quarta-feira, 17 de agosto de 2011

O stripper (Mariano Mendonça Neto)


O meu negócio é tirar a roupa. Ficar de sunga e escancarar os dentes para as coroas. Tudo é feito de maneira profissional. Gilete para depilar e academia todo o dia. Não gosto da depilação, mas é o meu trabalho. Dostoievski entenderia. Leio sempre o mestre russo. Entre uma e outra apresentação avanço nas páginas de seus romances. Reconheço que minha classe é de iletrados. Homens toscos. Embrutecidos pela musculatura avantajada. Dependemos desta estética apolínea. Trabalhamos com o olhar, com o desejo, com o imaginário das pessoas. Sou free lancer. Faço shows em casas noturnas e atendo na casa das clientes. Antes das apresentações, um banquinho de cozinha me basta. Fico ali, vestido de comodoro, de índio apache, de bombeiro, lendo os romances, esperando para entrar em cena. Minha vida profissional de stripper começou por acaso. Trabalhava numa destas livrarias de shopping. Nos intervalos fumava um cigarrinho, lia um livro. Daiane, minha colega, fazia o mesmo. “Olha, Paulo. Presta atenção. Os caras escreveram demais. É muita ideia, muita sacanagem. Não dá para ler tudo de bom que foi escrito. Escolhe só o filé mignon. A carne de pescoço, o Sidney Sheldon deixa no balaio.” Assim foi feito. Às vezes eu pisava na bola. Daiane me encontrava com um Paulo Coelho, com um Dan Brown. Aí eu tinha que ouvir. “Porra, eu já falei. Lê os russos, os franceses, os caras que cagam grosso.” Daiane havia conhecido um professor universitário que a iniciara na grande literatura. Se o professor comia? Eu não comi. Mas graças a Daiane meu vocabulário aumentou. E foi também graças a ela que pude desenvolver minha arte. Estava no almoxarifado, coçando o saco, lendo “Crime e Castigo“ quando Daiane me perguntou: “Paulo, você vai quebrar um galho para mim. Tirando esse monte de cabelo do seu peito, você serve. Tem o tipo apropriado para o serviço.” Nesta época, eu estava matando cachorro a grito. Recebia o salário da livraria que quase não pagava o aluguel da pensão. Daiane fazia bicos de vez em quando. Trabalhava de garçonete ou recepcionista em feiras agrícolas. Sabia o caminho das pedras. “Olhe, Paulo, eu vou te dar um endereço. Você vai fazer uma substituição. O cara adoeceu, pegou uma pereba no tico. Estão precisando de alguém com o teu porte. Alguém com músculos e alguma iniciativa. Vai lá que acaba entrando um trocado.” Imaginei logo o tapete vermelho estendido, pessoas agitadas na fila e eu duro que nem uma estaca, fazendo a segurança de um bar. Mas a encrenca era maior. “Pensa bem, Paulo. É só tirar a roupa e fazer cara de gostoso. Um bando de mulheres insaciáveis querendo se divertir. É só isso.” Eu quis ponderar sem muita convicção. “Eu sou um pouco tímido. Não sei se levo jeito para a coisa.” “Paulo, é pegar ou largar. Tem uma grana boa.” Peguei o endereço e li: “Rua das Acácias 98. Falar com o Baixinho.” Perguntei ainda para Daiane se eu tinha que levar alguma roupa especial, vestir algo mais adequado. “Não, Paulo. A jogada é ficar nu. Entendeu? Nu, porra!” Terminado o expediente, peguei o ônibus e me acomodei no fundo. Fiquei observando as pessoas. Seus silêncios, suas dissimulações. O velho russo gostaria de sentar a bunda no plástico, numa temperatura de 40 graus e eviscerar a alma dos homens. Dostoievski era batuta. Sua narrativa caótica, seus personagens desesperados, sua religiosidade inalcançável eram também ferramentas de um stripper. Uma espécie de stripper da alma humana. Um revelador, um exibicionista do melhor e do pior do espírito humano. Mas, ali, naquele momento, era o suor bruto que se revelava. E um ou outro espertinho dando uma coxeada nas balconistas e estudantes que voltavam para casa. Consegui ler mais algumas páginas do romance antes de descer na parada. Fui caminhando tranquilo pela rua. Eu conseguira dar uma lavada nas axilas e renovara o desodorante. Para enganar a torcida. Estava anoitecendo e não foi difícil encontrar o endereço