domingo, 26 de setembro de 2010

Catarse (Regina Maria Schneider)

Jesus caminhava calmamente pela Rua da Praia, em Porto Alegre, o jornal dobrado embaixo do braço, quando viu Judas, de terno Armani, todo engomado, gravata e tudo. O olhar de Judas era fixo, duro, sem afeto, a boca retorcida pelo sarcasmo. Andava sem olhar para os lados.

Então, Jesus, tocando–lhe de leve, falou:

– Como vai, Judas? Há quanto tempo...

Judas conhecia bem aquela voz doce, e teve um sobressalto de pavor, pior dos que sofria ao saber dos resultados da Bolsa de Valores. Virou-se rápido, e encontrou os suaves olhos do Senhor. Mal conseguindo murmurar alguma coisa, suando de nervoso, respondeu:

– Boa tarde – e ainda tentando disfarçar para livrar-se daquela situação embaraçosa, perguntou –. De onde mesmo o conheço?

– De um tempo bem longe, Judas, o da Crucificação...

– É verdade – respondeu Judas, mostrando reconhecê-lo por completo, estremecendo, entre envergonhado e constrangido.

Mas que encontro maldito, pensou, logo Ele, logo Ele... Entre tantos bilhões de homens no planeta, os chineses, os indianos, os africanos, logo Ele, ali, na mesma esquina da Rua dos Andradas. Que coincidência terrível e desagradável...

Porém Cristo, vestido com uma túnica branca, larga, de calças jeans, calçando sandálias de couro cru, o cabelo negro e comprido, alto, magro, o rosto encovado, os olhos brilhantes de sabedoria e amor, olhava-o com ternura. Parecia um hippie, e além de Judas, ninguém o reconheceria assim simples e humilde, e sem denotar qualquer atitude de Rei e Santo que era...

Judas não pôde fingir mais:

– Meu Jesus, eu sou indigno de receber a tua boa palavra. Eu fui um traidor, um homem de baixo caráter, um podre...

– Não fales assim, meu Irmão... Eu não esqueci o teu sofrimento, o teu desespero, o teu remorso... Tua vida passada, e quantas mais deves ter tido até hoje. Sei que foram dolorosas. Fiquei marcado em ti com meu sangue... Mas vamos tomar um cafezinho, assim conversamos mais à vontade.

Judas estava petrificado, não sabia o que fazer. O homem que traíra e que pagou com morte violenta por seu ato lhe falava com amor, compreensão, humildemente. Queria esquivar-se desse encontro, ser engolido pela terra, ali naquele momento, sumir, desaparecer, mas Jesus, com o semblante resplandecente, o hipnotizava, o atraía como havia sido antes, quando Judas O amava e O seguia. Lembrou os seus ensinamentos, o tempo em que pescavam juntos e sentavam para cear, distribuindo pão e peixe para o povo. Estava tão rígido e tenso que não conseguia se mexer, e Jesus sentiu isso. Pegou-o amavelmente pelo braço e convidou-o a ir a sua sala de trabalho, que ficava ali pertinho, no Edifício Annes Dias.

Lá chegando, abriu o amplo aposento, fez Judas sentar-se num sofá e serviu dois cafezinhos.

Judas continuava petrificado.

– Eu te matei – falou, olhando bem nos olhos de Jesus, pela primeira vez – Como pude? Eu, que conhecia a Tua doutrina, a Tua filosofia, as Tuas parábolas, as Tuas profecias, o Teu amor ao próximo, eu que Te amava mais do que a mim mesmo, vacilei, Te entreguei...

– Calma, Judas, o teu crime não foi o único na Humanidade. Teve Caim, em primeiro lugar, e outros crimes horrendos. Ainda hoje existem tantos que eu nem poderia lembrar todos, basta ler os jornais, as revistas...

– Aquele beijo – falou Judas – aquele beijo. Aquele beijo – repetia obsessivamente de cabeça baixa, balançado-a para lá e para cá –. Sabe Jesus, depois dele, nunca mais beijei ninguém na face. Nem os meus filhos, nem a minha mulher, nem minha mãe... Aquele beijo ficou cravado em mim como uma cicatriz. Pior, como um ferro incandescente no meu peito, que pulsa, que lateja, uma angústia que nunca se vai. Ainda hoje ele arde e me queima aqui dentro.

– Cada um tinha que fazer o que estava escrito, Judas. Eu fiz a parte mais fácil: meu papel foi ser mutilado, torturado, morto pelo bem da Humanidade. A ti tocou a parte pior: a de trair um amigo, um companheiro de luta, para que as profecias fossem cumpridas. Estava escrito. Cada um teve que representar o seu papel. Tu foste uma vítima, te escolheram para traidor. Quanto a mim, eu só tive que morrer. Sofri, é verdade, mas o meu sofrimento não chegou nem perto dos teus remorsos. Quantas dezenas de séculos já se passaram desde a Paixão, e tu ainda estás te martirizando, como naquele dia em que fui preso. Não aguentaste a dor da culpa e te enforcaste no pé de figueira.

