tag:blogger.com,1999:blog-41055780412005924492024-03-13T19:22:49.911-07:00Gostei Muito Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.comBlogger48125tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-3601366628331178972013-08-20T04:43:00.001-07:002013-08-26T11:59:26.011-07:00Uma estranha noite em Nice, ou Cannes, ou Cap Antibes, enfim, não importa (Ayala de Aguiar)<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Jamais
vira um orangotango em minha vida. Nem em circo. Nem em zoológico. Não saberia
como me comportar diante de um. Era tarde da noite, foi tudo meio que de repente.
Eu estava sentada num banco, na pérgola da Promenade des Anglais (ou era na
Croisette?) Não importa. Olhava o Mediterrâneo com o respeito religioso com que
sempre olho para este mar interior, repositório e túmulo da caminhada da
humanidade. Tudo o que se passou às suas margens, sobre suas águas, tudo o que
jaz, ou jazeu, sob elas, nos diz respeito.Explica-nos.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Como somos, como nos desenvolvemos. Explica
nosso caráter. A história, o mito, a lenda, as conquistas, as derrotas, os
êxitos, os fracassos. O caráter do homem ocidental se gestou aqui, nas águas deste
mar fechado em meio às terras. O Grande Azul.<o:p></o:p></span><br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Um
dia, há muito tempo, eu jurara, sobre suas águas, e tendo-as por testemunho, que
jamais alguém me haveria de humilhar. Mas isto é outra história.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Alguém
sentou-se no banco, a meu lado,<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>trazendo-me
de volta à superfície. Era um orangotango.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—“<i style="mso-bidi-font-style: normal;">Chose étrange”— </i>diria meu querido e
saudoso professor.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Estávamos
em Nice, ou Cannes, pouco importa, diante do Mediterrâneo. E o que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. Viu, está visto. Existe.Se Ionesco pôde ver,
por que não eu?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Era</span></i><span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"> um orangotango,
sentado a meu lado. E ele me perguntou:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Madame, por favor, que horas são?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
São 9:15 – respondi.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— Da
noite, quero crer?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— Sim,
da noite. Não notou? Já está escurecendo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Nunca se sabe, madame. Nunca se sabe.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Falava
francês com um sotaque estranho. E o que me chamou a atenção é que não era
aquele sotaque típico africano:<i style="mso-bidi-font-style: normal;">“c’est vrrai,
c’est vrrai”.<o:p></o:p></i></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Esse
outro acento eu não conseguia distinguir. Fiquei curiosa. De onde teria saído o
diabo deste orangotango com tal sotaque?<span style="mso-spacerun: yes;">
</span>Eu tinha duas alternativas: ou me calava, ignorava a presença do orangotango e,
discretamente, me afastava dali. Ou ficava. Fiquei. Para puxar o fio da meada e
ver aonde ia dar tudo aquilo. Podia render uma boa história.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Estava um pouco insegura, não sabia por onde
começar a conversa.Falar do tempo era muito óbvio. Resolvi arriscar. Puxei o fio
da meada.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— O
senhor não é daqui? – pergunta afirmativa.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Claro que não, madame. A senhora há de convir que não se veem muitos como eu,
neste país, fazendo turismo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— Ah!
O senhor viaja a turismo, não a negócios?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Sim, digamos que sim.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Bem, é que, atualmente, com o deslocamento das populações, vê-se de tudo. Quero
dizer, muitos estrangeiros, das mais variadas etnias...<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">–
Madame tem razão. Vê-se de tudo. Eu disse à minha mulher, antes de viajar: “Seu
marido vai chamar atenção”.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">É
casado. Uma informação.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Minha mulher e meus filhos nunca saíram das Ilhas Mauricio, onde vivemos.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">–
Interessante.O senhor é, pois, africano?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">–
Não exatamente, madame. Somos indianos. De origem. Meus antepassados se radicaram nas ilhas desde
tempos imemoriais. Bem mais recentemente, por volta de 1500, fomos descobertos por
navegadores portugueses, depois fomos colonizados por franceses, holandeses,
ingleses. Hoje somos um Estado independente.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Este
cara está me gozando. Quem foi descoberto em 1500, por portugueses, fomos nós.
