações. Aonde tu fica?

– Vou contigo. Não sei o que pensar.

Estacionei na frente do cartório e ele não me deixou desligar o motor, por causa do ar condicionado:

– Deixa de ser mão de vaca, Vander, não vou ficar derretendo nesse calor.

Quando voltei, ele dormia, havia recostado a poltrona e ressonava. Não sei como alguém consegue dormir numa hora dessas. Se um colega de imobiliária tivesse me derrubado num negócio de 200 mil, eu estaria indo matá-lo, nesse momento. Perder comissão não faz a minha cabeça, aliás, me tira o sono por dias. O próprio Festugatto, certa vez, me levantou uma venda, se fez de louco e passou a mão num cliente meu. Depois pediu desculpas, disse que tava apertado de grana, que ia ter que devolver para a concessionária a BMW, que tinha se precipitado, eu era um cara legal e não merecia. Fiquei com pena e não fiz nada.

Pus o automóvel em movimento. Ele abriu os olhos. Libertou um pigarro da garganta e retomou o sono. Nos meus primeiros tempos de imobiliária, ele emendara um peteleco dolorido na minha orelha sem nem saber o meu nome direito. Quando virei na cadeira giratória, vi um gigante; eu, sentado diante daquele homem de cento e cinqüenta quilos e quase dois metros de altura, sentia-me pequenininho. O peteleco tinha sido uma carícia, algo gentil, vindo daquele monstro.

Um dia me convidou para almoçar e disse que deveríamos fazer uma dupla. Eu era novo, tinha sangue jovem e era inteligente, unidos faríamos fortuna. A única condição que impunha é que o ajudasse nas brigas com o gerente, que abrisse o jogo dos negócios e o mantivesse informado de cada movimento do Albumir et caterva.

– Gente perigosa, Vander. Eles vendem a mãe e não entregam. Matam e vão chorar no velório. Confia em mim, vamos dar um nó nesses otários.

Nó, eles deram nele, e quase fui junto. Naquele negócio do Morro da Pedreira, quem deu início a tudo fui eu. Mas estava inseguro porque a coisa era grande demais, e dividi com ele. Em poucos dias o Osni também ficou sabendo e, quando o Albumir entrou na parada e começou a fechar a negociação, tive que ouvir do Seu Giacomin “da próxima vez que tiveres acesso à informação de coisas daquele tamanho, tens que te reportar ao teu gerente, ao Osni, e a mais ninguém. Para o teu amigo, o Festugatto, vou dar umas férias para repensar. Espero que ele aprenda a não fazer intriga nem esconder notícia que interessa à empresa, e tu, volta ao trabalho, que deve ter gente te esperando. Vamos, rapaz, te mexe”.

Se eu também tivesse ganhado férias naquela ocasião, teria quebrado, eram meus primeiros meses de corretagem e estava para perder meu carro em leilão de dívida. O engraçado é que quando a coisa apertou foi o Albumir quem apareceu para me ajudar. Ele tinha emprestado um cheque, e, no almoço do mês – todo mês o Giacomin pagava um churrasco para integrar o grupo dos corretores e comemorar as vendas –, um Albumir excitado disse que estava disposto a perdoar a minha dívida se eu entregasse ali, naquela hora e para o mundo, quanto que o Festugatto havia ganhado no negócio do condomínio Lazule, afinal, segundo ele, não era sempre que alguém ganhava comissão em quarenta apartamentos sem ter vendido nenhum: “Porra, Vander, vocês almoçam junto, vão em puteiro juntos. Entre nós, para o amigão aqui, abre o jogo, o pessoal tá curioso para saber quanto o Festu fez naquele rolo...”, e caiu numa estridente gargalhada, derramando cerveja sobre as carnes que iam saindo do fogo.

Estacionamos. O Festugatto ressonava, imóvel.

– Festu, acorda, porra. Vamos, homem, não posso esperar o dia aqui.

Ele esticou o braço e agarrou-me pela manga. Não conseguia falar, algo parecia ter travado na garganta. Estava ofegante, os olhos arregalados e o cabelo revolto.