que Daiane me dera. Uma luz forte iluminava o painel onde se lia “Lady’s Club”. No guichê, uma velhinha de cabelo azul tricotava algo. Levantou os olhos, que também eram azuis, e perguntou: “Trouxeram a cidra? Não vão me quebrar as garrafas. Eu esperava vocês mais cedo. É pelo corredor ao lado. Cuidado com o cachorro!” ”Sou o substituto. Foi a Daiane quem me mandou.” “Baixinho, o rapaz que veio substituir o Marcelão chegou.” Logo a porta se abriu e um sujeito que parecia um halterofilista em miniatura surgiu na minha frente. “Está atrasado. Entra logo que eu tenho que explicar o nosso esquema.” Entrei no salão e o Baixinho me puxou pela manga. Era um bar com mesas e cadeiras. Estavam dispostas ao redor de uma passarela que partia de um pequeno palco ao fundo. Caixas de som estavam estrategicamente localizadas pelo salão. Uma escadinha dava acesso à passarela. Baixinho subiu com dificuldade, mas subiu. “Presta atenção, pois não tem mistério. Hoje a função é para despedida de solteira. São meninas de família, pessoas educadas, distintas. Vai tirando a roupa devagarzinho, com manha, vaselinando no olhar. Dá uma requebradinha e tira uma perna da calça, dá outra requebradinha, tira a outra. Botão de camisa é mais um detalhe. Ajoelha e oferece o botãozinho para as clientes abrirem. Porra, esse teu peito tem cabelo prá caralho. Parece um urso!” Cheguei a me examinar. Estava lendo um romance forte, denso. Nunca se sabe. Mas estava tudo igual.

Passamos pelo palco e entramos naquilo que poderia ser chamado de camarim. Três sujeitos conversavam animadamente. Baixinho fez as apresentações e continuou o seu curso rápido para stripper. “Tocou a música e já entra dançando. Não raciocina. Entra rebolando, sem afobação. Vai se soltando aos poucos, sem pressa. Vocês entram juntos na primeira música, depois vem o número solo. Aí tira tudo, cueca, sunga, lente de contato, o que for. Ô Luizão, alcança aí a roupa de gladiador romano.” O Luizão era um cara alto, forte, com uma barba que lembrava o Falcon. Abriu o armário e puxou lá de dentro um cabide com umas tiras de couro. Era o equipamento de gladiador. Baixinho pegou a fantasia e a avaliou por instantes. “Vai funcionar. Essa aqui é para o primeiro número. O smoking, ali na cadeira, é para a apresentação solo. Vamos arrebentar essa noite.” Peguei o cabide e comecei a me fantasiar de stripper. Os outros dois caras vieram me oferecer um gole de cachaça. Partilhavam uma garrafa que já estava pela metade “Caralho, ô meu. Repara nesse peito, Gledson. O cara é um porco-espinho!” Gledson fez uma cara de espanto. Pegou um frasco que estava no armário e me entregou. “Coloca essa loção na pele, no corpo todo. É loção de amêndoas. É para dar um brilho debaixo da luz. Não vai me gastar todo o frasco.” Logo percebi o movimento frenético do salão. Nossas freguesas começavam a chegar. O ruído era intenso. Foi Luizão quem tomou a iniciativa. Pediu para que déssemos as mãos em círculo. Uma pequena oração foi feita, quase que sussurrada. Havia entrega e concentração naquela modesta homília. Instantes depois já estaríamos nus, plenamente nus. A corrente se fortalecera. Estávamos prontos. O Baixinho voltou e fez a sua última recomendação. “Olha, o troço não tem segredo. Faz o que eles fizerem. Vai imitando o Luizão. Olha para o público e ri, ri muito. Na hora do smoking, abusa um pouquinho mais. Provoca que vai abrir e não abre. Prá arriar as calças também. Não entrega o ouro de cara. Vai arriando com classe, com estilo.” Foi então que comecei a refletir um pouco. Meu desejo era entrar logo naquele salão, tirar a roupa e sair correndo com a grana no bolso. Sem muita frescura. Apenas entrar e ficar nu. Mas logo eu descobriria a arte de tantalizar. Soltar a isca com paciência. Cultivar o olhar alheio através de um encantamento sinuoso, uma hipnose lasciva que promete, mas não realiza. É duro quando se é jovem. Há tanto para se aprender. E logo eu aprenderia, digamos, na carne. Começamos a