Onde será que ele quer chegar com esta conversa mole?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— E
Madame, de onde vem? Do leste europeu?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Era
a minha vez de tirar sarro (ainda se tira sarro?) da cara do sujeito. Está me
achando com cara de romena? Albanesa?<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Conversa
chata, esta.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Respondi,
educadamente:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Não, cavalheiro, ao contrário. Eu venho do <i style="mso-bidi-font-style: normal;">extremo
ocidente</i>.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Frisei
a expressão<i style="mso-bidi-font-style: normal;">.<o:p></o:p></i></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Interessante. Perdoe-me se não estou a alcançar a localização. Geograficamente,
quero dizer.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— O <i style="mso-bidi-font-style: normal;">extremo ocidente, </i>acentuei – é do outro
lado do Atlântico, senhor.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">—
Interessante, muito interessante, repetia. É uma região de florestas, de
grandes florestas. Meus antepassados eram seres de floresta... Interessante.
Madame, tão civilizada, tão bem informada, parece um pouco surpresa por estar
conversando com um estranho, e a estas horas.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">— Pois
não é? Meio tarde. Mas, como dizem na minha terra, se a prosa está boa a gente
segue proseando.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Orango
avaliava a minha condição de ser civilizado como se no <i style="mso-bidi-font-style: normal;">extremo ocidente</i> só houvesse, digamos, primatas. Eu já estava farta
de, ao longo de minha vida, me desculpar, de explicar que no extremo ocidente usávamos
roupas, comíamos com talheres, íamos a universidades e conseguíamos falar mais
de um idioma, além do nosso patuá nativo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Enfim,
não importa. Conversamos sobre muitas outras coisas, a chamada conversa fiada, solta,
sem comprometimento. O fio da meada, que eu pretendera puxar, não desenrolou
muito além da superfície do novelo. E a mim já não me interessava saber-lhe
vida, paixão e morte. As horas iam passando, frente ao Mediterrâneo. Agradáveis,
horas plenas, e isso me bastava.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Quando Orango,
discretamente,olhou seu relógio de pulso, um magnífico Rolex, na extremidade de
seu longo braço, pensei comigo: Se ele tem relógio, por que perguntou-me as
horas?<i style="mso-bidi-font-style: normal;"><o:p></o:p></i></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Simulou, ou, realmente, sentiu um leve susto.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">– Macacos
me mordam! <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>São quase quatro da
manhã.Como o tempo passou rápido.<i style="mso-bidi-font-style: normal;"> Hélas</i>!
Demasiado rápido, madame.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Se eu não
correr perco meu voo para Stockholm. <i style="mso-bidi-font-style: normal;">Désolé!</i>
Preciso voar para o aeroporto. Perdoe-me a pressa. Foi uma honra desfrutar de
sua amável companhia nesta noite magnífica, mágica. Pelo menos para mim. Espero
revê-la um dia, madame. Adeus!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Disse
isso num francês fluente e impecável, sem sotaque, já em pé, acenando para um
táxi.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Olhei
as horas no meu relógio de camelô: três e cinquenta e cinco. <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Na linha do horizonte, à minha esquerda, uma
fímbria de claridade começava a se delinear. Algumas horas antes, poucas, eu
vira o ocaso sobre o Mediterrâneo. Agora via o alvorecer. Imutável e perpétua
marcha do tempo sobre o Grande Azul. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;">Levantei,
dei uns passos para destravar as articulações, me espreguicei.O que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. É real. Viu, está visto. Existe.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
<span style="font-family: "Arial","sans-serif"; font-size: 12pt; line-height: 115%;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Enfim, não importa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
</div>
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;">