– Faltava essa, tá passando mal? Vai morrer? Quer que te leve para o hospital?

Ele apertou minha manga cada vez mais e repentinamente soltou-a. Virou a cabeça para o lado. Não tinha pulso. Liguei o carro e puxei o freio de mão.

– Descansa um pouco, Festu, vou apresentar a proposta para a velha e depois nós te levamos para o hospital ou para o necrotério, onde tu quiser. Deixo até o carro funcionando e o rádio ligado para ti, fica ouvindo uma musiquinha, para distrair.

Subi pela escada que dava no alpendre da sede da imobiliária, um outro carro estacionava do lado oposto da rua. Eu batalhei muito por esse negócio, o Festugatto iria entender, eu não demoraria nada. Era a Dona Alberta Zandonai que chegava, e aquele era dia de fechar negócio...

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Sumô (Carlos Stein)


O locutor me anuncia no microfone, sinto calafrios; eu e o meu adversário nos erguemos e caminhamos para o tatame: se vencê-lo, serei o campeão de Sumô da cidade.

Os oponentes param frente a frente no interior do círculo traçado a giz, separados por duas faixas brancas paralelas; a um gesto do juiz, cumprimentam-se e se preparam para o combate: de cócoras, os punhos crispados se apoiando no chão. O silêncio rói pelo estádio.

Posso ouvir as línguas agitadas esquiando pelos lábios, o roçar nervoso de mil pares de mãos, todos olhares grudados em nós.

A uma ordem do juiz, como que catapultados, os dois arremetem para frente e se chocam, visando desestabilizar, derrubar, arrojar o outro para fora do círculo.

Ao mesmo tempo em que me preparo para suportar o impacto, percebo os espectadores gritando e se agitando, os pés martelando o chão, o alvoroço reverberando nas paredes, no teto, sob as arquibancadas, tudo isto percebo enquanto suporto a violenta investida do meu adversário.

— Pega, liquida, mata, empurra ele para fora do círculo — vociferam as vozes. Os lutadores rodopiam céleres, outras vezes lentos quase imóveis, voltando a girar subitamente, escapando de qualquer maneira da marca fatal do giz – colunas, as pernas; clavas, os braços; garras; os dedos; e um desejo surdo grosso antigo de supremacia.

Ele é mais alto e mais forte, seus músculos parecem cordas de aço, mas tenho de agüentar, encontrar uma brecha em sua defesa, derrubá-lo, ser campeão...

*

Subitamente uma perna é agarrada e imobilizada com firmeza (silêncio premonitório petrifica a todos), um peito se estufa de ar juntando-se a um movimento poderoso para diante, e um corpo é arremessado para fora do círculo. Dois uivos se escutam, mesclados: do vencedor, longo e tonitruante; e do perdedor, agudo e agoniado enquanto se estatela no chão. O vencedor, arfante, ainda em posição de combate, observa o perdedor, de bruços, o rosto expressando profunda decepção. A multidão sapateia, bate palmas, berra as sete notas do delírio. O perdedor se ergue, e num miúdo trotar, retorna para dentro do círculo; a um sinal do juiz, os lutadores se cumprimentam e deixam o tatame, o público acalmando-se. O perdedor escapa correndo dos holofotes e num salto se aninha nos braços da mãe que aconchega muito o pequeno corpo do menino, sacudido por forte choro.

– Perdi, perdi... – me lamento com mamãe, sem ter coragem de olhar para meu pai que deve estar muito decepcionado comigo...

quarta-feira, 29 de julho de 2009

O diário do Doutor Newmann (Guilherme Behs)

20/01
Hoje fui acometido por outro desses ataques de pânico. Comentando o assunto por alto com um colega, este me sugeriu que escrevesse tais experiências em um diário. Gostei da idéia, mas antes que pudesse fazer um comentário técnico sobre o mesmo, ele me expulsou de seu consultório sob o pretexto de que precisava terminar a consulta com seu paciente, me convidando para um café mais tarde. Um café. Mal sabe ele o mal que me faz a cafeína. No caminho de volta para o trabalho o trânsito estava terrível, lembrava uma artéria com obstrução quase total, e ainda que eu tenha controlado com algum sucesso a taquicardia que se instaurou em meu peito, decidi por deixar um bilhete para meus pacientes na porta consultório e fui para casa. Após o jantar tomei um banho quente para dilatar as veias e vim me deitar. Sinto-me melhor agora que apenas relato tais acontecimentos.