ouvir a voz do Baixinho no sistema de som. Fazia as primeiras apresentações e garantia uma noite inesquecível. Uma despedida de solteira sem voltas. As freguesas gritavam, batiam os pés, assobiavam com força. Eu sabia. A partir dali, não tinha volta. Eu estava enrascado. O sistema de som largou a primeira música. Entramos os quatro no palquinho balançando as bundas no ritmo acelerado. Entrei por último e acabei ficando na ponta direita, jogando recuado. Fui seguindo a rapaziada, embromando ali com as tiras de couro. De vez em quando, um de nós avançava na passarela e rebolava um pouco. Tirava o traje de combate e ajoelhava no milho. Ficava ali fazendo biquinho para as freguesas. Um ou outro trocado era enfiado na sunga. Peguei logo o jeito. Avancei decidido pela passarela e encarnei o gladiador romano. Era comigo mesmo. Já fui tirando o saiote, o dólmã de couro e se tivesse lentes de contato tirava também. As freguesas deliravam com a minha performance. Comecei a inventar novos passos de dança. Ampliava o movimento dos quadris e oferecia o sexo com impudica irresponsabilidade. Os gritos aumentavam a cada passo, a cada provocação que eu fazia. Consegui ouvir o Baixinho no microfone. ”Pode tocar, mas não arranca pedaço! Esse é o fabuloso elenco do Lady`s Club! Artistas renomados, com experiência internacional.“ Fomos para o camarim e logo vesti o smoking. Na minha vez, já entrei esparramando as pernas, gingando com malícia e estendendo as mãos para as clientes. Baixinho estava na plateia, ao lado da garota que se despedia dos bons tempos. O mestre de cerimônia usou o microfone de novo. Pedia que eu descesse até eles. Queriam minha presença ali, bem pertinho. Desci pela escadinha e me aproximei da garota. Fui fazendo um gingado malemolente, bem debochado. Cheguei perto e lasquei um beijo na boca. Um beijo bem molhado. E ainda ofereci os botões da camisa para que fossem violados. Logo tinha mais gente em volta metendo a mão. Queriam mesmo era arrancar um naco do bacana aqui. Não tive dúvida. Puxei a garota pela mão e a levei para a passarela. Lá em cima realizei os últimos movimentos de minha apresentação. Fiquei dançando nu, me esparramando em volta dela. Os aplausos vieram em seguida. Curvei-me ao estilo dos atores de teatro tal qual um menestrel desnudo. Desejei boa sorte à futura noiva e retirei-me de cena como um experiente stripper. Na coxia, Luizão esperava-me com um robe de chambre e uma taça de cidra. “Fez tudo certo, campeão. Já pode fazer parte da trupe.” Peguei a taça e fui para o camarim. Meus colegas se revezavam agora nas apresentações. Trocavam de roupa e voltavam rápido para o palco. Sentei numa poltrona toda esburacada por pontas de cigarros. Fui relaxando até que acabei tirando uma pestana. De repente acordei e vi Baixinho diante de mim. “Foi bom. Se quer continuar, vai ter que usar um Presto Barba nesse peito. Vamos lá, rapaz. Todo mundo já foi embora.” Puxei um cigarrinho e fiquei ali fumando, pensando na vida. A noite fora lucrativa e isso me bastava. A velhota do cabelo azul apareceu de repente. Estávamos sozinhos no teatro. “É uma pouca vergonha! Com o troço todo para fora! Essa juventude não respeita mais nada! Veste, veste logo a calça e vai embora.” Vesti minha roupa e deixei a velhota cacarejando no meio das fantasias. A noite estava quente e soprava uma leve brisa. Eu tinha recebido o suficiente para pegar um táxi. Levantei o dedão e o carro estacionou na calçada. Sentei ao lado do motorista e dei as coordenadas. O taxista queria conversa. Falava das manchas solares, dos mistérios da superfície de Marte, da teoria do caos. “E aí os caras dizem que até um prego pode mudar toda a tua vida e...” Fez uma pausa para frear diante do semáforo. Aproveitei e perguntei: “Você quer ouvir uma boa história?”. O taxista silenciou. “Bom, é sobre um cara que mata uma velhota. O cara é bom, sabe das coisas. Mas ocorre um lance que ele não tinha previsto. O nome dele é Raskolnikof e ele não tinha medo.”