(Este conto de Ayala Aguiar foi o vencedor do <strong>Primeiro Concurso Aleph de Contos</strong> das Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda)<br />
</div>
Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-39755370233981725622013-05-19T13:30:00.002-07:002013-05-19T13:30:51.727-07:00DesMinudessÊncias (MCeleste Carloto)<br />
<span style="font-size: 14pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;"><span style="font-family: Times New Roman; font-size: small;">Homenagem ao guardião do imenso ínfimo </span></span></span><br />
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Vestido pelas margens de
Barros que o velho Manoel trilhou de pé-em-cabeça, Mil 96 anos frutificando
sobrancelhas sob a noite de dezembro. Um começo não se sabe quando, desdia não
importa. Tímido roseado, estrela-garça tresandejando rio-palavra virgem prenhe,
formou-se em Torto a vida toda. Compendiando pássaros, encurtou águas para
parir um Jabuti.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 6pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Quando
um crôvio pingava trevas, manoelilava frases: <o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Um passarinho tinha vento
e rodas de asfalto<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">QuiQuiQuiQuiviando
protesto pelo silêncio envidraçado<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Pensamento-gafanhoto: Nem
a Primavera virá chuvisquiar peixinhos!<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">A
tarde brotou pedra quando um escorpião mordeu a lata, que gritou azul como um
tonto. Ou seria um poeta? No ermo sujo de pisadas humanas, o Senhor de
nadifúndios ajoelhou a brisa e desmorreu a concha. Dês-pessoa mutável,
cartografou sem-fim vozes do pântano plástico, onde a lata come o rio e o ar
racha uma poça de parede, ensandecendo na língua as paisagens, pré-cantiga
rupestre para pós-viver.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Fazendo
tratados de infinidades, i<span style="color: black;">déiaiara feita de frases e
dentes e latas, </span>t<span style="color: black;">ransvendo ele morreu Bernardo
andar-ilh(a) na trama das larvas do entardecer, para nascer desertos em asas de
petúnias. </span>Prendeu águas para alumiar o turvo, gotando pétalas abaixo
ovas de sapos felizes, escreveu nenhumas para desexplicar os vagalumes.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Minudequenas.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Ântropo
de inseto protagonizando chuvas, Bernardo franciscou irmão dos limos, sendo
lesma para arvorizar-se. Híbrido de madrugadas e formigas vadias, sub-azul de
palavras vareiadas, coisou vida de pedra. <o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-family: Arial Narrow;"><span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;">Ontem
é para ouvir futuros, agora é ocaso em estado de criança, menino-lúdico, pleno
ludimenino. </span><span style="font-size: 11.5pt; line-height: 150%;">Teve a graça
da cigarra e ela não fugiu Verão. <span style="color: black;">Agora já só prisca
poesia com joelhos silenciosos, peraltando a vida, porque pesaroso do dia
tardo. Quando virar pássaro, será árvore? Tresandando existências, encolhe para
a mãe-vida até o limo-primícia. Varejando verde-poesia, na lógica de olhar das
aves, continua bebendo copos de sol para contaminar de versos os ossos das
moscas.<o:p></o:p></span></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Pervertendo
o traste para virar sabiá, na voz de Bernardo vide Manoel do mato fino e da
flor rasteira, apanhador de gotas de rio no canto das lagartixas, um besouro,
nascendo pedra, se espicha ao céu. Fazedor de aluminesceres para chãzificar
cacos de noite ao sol, beija-vento alimentando flor, fundido na voz da lua
agarrando cheiros, tonto de fonte pinga-cor no sentido chão, aponta colarinhos
que deixam o rio nu, meandros de vermes e vida desparamentada, um lápis escreve
o rio que pinta o poeta. É da natureza do lápis transviar o invisível.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Papito
temperado à ináugura frase-palavra, desapre(e)nde rapinando luar. Aspira
devagarinho a luz sem suspensórios, verbo sem lantejoula, em decomposição,
vaziando um útero pleno por nascer. Para inteliger a transgressão das palavras,
prende raios de água nas unhas dos sapos. Desherói de si mesmo, afrodizia o rio
em ensaios luminovagos. Descasca alma. Descalca. Ama letras como os lagartos
gostam as pedras.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Primogênico
de si próprio, Manoel antes letral de que sangue quebrando copos formais.