23/01
Hoje evitei utilizar meu carro, fazendo uso de ônibus para ir trabalhar. Péssima decisão! Aquela gente toda amontoada no corredor do veículo lembrava uma artéria com obstrução total. E como tossem e espirram, parecem animais! Me segurei firme e tentei desviar meus pensamentos, já que seria quase impossível passar por aquela parede humana em caso de mal súbito. Enquanto eu tentava formar em minha cabeça a imagem de macieiras ao vento, minha glote foi se estreitando, o coração acelerou e à medida que eu buscava um pouco de ar para oxigenar meus pulmões e reestabelecer meus batimentos cardíacos a um nível abaixo dos de um maratonista, terminei por inalar as hordas de bactérias que impregnavam o ar do maldito coletivo.
Ao chegar ao consultório atendi a Sra. Ana, e evoluímos menos do que eu esperava e menos ainda do que a infecção que progredia sensivelmente em meus tecidos moles superiores.
Mais tarde, já debilitado, atendi o Sr. Ricardo. A amigdalite e leves pontadas no córtex frontal não me permitiram concentrar na terapia. Que enigma este paciente! Há algumas sessões fracasso na tentativa de tirar algo dele, e hoje, não fossem as péssimas condições em que eu me encontrava, acredito que poderia ter conseguido. Ainda assim, saí com a sutil suspeita de que possa estar doente, uma vez que passou a consulta toda conversando comigo e com sua esposa, sendo que apenas eu e ele encontrávamos-nos na sala. Investigar. Sinto-me febril. Medir temperatura ao chegar em casa.


27/01
As consultas de hoje foram reveladoras. Retornando ao consultório após um rápido lanche para combater a hipoglicemia, flagrei o Sr. Ricardo mediando um debate entre um hindu e uma bispa na minha sala de espera. Agora preciso investigar o quanto do que me contou sobre sua vida é real e o quanto é doença. Na volta pra casa senti um desconforto nas costas e me veio a divertida idéia de eu sofrer do mesmo mal que o paciente, o que faria com que o Sr. Ricardo, a exemplo de sua esposa imaginária, não existisse. Apenas a título de diversão pedi a meu vizinho que telefonasse para ele, certificando-me, enquanto a conversa se desenrolava, de que ambos eram reais, exceto se os dois fossem alucinações. Investigar. Aproveitei o ensejo do telefonema e perguntei se havia tomado a medicação, o que me respondeu afirmativamente.


28/02
Hoje o dia foi duro. Descobri que dona Ana chama-se, de fato, Cláudia, e devia ter recebido alta fazem seis meses. Devo ter trocado as fichas ano passado. Aquelas malditas pedras nos rins não me deixavam fazer nada direito. O Sr. Ricardo por sua vez invadiu o consultório desesperado com o sumiço de sua esposa. A medicação está funcionando! Tentei explicar sutilmente o que se passa com ele, mas agora desconfia que sua mulher alugou um quarto em minha casa.


07/03
Hoje atendi o Sr. Cauduro. Ele está tendo enorme dificuldade para superar sua claustrofobia e relata tardes de verdadeiro pavor enquanto desempenha sua função de ascensorista. Contou, às lágrimas, que por vezes implora que alguns passageiros fiquem com ele por mais uns andares, o que está quase custando seu emprego. Desconfortável com seu relato, vesti meu casaco e fui pra casa, acometido de uma tosse terrível.
Nos últimos dias tenho vivenciado a sensação de estar sendo observado. Eu poderia jurar que ontem, enquanto preparava compressas para aliviar o estranho inchaço que se instalou nas minhas pernas, vi uma mulher passando pela sala. Resolvi começar a fazer caminhadas para aliviar as tensões e o estresse a que ando me submetendo.