– Era o mínimo que eu tinha a fazer.

– É exatamente isso o que quero te dizer: tu foste o exemplo mais notável, mais concreto, mais real de que a traição mutila e derrota o ser humano. Ela deixa seqüelas irremediáveis na consciência. É um crime horrendo, pior talvez que o parricídio. Foi contigo que a Humanidade aprendeu esta lição.

– Mas o pecado continuou, Mestre, o homem não parou de trair. Acontece todos os dias, a toda hora, de várias maneiras.

– É verdade, Judas. Mas tu não avalias quantas pessoas deixam de cometer traições levadas pelos ensinamentos evangélicos que nós dois construímos juntos. Centenas de milhões de indivíduos na terra seguem a Palavra das Escrituras e não traem. Com o teu arrependimento, tu te redimiste e te tornaste um santo. Quanto aos que ainda traem chegará sua vez de compreender o mistério: eles não sabem o que fazem e reencarnarão em tantas vidas quanto forem necessárias para esse aprendizado. Estava escrito.

– Estava escrito – repetiu Judas resignadamente, como se tivesse, enfim, compreendido o seu papel.

Jesus, olhando-o tão tenso e contrito, disse:

– Deita-te no sofá, Judas, relaxa, estamos a sós aqui, podemos conversar à vontade.

Judas afrouxou a gravata, descalçou os sapatos. Sentia-se cansado e exaurido com aquele encontro inesperado. Estressava-o aquele jeito amável do homem que matara. Estirou-se no sofá com lassidão, tendo Jesus a sua esquerda, quase atrás de si, evitando aquele olhar que não suportava porque fazia lembrar-se de tudo. E, então, num átimo, compreendeu o que o Mestre tentava lhe dizer.

– Escrito! – gritou ele revoltado – Quer dizer então que eu fui usado, escolhido feito cobaia para cumprir um papel viciado, que já estava previsto, que alguém teria que fazer a qualquer custo, contanto que a profecia se cumprisse... Mas é claro, Tu mesmo o disseste, certa vez: “Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar". Tu sabias o tempo todo que seria eu o infeliz, o desgraçado. E o que fizeste para me ajudar? Nada, absolutamente nada. E me tornei, assim, a grande vítima da história, o bandido, o vil, o traidor, enquanto Tu foste a Vítima, o Mártir, o Salvador da Humanidade, o Santificado. A Bíblia é o livro que mais vende em todos os tempos, espalhando a Tua história, o Teu sacrifício. O Teu nome é respeitado em todo o mundo ocidental e até oriental, as crianças são batizadas com o Teu nome enquanto eu... Sou o símbolo da traição, o sinônimo mesmo disso. Eu fui o verme imundo para que o Teu nome se enchesse de glória. A vergonha e a impureza me tornaram desprezível, torpe, ignóbil, a verdadeira expressão da baixeza, da vileza, da degradação...

– Não te julgues com tanta severidade, Judas Iscariotes. E não penses que nada fiz para te ajudar. Rezei muito por ti no Getsemani, companheiro, mas a tua tentação foi mais forte do que a minha prece. E, além disso, na Última Ceia, avisei: "Em verdade, em verdade vos digo que um de vós, que come comigo, me há de entregar... O Filho do Homem vai, segundo está escrito dele, mas ai daquele homem por quem for entregue o Filho do Homem! Melhor fora a esse homem não ter nascido.” Eu te avisei, Filho!

Judas recordou o episódio e abaixou a cabeça em sinal de culpa.

– Mestre – disse ele – perdoa–me.

– Antes de eu morrer na cruz, meu amigo, tu já estavas perdoado. E, além do mais, estás idealizando demais a minha figura, eu somente fiz o que pude naquela época, era a minha obrigação. Naqueles tempos, eu tinha um pouco mais de luz do que os outros homens, e julguei compreender melhor a Humanidade, guiado pelos ensinamentos do Meu Pai. Então, pregar a minha fé foi uma coisa natural em mim, não pretendi te usar em qualquer sentido. Podes ter certeza que desempenhaste muito bem o papel que te coube. A traição ficou marcada na Humanidade como uma das coisas mais abjectas e vis que um ser humano pode cometer. Teu exemplo serviu para isso, para ensinar as pessoas a não trair. O teu suicídio transformou tua atitude na representação do arrependimento. Tu foste corajoso e forte ao te enforcares. Não precisas te sentir perseguido por isso.

– Mas por que eu, logo eu?

– E por que não tu, Judas? O que tu tinhas de melhor que outros para não poderes servir de traidor? Isso é uma onipotência tua. O de querer sempre ser o maior e o melhor.

Judas estremeceu e começou a chorar aos arrancos, sacudindo-se convulsivamente.

– Eu tinha o livre arbítrio, Jesus, eu podia ter me negado, escolheriam outro apóstolo, mas eu escutei o primeiro chamado, Satanás entrou em mim, botei olho grande naquele dinheiro, cedi ao primeiro impulso, não pensei muito e Te vendi!