Imaginação e um lápis para envelhecer o dia, colheu folhas decíduas nas veredas
pantaneiras, polindo águas de campos pequenos e horizontes vastos. Desenhando
voz, despinta na rocha a eternidade.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Cântico
de minúsculos infinitos, suculento microcósmico, ascensão de lesma a luar,
pesponta metalinguando as margens e os caroços. Delirando verbos, mastingando,
anoiteceu guri espirituando árvore, tratando das grandezas insignificantes de
um pardal, conversou fósseis com caracóis e sapos e ervas daninhas e deixou o
grilo erodir o ponto.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="color: black; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Molda
sons desenhados como quem faz cacimbas para conversar absurdez em Solo de Rio
nº 2. No infrasilêncio do esquecimento da tarde, há não-eu no olho da pequena
Gaia, legível de folhas secas alterincadificadas. É técnica de saber árvore.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><span style="font-family: Arial Narrow;">Fotografando
em alfabeto cursivo as coisas nenhumas da palavra faltante, palavras grossas
magras escuras saltitantes, rascunhando fala para não gaguejar escrito.
Liberdade é luxúria de corromper palavras até a quimera para escurecer
sentidos.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div align="left" class="MsoNormal" style="margin: 8pt 0cm 0pt; tab-stops: 35.45pt; text-align: left; text-indent: 70.9pt;">
<span style="font-family: Arial Narrow;"><span style="font-size: 11.5pt; line-height: 150%;">A licenciosidade do Verbo anoitece para acender vagalumes, <span style="color: black;">limpos de inutensílios</span>.<span style="color: black;"> </span></span><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif"; font-size: 11.5pt; line-height: 150%;"><o:p></o:p></span></span></div>
Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-62245765239131883462012-10-14T10:08:00.005-07:002012-10-14T10:08:57.381-07:00<div style="text-align: left;">
<span style="font-size: 20pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 12.0pt;">Barba seca<span style="mso-tab-count: 1;"> </span><o:p></o:p></span></div>
<div style="text-align: left;">
(Rubem
Mauro Machado)</div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0pt;">
Já no primeiro dia ficou claro que
seríamos mandados para a guerra.</div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O
Exército vai transformar vocês em homens de verdade, disse o tenente-coronel
Bonera, comandante do Batalhão, diante dos recrutas perfilados no vasto pátio
cimentado. Uma bandeira se agitava em patriótico frenesi, no alto do poste
pintado de branco. Infantaria não tem moleza, continuou, é a arma que vê os
olhos do inimigo. E quando esse momento chegar, quero que os olhos que nos
enxergam estejam cheios de medo. Medo de vocês.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O
Exército não é lugar de molengas e nem de boiolas, muito menos de covardes,
completou o capitão Brickman, comandante da nossa Companhia, a II de
Fuzileiros, quando mais tarde nos enfileiramos diante do alpendre do
alojamento, cada um de nós tendo ao lado um saco de lona com nossos poucos
pertences. O capitão caminhava de um lado para outro, peito estufado, batendo
com o bastão de comando no coturno bem engraxado. De vez em quando parava e nos
encarava feio, de cima para baixo, como se estivéssemos duvidando dele. Vocês
são os defensores da pátria e de nossos valores. O inimigo representa tudo o
que odiamos; quero que os corações de vocês estejam cheios desse ódio santo. É
ele que nos levará à vitória. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Passeou
os olhos pelas fileiras, como se buscasse qualquer fraqueza ou hesitação em
nós. Atrás dele, os tenentes e sargentos, posição de descansar, mãos para trás,
olhavam firmes para frente, por sobre nossas cabeças, todos muito marciais. E
eu juro, completou o capitão, que esta vai ser a melhor companhia do Batalhão,
nem que para isso eu tenha de arrancar o couro de vocês.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Alguns
homens gostaram daquilo tudo. Eles haviam visto muitos filmes de guerra no
cinema e na televisão e cada um se imaginava uma espécie de John Wayne. Estavam
doidos para começar a dar tiros. No alojamento repetiam que o capitão estava