09/03
Estava me sentindo bem com as caminhadas dos últimos dois dias. Hoje tive a impressão de que passei pela mesma mulher que vira em minha sala outro dia e quando fui me virar para abordá-la, torci o pé, o que me obrigou a voltar pra casa. À noite, vi nitidamente a tal mulher passando pelo quarto e me fazendo sinal de positivo. Estou apavorado, devo estar muito doente.


20/03
A maldita assombração não me deixa mais em paz. Estou até me acostumando com ela. Ontem perguntou se eu queria chá. Hoje chamei ao consultório o Sr. Ricardo. Está inconsolável. Aceita, com reservas, que sua esposa é fruto do seu distúrbio. Ainda assim, diz que a ama profundamente e ameaça parar com a medicação para tê-la de volta. Aproveitando o assunto pedi a ele que a descrevesse. Minhas suspeitas se confirmaram. Trata-se da alucinação que anda perturbando minha vida. Chama-se, segundo ele, Letícia. Certamente um caso sem precedentes. Investigar.


27/03
Cancelei todas as consultas e passei o dia estudando, mas não encontrei nos registros históricos nenhum caso de contratransferência como esse. Li livros e mais livros, busquei em artigos, pesquisei na internet e nada. Letícia anotava tudo ao meu lado e até fazia sugestões de pesquisa. Como é prestativa! Ainda que eu anseie pela cura para este estranho problema, devo confessar que é muito bom ter alguém como ela por perto.


05/04
Hoje o Sr. Ricardo permaneceu comigo por mais de uma hora. Mal sabia ele que eu podia enxergar Letícia dentro da sala. Tentei ignorá-la mas, astuta que é, passou a dar petelecos em minhas orelhas e fazer caretas e poses na mesa de centro. Como é brincalhona! Perguntei a ele sobre suas lembranças, e enquanto ele me relatava histórias que viveram juntos, o ciúme corroía minhas veias. Ainda sabendo que tal sentimento é uma completa loucura, não pude controlá-lo. Acabei por confessar que andava vendo Letícia e estava perdidamente apaixonado por ela. Furioso, o Sr. Ricardo me empurrou no chão, pegou de minha mesa uma escultura da torre Eiffel e veio em minha direção. Calafrios correram pelo meu corpo, eu sei bem do que gente doida é capaz. Antevi a peça encravada em meus miolos, mas para minha surpresa, o Sr. Ricardo ergueu o braço, atirando a escultura contra o armário de remédios. Que idiota!- pensei. Mal sabia eu que segundos depois ele iria enfiar em minha boca, à força, os mesmos compridos que eu lhe prescrevera semanas atrás. Estou arrasado!


06/04
Fazendo uma profunda reflexão decidi dar voz ao bom senso. Retirei todas esculturas da sala e novamente chamei o Sr. Ricardo ao consultório. Argumentei que a medicação é fundamental para seu tratamento. Envergonhado, ele concordou em buscar a cura, sob a exigência de que eu também me trate. Não quer que eu fique com Letícia definitivamente. Rindo, lhe respondi que já o estava fazendo, mas ele não acreditou. Por fim, combinamos de nos encontrar diariamente para que ambos tomemos a medicação um na frente do outro, podendo conferir também embaixo da língua três vezes por semana.


15/05
Ricardo é um sujeito legal, e apesar da fossa em que estamos por ter perdido Letícia, nossos almoços têm sido bem agradáveis e o tratamento é um sucesso para ambos. Hoje convidei-o para ir a um bar. O local estava cheio, o balcão parecia uma artéria com obstrução total. Aquela gente fumava, ria e tossia, impregnando o ambiente como animais! Escolhemos uma mesa mais ao fundo e a noite foi bastante tranqüila, exceto pelo ataque de pânico que tive de controlar com respiração cachorrinho e por um garçom que falava e ria o tempo todo sozinho. Corroídos pelo ciúme o levamos para o banheiro, e após uma breve luta, conseguimos enfiar-lhe os comprimidos goela abaixo.


