terça-feira, 27 de março de 2012

Mesa de bar (Nanda Barreto)

Eu teria dito que largaria tudo, que mal me importavam aquelas pessoas todas conversando amenidades em volta da gente. Teria levantado e te olhado estridente enquanto todas as outras bocas calavam. Devia ter aproveitado o momento de sigilo absoluto, quando até o tilintar dos copos guardou silêncio pra te receber. Eu deveria ter ido até tua mesa onde você sorria aquele riso suave de já quem bebeu doses pares. Aquele riso inebriado, de boca escancarada, libertador das vontades mais dissimuladas.

Teus dentes no meu peito, eu ficava imaginando, enquanto te olhava pateta, a dois metros de ti. Devia sinceramente ter me atirado no teu colo logo quando tu chegastes. Ter te feito entender que eras meu. Mas eu já sabia. Sabia que a gente se amaria loucamente, que seríamos líquido noites inteiras. E sempre acordaríamos secos um do outro. Sempre querendo mais. Sabia de ti na minha cama. Das minhas roupas no teu armário. Dos meus cds confundidos nos teus. Dos livros que ninguém mais saberia de quem eram.

Eu intuía teu cheiro. Horas a fio numa atmosfera que só nos dois poderíamos compreender. Poesia, marxismo, lirismo, budismo. Psico isto e aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou grafia. E haveria tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de seio e pescoço. Sabia que tu terias ciúmes do meu ex-namorado. Que perguntaria se ele me amava tão bem quanto tu. Depois disso, brigaríamos e eu te taxaria machista, insensível, calhorda. Sabia que em seguida irias embora e levarias alguns cds meus ou teus. Sabia que voltarias. E que irias e que voltarias muitas e muitas vezes.

Vozes intermediárias anunciavam a noite em que eu te ligaria dizendo que não, iria me atrasar, não poderia te acompanhar naquele jantar na casa do teu amigo muitíssimo enfadonho de longa data. E te pouparia do adjetivo enfadonho por nada a mais do que esse cinismo hipereducado que a gente adquire para economizar o outro dos nossos pensamentos mais limpos. E, antes de desligar o telefone, te perguntaria se estava tudo bem. E tu dirias que sim, estava tudo certo. Uma resposta cansada e aborrecida, como se tudo o que esperasse de mim fosse a decepção. Como se eu te prorrogasse a vida.

Antevia o momento demasiado em que passado e futuro se tornariam carregados demais e esqueceríamos, eu e tu, de gozar o presente. Nos tornaríamos esquivos e evasivos como toda a gente. E criaríamos a defesa. Emergiriam as culpas. Supus as amarras. E nossa ânsia paralela de desviar. Fugir das cortesias sem apreço. Dos abraços sem calor. Dos talões e cartões. Do crédito. Do débito. Das contas. E tantas outras correntes.

Já atinava minha insegurança diante do teu poder de fazer interesse nos outros. Teu amor inseduzível. E eu sofreria tanto. Choraria no teu peito. E seria menina de novo aos domingos no parque contigo. Previa os prazeres. As delícias a dois. A velha cegueira da verdade única. Sabia exatamente o que de haveria de vir. Em nome da razão, mesmo sem perceber, tiraríamos proveito da fraqueza um do outro. E enumeraríamos cada um dos nossos defeitos, didaticamente.

Segunda-feira, a gente ali no bar. Dois metros ou cinco segundos de ti. Distante uma palavra do nosso futuro amor. Prestes ao que fosse. Eu realmente teria dito que mal me importava aquela gente toda, teria me lançado nas tuas mãos vazias de mim. Eu teria dito que largaria tudo. Mas quis nos livrar do perigo. Achei melhor não. Longe de tudo, pedi mais uma dose sem gelo, caprichei no katchup da batata frita e fiquei lendo teus lábios, enquanto percorria meus medos.