certo: Exército era pra macho mesmo. E quando chegasse a hora do pega pra
capar, os homenzinhos distantes que tinham o topete de nos desafiar iam ver o
que é bom pra tosse.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Aquele
machismo descarado talvez fosse a maneira que alguns encontraram de negar, para
os outros e para si mesmos, o medo que nos apertava as entranhas. Embora, eu
haveria de descobrir, de fato alguns homens, digamos um ou dois em cem, sejam
assassinos por vocação e natureza, tenham gosto genuíno em destruir e matar. E,
depois de viciados na adrenalina do combate, não possam mais, como todo
drogado, viver sem ela.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Quem
parecia não estar entendendo nada era Jones. Pernas arqueadas, uniforme mal
ajambrado, jeito de caipira, tinha uma vaga idéia do que os oficiais estavam
falando. Sabia que deveria odiar, e que mais tarde iria matar, uns sujeitinhos
esquisitos a quem nunca vira e cuja língua não entendia: mas as razões para
isso lhe escapavam. Eram inimigos, certo: mas se não estavam nos incomodando,
se éramos nós que teríamos que pegar um avião, viajar horas sem fim, atravessar
o oceano, como lhe explicaram, para chegar no país deles e mandar chumbo neles
e acabar com a raça deles, porque não podíamos ficar nós por aqui mesmo,
lavrando a terra em paz, tirando leite das vacas, dando comida pros porcos e
pras galinhas, e deixar eles pra lá, cuidando da vida deles? Queriam tomar o
que era nosso? Mas tinham eles aviões grandes para cruzar os céus até aonde
estávamos? Tinham eles como chegar até nós? Não era melhor esperar por eles, se
fosse o caso, e assim que fossem chegando, aos poucos, aí, então, sim, ir
acabando com eles, um por um, para que aprendessem a respeitar o país dos
outros? Se éramos tão mais poderosos, como o sargento Clark dizia, por que<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>ter medo deles?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Quando
Jones, no alojamento, ensaiou em seu vocabulário escasso de homem do campo
fazer essas perguntas sem pé nem cabeça, os homens, que desde o início o
elegeram alvo preferencial de brincadeiras e sacanagens, deram-lhe respostas
jocosas e perguntaram se ele estava com medo, se estava se cagando antes do
tempo. Por covardia, calei; mas as dúvidas de Jones também eram as minhas.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O
Exército é uma grande repartição pública como outra qualquer, logo constatei.
Gastava-se boa parte do tempo com formalismos aborrecidos, nada heróicos. A
burocracia se sobrepunha à lógica, o estabelecido não admitia o diferente. A
hierarquia derivava não da capacidade individual, mas de fatores variados, como
o mero tempo de serviço. Ponderações não eram bem vistas.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Correria
e inatividade se alternavam, numa rotina absurda e irritante. Podíamos ficar 40
minutos enfileirados ao sol, à espera de alguma decisão, como se o tempo fosse
um bem supérfluo, antes que o capitão chegasse para o tenente com as fatais
palavras “última forma”; e anunciasse um novo rumo. E lá íamos, marchando,
feito bonecos, engolindo a decepção, perdida toda autonomia.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Pareciam
nunca saber exatamente o que fazer conosco. E cada ato nosso, até os mais
simples, como se dirigir ao refeitório, era determinado por outrem, sempre em
caráter coletivo, ao ritmo do bater de pés. Regulamentos tudo previam. Sob o
olho atento do relógio, arrumávamos a cama de manhã, dobrando o cobertor da
maneira ensinada. Tínhamos de engraxar os coturnos pelo menos três vezes por
semana, polir a fivela do cinto, limpar os fuzis a três por dois; fazer a barba
todas as manhãs, às pressas, antes do café; e só havia uma maneira de prender a
pá ou a lona da barraca na mochila; ou de se dirigir a um superior; e só uma
posição fundamental no início da sessão de ginástica. O corte de cabelo
igualava a todos e o manual dizia como cortar a unha do pé. Entrávamos em forma
para tudo; só faltava ter hora para ir às latrinas, cobertas pelo cheiro acre
de creolina.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Marchávamos
até o refeitório para o café e o almoço; e para a sala de instrução, para o