Guilherme Behs.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Está tudo bem, querido? (Ricardo Morales)

Sábado. Morales e Vitória há algum tempo não saíam para se divertir. Estavam presos a uma mesmice que se restringia ao emprego e o retorno para a casa. Clara contava com quase cinco anos e durante o dia ficava com a avó materna. Naquela noite, a menina tinha ido dormir com a mãe de Vitória, pois Morales decidira aceitar o convite de um colega para um jantar-baile no clube de oficiais do exército. Não era o tipo de festa que lhe agradava, mas pensou que poderia ser a quebra da rotina por ambos desejada em silêncio.

A mulher, depois da faculdade de pedagogia, obteve aprovação em um concurso público e passou a trabalhar em uma escola de ensino médio. Alimentou planos para prosseguir os estudos a fim de entrar no corpo docente da universidade do Estado. O projeto se desfez nos primeiros meses após o retorno à vida acadêmica; os motivos foram o ciúme e a gravidez. Por isso, por vezes, sentia-se como castigada. A estagnação em sua vida profissional e o casamento, um tanto tedioso, ainda que o marido fosse um bom homem, a aborreciam. Daí imaginar que o tal baile serviria como uma chance de diminuir a tensão cotidiana.

Morales presumia que ele e Vitória entendiam com perfeição um ao outro, ao menos no que é possível para um casal maduro se entender. Na visão dos amigos era o modelo do casamento perfeito, as pessoas acreditavam naquilo e os dois, segundo ele pensava, gostavam de ser vistos assim. Além disso, Morales supunha que compreendia a si mesmo – o que podia fazer, até onde seria tolerado, o que lhe era proibido, quais as medidas que deveria tomar diante de determinados fatos; tudo por achar que conhecia muito bem as suas possibilidades e as suas limitações. Mais do que tudo, julgava gozar de elevado conceito na categoria de marido, cujo padrão conseguira ao longo dos anos, pois não se furtava de lavar a louça, acordar a mulher com um café na cama, presenteá-la de surpresa, só para vê-la satisfeita.

Os dois diziam se considerar um casal pleno, exceto por uma única ponta de tristeza por conta da interrupção do mestrado de Vitória, que Morales reputava como algo menor, que deveria ficar no passado. Mesmo que não quisesse admitir, às vezes, voltava a pensar no assunto, ultimamente, com maior freqüência e intensidade crescente, acompanhada por imagens horríveis, obscenas e inimagináveis onde a mulher o traía com um colega de curso.

Chegaram em casa perto da uma da manhã; cedo para quem pretendia se divertir como nunca, como dissera Vitória ao chegar no salão de baile. Corpos cansados e cabelos com o cheiro da noite. Quem nunca foi a uma festa, em um ambiente fechado, talvez estranhe, mas, de resto, é assim mesmo, é ficar poucos minutos e a roupa, os cabelos e as narinas cheiram a cigarro e a suor.

O anormal era a tensão calada que os envolvia sempre que ficavam juntos. Morales havia tomado algumas doses de uísque. Não apreciava as bebidas destiladas, mas influenciado pelas companhias agradáveis permitiu-se alguns excessos.

Sentaram-se na sala de estar. Vitória esparramou-se no sofá. Percebeu que o marido, com o passar dos anos, tornara-se um pouco mais introvertido. Recusara-se a dançar com ela, mas jantou e conversou com o amigo Sérgio e com dois militares e suas esposas com quem dividiram a mesa. Nada além disso. No fundo, Vitória sentiu-se um tanto desprezada, pois ele não se importou que ela dançasse duas músicas com o Sérgio, cuja acompanhante exibia uma barriga de sete meses. O fato lhe trouxe alguma frustração, pois gostaria de ter desfrutado da festa junto com Morales. Além disso, subitamente, ele anunciou que queria ir embora.

