quinta-feira, 14 de abril de 2011

Noturno (Gecy Belmonte)

O vento bate com força nas árvores em frente a varanda do quarto. Nuvens escuras se superpõem rápidas, prenunciando tempestade. Nenhuma estrela no céu. Pela janela entram riscas de luz vindas do poste que ilumina a rua. Ele fecha os olhos com força. Precisa dormir cedo e parar de fazer manha, esta é a determinação dos pais.

Ao lado da cama pode enxergá-lo no escuro, os olhos esbugalhados brilham e o bafo fétido dele está bem próximo. Cobre a cabeça com o edredom, o aperto no peito volta e a respiração escorrega fina pela traquéia até chegar à boca e ao nariz, sente o suor gelado molhar as mãos e os pés. Precisa resistir, inspirar e expirar bem devagar (isso ajuda), não fazer barulho, ele deve acreditar que está dormindo. Ou morto, assim o deixará em paz.

Mas como fazer para ficar ali, com o medo crescendo, crescendo. Sabe que não dará conta por muito tempo. Quer cumprir a ordem dos pais para não mudar para o quarto deles no meio da noite, ir atrás da mãe, como passou a fazer nos últimos meses. Mas o pavor que sente ali, sozinho, no escuro, é maior que o temor do castigo no dia seguinte. Retira as cobertas, coloca as pernas para fora, primeiro uma, depois a outra. Levanta-se, tem os passos abafados pelo carpete, assim não há risco de despertá-lo. Quer a mãe, só ela consegue acalmá-lo quando o pânico noturno chega.

Alcança a porta, gira o trinco com cuidado e saí. Deixa o inimigo lá, fechado, com os brinquedos, os livros que adora e as figuras do Super Homem que ornamentam as paredes azuis do quarto. Pode ser que, quando despertar, ele se distraia e não vá atrás dele. Corre descalço até o quarto dos pais, ao fundo do corredor, e abre a porta de mansinho. Não há ninguém.

Ouve vozes que vêm do escritório, no andar de cima da casa. Dirige-se para lá, sobe os degraus de dois em dois. A porta está fechada. Escuta a voz alterada da mãe e do pai, e para. Eles gritam um com o outro. O barulho da chuva que começou a cair o impede de ouvir o que dizem. Assusta-se, isso nunca aconteceu antes. Enquanto está ali, criando coragem para entrar, percebe um ruído vindo da parte debaixo. É ele, deve ter acordado e está à sua procura, é capaz de sentir seu arrastar paquidérmico rumo às escadas.

Quer a mãe, precisa dela e não ficará ali, parado, no piso frio. Empurra a porta, os pais viram-se surpresos, cessam a discussão, mas a fratura está exposta, sem sangue, só o osso partido ao meio. Corre para o colo da mãe e percebe que ela chora. Não um choro comum, mas um tipo mais fundo, como um soluço para dentro, lágrimas escorrendo pela face. O pai, em pé, do outro lado da mesa, olha os dois sem saber o que fazer, mas também está triste, tem os ombros caídos, parece mais velho sob a luz branca do escritório.

A mãe o abraça com força, beija seu rosto, seus cabelos. Está tremendo, tem uma certa aflição nos dedos. Por um momento ele aquiesce no enrosco morno e seguro. Pode escutar a batida dos corações, os ritmos de ambos se fundem, mãe e filho são um só, fitas de dupla face. Entende que algo muito grave está acontecendo, quer perguntar mas falta coragem (se não souber pode ser que o não-dito não se realize e que a possibilidade dessa coisa ruim se estanque). Agarra-se ainda mais ao pescoço da mãe, não consegue chorar ou emitir som, o ar começa a faltar, pensa que vai morrer (mas crianças não morrem, viram estrelas). Quer sair dali, quer levar o pai e a mãe juntos, os três no aconchego da grande cama de casal, para onde está acostumado a fugir, mesmo correndo o risco de ser levado de volta para o seu quarto no meio da noite ou de ficar de castigo no dia seguinte.

O pai, por fim, começa a dizer alguma coisa, mas ele não escuta. No canto do escritório, perto da estante cheia de livros e documentos, vê a mala grande que ele usa sempre para viajar. Está pronta. Do outro lado da porta, ainda fechada, sabe que o inimigo o alcançou, resfolegante pelo esforço de subir a escada. A chuva e o vento tornam-se mais fortes, ouve o estrondo de um trovão e o de um transformador que se rompe, bem perto. A luz se apaga. Sem velas ou lanterna, os três ficam ali, mudos, no escuro. O silêncio faz a noite tornar-se mais lúgubre, medos guardados afloram, sente que todos os monstros maus estão presentes na pequena sala.

Agarra-se mais ao pescoço da mãe, quer retê-la para sempre. O pai diz para se acalmar, garante que não há porque ter medo, enquanto usa o celular para jogar um pouco de claridade sobre a mesa, na direção deles. Em minutos a luz retorna. O pai diz que está na hora de ir, pega a mala, as chaves do carro, o paletó, dá-lhe um beijo na cabeça e parte, prometendo sempre vir vê-lo. Mal olha para a mãe, cujo rosto se mantém paralisado, como se as lágrimas que rolam viessem de outra face que não a sua. Sabe que o pai não voltará, embora não entenda bem o que está se passando. Não sabe o que fazer, não quer que o pai vá embora, mas, ao mesmo tempo, fica contente, não será mais castigado, a mãe, agora, é somente sua.