domingo, 4 de julho de 2010

Desabafo contra velhos decrépitos (Luara Pinto Minuzzi)

Vocês estão enxergando aquele velho decrépito sentado na poltrona feita especialmente para combinar com a imagem do dono (o que quer dizer, poltrona decrépita)? É claro que não estão enxergando. Como eu sou boba. Vocês não podem ver nada, apenas imaginar a partir das palavras que eu escrevo. Ou seja, se não confiarem em mim, o problema não é meu, já que os caros leitores dependem da narradora para ficar a par dos fatos, e não o contrário. Enfim, vocês não enxergam, mas acreditem quando eu digo que um velho decrépito está sentado em uma poltrona ainda mais decrépita. É a pura verdade. E o tal de velho decrépito finalmente dormiu após vários dias de vigília.

Já contei quem é o velho decrépito? Não? Como eu sou mal-educada. Não me apresento, nem apresento meu marido. Pois é, esse velho decrépito é meu marido. Meu marido há tantos milênios que eu já até perdi as contas. Parei o cálculo nos 47 anos, 11 meses, 25 dias e 19 horas do nosso casamento e da noite na qual o velho decrépito (que, na época, não era velho, mas já mostrava indícios da decrepitude potencializada com a idade) tirou minha virgindade e minhas últimas alegrias.

Vocês estão notando como ele baba e ronca enquanto dorme? É claro que não. Mas se essa história fosse um filme, aí sim, tudo seria diferente. Os leitores (que se transformariam em espectadores) poderiam observar as pantufas ocres puídas e o chambre que já conheceu melhores dias em cores – pois eu não admitiria nada menos do que um filme em cores. Mas já sou uma senhora com certa idade e, quando se chega a essa certa idade, não é mais possível aprender as modernidades malucas dos jovens.

Bom, como eu ia dizendo, o velho decrépito afirmou sentir muita angústia pelos livros que não leria. Então, botou-se a ler e ler. Mas a insanidade dele atingiu o auge quando, entre lágrimas, confessou não ser capaz de dormir enquanto não terminasse uma obra. “Imagina morrer e deixar um livro pela metade”, o decrépito me disse. Então, após alguns dias sem sono, parando apenas para comer e ir ao banheiro (tudo com a minha ajuda, aliás, ajuda é eufemismo, pois só faltou que eu comesse e cagasse por ele, precisava fazer tudo, o velho decrépito não presta para mais nada), ele chegou à última página do tal de volume. E dormiu.

Sempre ocupadíssimo com essa maldita literatura, o velho decrépito – o que me deixava doida, não, o mais correto seria escrever que ainda me deixa doida. Quanto tempo vocês imaginam que sobrava para mim e para as crianças (sete crianças, por sinal, porque tempo para fazer crianças o velho decrépito tinha suficiente)? Não precisam responder, pois se trata de uma questão retórica e eu também não ouviria as respostas, já que vocês lerão esses papéis em um tempo e espaço diferentes dos que eu escrevo. É, espaço até, por uma enorme coincidência, poderia ser o mesmo (se não se considerasse a palhaçada que o velho decrépito costumava dizer de uma pessoa nunca poder entrar no mesmo rio duas vezes, mas isso é coisa de gente vagabunda e desocupada com miolo mole). Porém, tempo, não. Tempo definitivamente não seria o mesmo. Mas divagações assim não interessam, desculpem essa senhora que já viveu demais e precisa desabafar. Eu também não responderei a questão acima formulada. Não é necessário. Não, para ser bem sincera, responderei sim, pois prometi a mim mesma que essa seria a minha vingança contra o velho decrépito. Como vocês já esperavam, eis aqui a solução do problema: nenhum, não sobrava nenhum tempo para a família dele.

Eu lembro uma vez na qual resolvi espiar um livro bonito com letras douradas. Vocês sabem como é, uma esposa dedicada e afetuosa busca aproximar-se do seu companheiro e, para me identificar mais com o velho decrépito, eu precisaria entender um pouco daquela papelada toda. Nada mais fácil para mim, alguém que sempre se mostrou inteligente e perspicaz. Decidi abrir em página aleatória e li um trecho. Meus cabelos arrepiavam-se mais e mais a cada palavra. A mulher passou a língua no seu peito, detendo-se no mamilo. Sentindo o ingurgitamento no baixo-ventre... Não, não continuarei, essa é uma história respeitável, escrita por uma senhora respeitável. Se transpus a passagem aqui é apenas para tornar a narrativa mais completa e realista para os meus leitores. Aquele velho decrépito. Eu sabia que não era à toa o seu gosto por esse monte de letrinhas enfiadas numa capa dura. Só podia ter sacanagem no meio. Velho decrépito.

É difícil de acreditar que vocês não podem ouvir nem cheirar o velho. O som é tão alto e o odor, tão insuportável, que eu fico pensando ser possível que eles cheguem a outro tempo e outro espaço. Vocês não sabem tudo o que eu preciso agüentar. Já contei a vez na qual ele surtou durante um noticiário na televisão? A mocinha – aquela bonita dos cabelos curtos, sabem? – falava as neves do Kilimanjaro estão derretendo. Especialistas prevêem seu desaparecimento para os próximos 30 anos e as lágrimas do velho decrépito começaram a molhar a mesa onde ele estava apoiado. Eu, tola – não, tola, não, de boa-fé –, fiquei orgulhosa da preocupação do meu homem com a causa ecológica. Deveria ter desconfiado. Entre suspiros e fungadas, consegui entender o decrépito dizendo ele me fez acreditar que ao menos as neves do Kilimanjaro eram eternas. Então era isso, o velho, além de decrépito, burro, foi enganado por um escritor doido, pois bobagem assim só poderia ter sido escrita por um dos decrépitos profissionais. Era só o que me faltava. Velho decrépito, burro e bobão.

Comentei sobre como eu era muito mais feliz na casa dos meus pais? Minha memória às vezes falha. Se estou me repetindo, fiquem bem sentados aí lendo de novo esse episódio vivido por mim, pois uma narração assim pode servir de alerta para muitas jovenzinhas que se julgam extremamente espertas. Sim, eu vivia sem preocupações quando solteira. Conheci o velho decrépito, que na época me pareceu tão culto, e casei. Casar com homem culto não serve para nada. Ouçam, ou melhor, leiam o que eu digo. São muito bons na teoria, já na prática...

Vocês juram não poder ouvir os roncos dele? Juram? Se bem... Eu também não estou escutando barulho nenhum. Estranho. Ia começar a reclamar apenas para manter o hábito, o que é sempre bom. Porém, a verdade é que tudo está silencioso. Meus leitores vão me perdoar, mas precisarei acabar por aqui, me angustia não saber se o decrépito está vivo ou morto. Já havia inclusive pensado em uma frase de impacto digna daqueles hippies lunáticos com obras publicadas. Vocês se impressionariam. Agora o velho me atrapalhou e eu não poderei deslumbrá-los como queria. Afinal, ele é um velho decrépito, mas é meu. O meu velho decrépito.