Vitória estava distraída entre as recordações recentes quando uma pergunta lhe trouxe para o presente.

“Gostou da festa?”

“O que é que houve? De repente, tu resolveu ir embora?”

“Não foi nada. Cansaço, só isso.”

“A comida estava quente e a bebida boa, não é?”

“Mais ou menos, mas a música... Desculpe, mas não deu pra dançar, faltava alguma coisa.”

“E o Sérgio, coitado. Ele não dança nada.”

Morales fez silêncio. Recuou, em segundos, cinco anos. Uma prática cada dia mais comum e dolorida. Relembrava a época em que Vitória estudava; o curso noturno, as horas em casa aguardando o retorno da esposa, o dia em que olhou entre as persianas do apartamento e a viu saindo de um carro vermelho. “Carona de um colega”, ela disse.

De olhos fechados, tentou recriar os fatos, reconstruir a história de outra forma, imaginando a si mesmo indo buscar a mulher na porta da faculdade, emprestando o carro e lhe dando dinheiro para que colocasse o automóvel em um estacionamento pago.

“Tome querida, não vá se atrasar... Ah, não, não peça carona pra esse cara... Ora, se não gosta de dirigir à noite, não tem problema, vou te buscar!”

Nesse momento, o relógio parecia paralisado. Morales poderia ficar uma hora remoendo e recriando imagens sem perceber. Ele sabia que aquilo não era bom, nem saudável, porém, não conseguia livrar-se do exercício infernal, das seqüências em reprise. Era verdade que nunca tivera a certeza inequívoca, definitiva e imutável do que ocorrera. Sabia que Vitória de uma hora para a outra havia desistido de prosseguir com os estudos. Sim, Morales reclamou das caronas. Mesmo que lhe fosse conveniente deixar de sair tarde para buscar Vitória, não podia concordar com aquilo. Um mal-estar havia se instalado naquele tempo. Morales não acreditava que um homem pudesse ser amigo de sua mulher. Ela era grande, como ele gostava. Seios firmes. Pernas rijas. Olhos castanhos. Cabelos longos e bem cuidados. Sempre vaidosa com as roupas e com o corpo. Não estava enganado ao expor aqueles temores para Vitória. Essa era a sua convicção. É claro que jamais havia pretendido prejudicar a esposa em seus projetos, não a proibira de fazer o que quisesse, mas não admitia ser iludido.

O certo era que ao final ainda persistia a interrogação, a dúvida e a insegurança que andava surda entre os dois. Porém, sem qualquer aviso, em meio ao diálogo despretensioso durante o começo de madrugada, tudo aflorou como se aquela noite, perdida no passado, estivesse suspensa no tempo.

“Aquele teu colega... Ele dança bem?”

“Quem? O Fred? O do curso?”

“Tu ainda lembras?”

“Nem penso nele.”

“Ele dança?”

“Como posso saber? Nunca dancei com ele.”

“Mas tu saiu com ele!”

“Não... Olha, nós já conversamos sobre isso.”

“Eu preciso... Por favor.”

“O quê? Não aconteceu nada. Nada demais.”

“Como nada? Ele tentou. Isso tu tens que admitir. Já faz tempo, eu sei. Mas, somos adultos, pode falar”.

“Não. Vamos deixar como está. Não há nada pra contar, querido.”

“Vitória, meu bem, nós não precisamos de segredos. Eu nunca escondi nada, não é? Me conta, por favor. Nós nem vamos ver mais aquele cara.”

A mulher ficou um instante em silêncio. Para Morales foi a eternidade. Ele fixou o olhar nela, depois passeou pelo sofá, contou os quadradinhos no desenho do tapete e refez o caminho de volta. Quadradinhos, tapete, sofá, rosto da mulher.

“Bem... Tá certo. Tu não vais ficar brabo? Já faz muito tempo...”

“Tudo bem, afinal, sou eu quem quer saber.”