– Foi – disse o Senhor.

Judas desesperou-se. De um salto, levantou, arrancou a gravata italiana, tirou o casaco de tweed, jogando-os no chão. Rasgou as vestes como se ainda vivesse em tempo bíblico. Arrancou os cabelos, arregalou os olhos, delirante, febril, doentio e transtornado. Debatendo-se, gritou o que pode de raiva, de angústia, de agonia. Depois, deitou-se novamente de bruços, exausto, chorando feito criança, aos solavancos, um menino mau arrependido diante da figura do pai.

Jesus o olhava com mansidão, sentado no outro sofá.

– Sabe, Rabi – falava Judas com a voz entrecortada – de tudo o que se passou, a tua prisão, a tua tortura, a coroa de espinhos, o teu sangue vertendo, tu arquejante ao peso da cruz, a chacota e o escárnio com que te trataram, a tua sede, o fel que bebeste, a tua própria morte, as tuas chagas, de tudo isso o que mais me doeu foi o meu próprio beijo. Meus lábios quentes e voluptuosos, viperinos, beijando tua face morna e inocente, tua carne humana... Ao longo desses dois mil anos, vivendo sempre dezenas de vidas sobre a terra, é aquele beijo que me martiriza, e me afoga. Trair, muitos e mais do que eu traíram, é humano, mas aquele beijo jamais poderei esquecer.

– Foi um beijo sujo, não é assim que tu o sentes, Judas ?

– Sim, um beijo covarde. Ele marcou irremediavelmente a minha laia, a minha corja, a minha árvore genealógica. Fiquei com o sinal de Caim... Sabe, Cristo, depois que te traí, repeti esse gesto muitas vezes. Por exemplo, fui Nero.

– Eu sei, Judas, eu fui Agripina...

– No Brasil, fui Joaquim Silvério dos Reis...

– Eu sei, Judas, eu fui Tiradentes.

– Eu fui Hitler.

– Eu sei, Judas, eu fui judeu.

– Eu fui da Klu Klux Klan.

– Eu fui Martin Luther King.

– Viste, viste Mestre? E além do mais, fui Stalin e Médici. Pinochet e Bush tem meu sangue.

– Eu sei, Judas. Fui o operário russo, o povo chileno, o árabe, o índio, o negro, o palestino, o cigano, o homossexual, o drogado, o presidiário, o brasileiro. E tu sempre estavas lá, do lado contrário ao meu.

– Meu problema é genético.

– Não sejas determinista, tu podes mudar essa maneira de ser.

– Sou filho de Caim. Faz parte da minha natureza.

– Estou aqui contigo, meu Filho, para que tu aprendas a mudar e, principalmente, a te perdoares, a refazeres tua vida, pois ainda voltarás muitas vezes à Terra. E hoje, o que fazes, que profissão exerces?

– Sou agiota. Extingo a vida do infeliz que me bate à porta todo o dia, do miserável que está endividado, atolado, sem saída. Sugo as suas últimas forças, abandonando-as somente quando estão esgotados e exangues e nada mais posso tirar delas. E Tu, Cristo, que fazes por aqui, nesta distante cidadezinha, perdida no Sul.

– Sou psicanalista. Tento ajudar as pessoas a viver um pouco melhor. A vida não é um peso só para ti. As pessoas que batem à minha porta procurando apoio, vêm assombradas pelo sofrimento, angústias, culpas, remorsos...

– Analista? Mas então este é Teu consultório? E este sofá não é mais do que um divã? Eu estou vivendo uma sessão de análise?

– Sim, Judas. Foi a maneira que encontrei para te ajudar, te escutando melhor, te deixando falar mais dos teus sentimentos...

Judas levantou-se, andou um pouco pela sala, viu o retrato de Freud na parede. Estava visivelmente mais aliviado. Deitou-se de novo no divã, ficou olhando o teto, silencioso, refletia sobre o que Jesus lhe dissera. Pensou em perdoar seus devedores, aliviar os juros altos que aplicava aos empréstimos. Precisava visitar um irmão aidético que não via há dois anos. Queria também beijar os filhos, tinha muito que fazer. Levantou-se.

Haviam se passado exatos 50 minutos.

Jesus também levantou. Estavam ombro a ombro, de homem para homem, face a face, e o abraço veio natural, espontâneo, necessário, irresistível. Ficaram assim abraçados por um longo tempo.

– Volto amanhã – disse Judas – na mesma hora, está bem? Foi bom falar, Meu Rabi, há quanto tempo eu não chorava? Há mais de dois mil anos. Foi emocionante estar aqui Contigo e saber que posso mudar para melhor. Eu ainda Te amo e muito, descobri isso agora. Aliás, nunca deixei de Te amar, mesmo quando cometi aquela loucura.

– Eu também te amo, Judas, e muito. Eu vim pelos pecadores.

– Eu sei, Mestre, obrigado. Quanto Te devo?

Jesus olhou-o bem nos olhos, serenamente, e disse com fala mansa:

– Trinta moedas de prata.