Morales procurava manter-se calmo, mas em seu íntimo crescia um sentimento sufocado. As malditas imagens em velocidades surpreendentes se reproduziam uma após a outra. Vitória sorrindo, o carro vermelho, Fred, o casal se beijando, Fred dirigindo com a mão sobre a perna da mulher, os dois rindo dele, Morales espreitando atrás da persiana, Clara de vestido amarelo correndo em uma praça.

“Ele me beijou... Nós nos beijamos... Só isso. Nada mais.”

Ele permaneceu quieto por alguns momentos. Precisava digerir a notícia, processá-la, absorvê-la e controlar a luta entre o instinto de preservação da auto-estima e o desejo de saber o que ocorreu.

“O que mais tu tens pra me contar?”

“Não aconteceu mais nada, já disse. Não fomos além disso. Só um beijo e nada mais.”

“Só isso? Tu achas pouco, então?”

“Calma, amor, nem penso mais nele. Não foi nada sério. Eu errei, eu sei.”

Vitória reviu a noite em que retornou para casa de carona com o colega. Os olhos e o tom de voz de Morales eram os mesmos. Ela pressentiu que viveria a mesma cena e as mesmas indagações que agora ecoavam em sua cabeça. “Quem é aquele cara, Vitória? Onde vocês andaram? Sabes que horas são?” A repetição da antiga trama. Os punhos fechados do marido, o chute na cadeira da sala que voou contra a porta da rua, a voz quase inaudível.

“Meu Deus, o que mais aconteceu? Eu acho que sou um trouxa, isso sim.”

“Não faz assim, Morales. Foi só um beijo.”

“Pra mim, já é o suficiente... Tu não tens noção? Um beijo. NEM AS PUTAS BEIJAM. UM BEIJO É MAIS ÍNTIMO DO QUE UMA TREPADA.”

Vitória não sabia o que fazer. O tempo parecia desandar. Tudo aquilo deveria ter acabado há muito tempo. Ela procurou apoiar-se na razão. Levantou-se do sofá, tentou abraçar Morales, demonstrar que tudo estava bem. Ela tocou os seus lábios nos dele, que ficaram imóveis.

Não havia mais controle; Morales não podia parar. O que antes era uma suspeita, uma micro-certeza, tornava-se real. A mulher o traíra. A vergonha de ser um homem enganado tornava ridícula a história de casal feliz propagandeada entre os amigos. Talvez isso fosse até motivo de piada, talvez todos soubessem do caso. Ele ruminava em silêncio se agira corretamente. Reprovava a si mesmo por não ter interferido logo quando suspeitou. Deveria ter ido falar com ele, esperá-la na calçada, ameaçá-lo, se necessário. Mas não sabia até onde poderia ir. Ninguém desejaria estar em tal situação. Quem, nessas circunstâncias, saberia o que fazer? Logo Vitória, tão doce, tão bela e inteligente. Não queria acreditar. Um beijo, para ele, era muito mais importante que o sexo. Era pessoal, lascivo e, ao mesmo tempo, terno.

Morales sentia como se tivesse levado uma bofetada. Com um empurrão afastou Vitória.

“Ele colocou a língua na tua boca.”

“Por favor, chega.”

“Já imagino o que aconteceu depois...”

Morales apanhou as chaves e dirigiu-se à porta.

“Aonde tu vais?”

“Não interessa!”

Ele entrou no carro e rodou sem rumo. A bebida, o movimento, a dor de cabeça e a confirmação de Vitória o fizeram vomitar. Conseguiu estacionar e colocar a cabeça para fora. Agora, a realidade era material, definida. A suspeita soterrada, o esquecimento fingido pelo regular exercício de retirar da memória havia sido desvelado. O choque com a verdade; o tijolo atirado contra a vidraça.

Morales seguiu em frente, andou por vários lugares. Passou pela Farrapos e se viu entrando em uma das casas de shows da avenida. Pegaria uma qualquer para fazer a sua vulgar vingança. Desistiu, pois não teria como deletar a história daquele jeito. Terminou na Lima e Silva. Uma mesinha de ferro na calçada, público variado, jovens, bêbados, pessoas comuns e, também, gente estranha. Todos conversavam, sorriam sem preocupações, sem amores ou infidelidades.

Pediu uma cerveja, que permaneceu intacta até que a espuma quase sumisse e o líquido ficasse morno. O dia já ameaçava clarear quando Morales fez um sinal para o garçom. Num minuto, trouxe-lhe um copo com gelo, limão e uma bebida mais forte que ele sorveu em pequenos goles para alcançar a coragem que sabia não possuir. Quem o olhasse à distância não teria ideia do que se passava. Ele parecia tranquilo. Absolutamente sereno.

Morales não podia esperar mais. Pediu a conta, largou duas notas sobre a mesa e levantou-se. Enquanto andava quase tropeçou numa pessoa deitada sob uma marquise. A manhã nascia gelada e dois cachorros estavam encostados ao homem coberto de jornais, entre sacos, entulho e garrafas de plástico. Poderia ficar ali, cair em qualquer canto. Quase desejou não ser mais lembrado, esquecer-se de quem era e de como estava a sua vida.

Ele precisava reunir forças para voltar para casa. Pensou na filha, Clara, que possuía as feições da mãe. Era linda e ficaria mais bonita quando crescesse. Aos domingos, gostava de apanhar o jornal e deitar-se com o pai. Pedia que Morales lesse o Caderno de Televisão, as tiras dos quadrinhos. A menina viera ao mundo depois daquela pequena tragédia conjugal. Ela, na certa, ignorava os fatos; tão pequena, tão inocente e sem culpa. Sim, alguém tinha de ser o culpado, alguém tinha que ser o responsável por aquilo.

Domingo. O sol já ia alto. Morales estacionou o carro e entrou no prédio. Abriu a porta com cuidado. O jornal havia sido colocado sob o tapete. Foi até o quarto e viu que a porta estava entreaberta. Vitória, deitada de lado, parecia dormir. Ele desejava um banho, um pouco de privacidade e alguma coragem. Tirou a roupa e abriu o chuveiro, regulando para que ficasse bem quente. Os vapores e o calor aconchegante do jato d’água na nuca fizeram com que relaxasse por um momento, mas a imagem projetada ainda era a mesma: Vitória murmurando abraçada a um outro homem sem rosto. Mais! Mais! Mais! Ele ouvia mentalmente quando abriu os olhos e pensou como as coisas haviam saído dos trilhos; sabia que estava errado e que, de alguma forma, tinha falhado, que não compreendera a mulher. Talvez ele não tivesse agido corretamente e, talvez, fosse ele o culpado, mas agora não havia mais nada que pudesse modificar. De repente, ouviu a mulher do lado de fora.

“Morales, tudo bem?”

“Que é?”

“Está tudo bem, querido?”

“Já vou.”

Nenhuma outra palavra foi dita. Depois de secar o corpo, Morales saiu do banheiro, foi para o quarto e viu a mulher sob os lençóis. Rapidamente, deitou-se para se encostar em Vitória. Ela voltou-se para ele e com suavidade passou a mão em seu rosto tenso. Ele tentou resistir, manteve-se imóvel, contudo não a afastou. Esperou quieto e ela, sem dizer uma palavra, acomodou-se sobre seu corpo.

Morales não pôde deixar de lembrar do outro. Em como teria acontecido, naqueles encontros que povoavam a sua imaginação e, estranhamente, um desejo insano se instalou. Vitória deu-lhe um beijo ardente, cheio de paixão e piedade, enquanto comandava as ações e os quadris. Quando não pode mais suportar, abraçou-a e quase juntos tiveram um orgasmo.

A esposa, em seguida, aninhou-se em seu ombro. Morales lentamente permitiu que os pensamentos fossem se apagando. Afrouxou os músculos doloridos até que adormeceu para sonhar que voava de braços abertos sobre a cidade. Ele via o movimento nas ruas, as luzes das casas e dos edifícios, enxergava os rostos conhecidos, as pessoas andando nas calçadas, e sabia que ninguém poderia vê-lo ou tocá-lo. Sentia-se leve.