estande de tiro, para a ginástica calistênica, para o campo de futebol; isso
tudo depois da formatura matinal do regimento, seguida de duas horas de
interminável ordem unida, quando a voz de comando nos eximia de pensar ao tomar
uma nova direção: obedecer tornava-se uma coisa automática. E no fim do dia, as
companhias tinham de alinhar, cada uma diante do seu alpendre, para ouvir a
leitura do boletim, quando ficávamos sabendo das eventuais punições por
indisciplina no Batalhão; e éramos informados de que no dia anterior nossas
heróicas tropas, numa antecipação do nosso trabalho, haviam matado 80, ou 150
inimigos, nas batalhas distantes, notícia que, embora sem comprovação, era
saudada com um urro selvagem, festa de contagem de jogo de futebol. E ao cair
da noite mais uma vez seguíamos marchando para o jantar. Não passávamos de
frações de uma totalidade; não à toa, cada um de nós ganhara ao chegar um
número, desde então inseparável do nome de guerra.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent3" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-size: 12pt; line-height: 150%;">Passadas as primeiras semanas, integrara-me àquela
rotina. Embora ainda não tivéssemos disparado um tiro, não mais me sentia o
recruta perdido que certa manhã, depois de tomar as vacinas para tifo, tétano e
febre amarela, e de ter o cabelo derrubado por um cabo improvisado como
barbeiro, se viu sentado no alpendre da II Companhia de Fuzileiros, tentando
achar, na montanha de coturnos depositada no centro do círculo que formávamos,
um par que desse no pé. E que naquela mesma tarde, ao comando do sargento
Stone, ficou ensaiando com os colegas durante horas bater continência.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent2" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
Naquele dia constituíamos
um bando ridículo de palhaços verdes, já que nossos corpos magros sobravam
dentro dos uniformes ainda à espera de ajuste; e eu olhava com inveja os
soldados veteranos que passavam altaneiros por nós, dentro de uniformes bem
recortados. Ainda demoraria uns dias antes que, graças ao trabalho de tesouras,
agulhas e linhas, nosso ou de mulheres do bairro pobre das redondezas, ávidas
para faturar um trocado, ficássemos indistinguíveis das praças veteranas no
trânsito movimentado das ruas do quartel. Este era formado por um conjunto de
pavilhões amarelos, de um só andar e com um alpendre na frente (a que se subia
por quatro degraus laterais), cada qual abrigo de uma companhia de infantaria.
Outros prédios sediavam cozinhas e refeitórios, depósitos, a escola regimental
– e a cadeia, de portas e janelas gradeadas, repouso dos muito agitados. Nos
fundos, para além da planície cimentada das formaturas matinais, ficavam o
estande de tiro, o paiol, a pista de atletismo e o campo de futebol. A testa do
complexo era constituída pelo único edifício de dois andares, com o imponente
portão de entrada cavado em arco no seu ventre, vigiado eternamente por uma
sentinela. No andar superior ficavam os alojamentos dos oficiais solteiros; no
térreo, o corpo da guarda. A cidadela, masculina, era cercada por um muro
caiado de branco, que nos separava do grande mundo lá de fora, o mundo da
normalidade, de que estávamos excluídos, quem sabe para sempre.</div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O
capitão Brickman cumpriu a promessa de nos arrancar o couro. As horas de
marasmo, em que ficávamos à espera não sabíamos bem do quê, ou aquelas
dedicadas à instrução teórica, quando, depois do almoço, sentados numa lona
estendida sobre o chão do alpendre, ainda no processo de digestão da comida
difícil, lutávamos para que os olhos não fechassem ao som da cantilena monótona
do tenente Knapp a nos falar dos ângulos de tiro dos morteiros, eram
intercaladas por furiosa atividade física: ordem unida, ginástica com armas e
propriamente dita, práticas desportivas, travessias de obstáculos pendurados em
cordas, marchas diárias e noturnas; e por exercícios exaustivos no campo de
instrução, situado fora da cidade e que alcançávamos caminhando em linha dos
dois lados da estrada por nove quilômetros, dobrados sob o peso do equipamento.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>Lá, avançávamos contra um inimigo hipotético,
urrando um ódio que tentávamos aprender, dando tiros de festim, jogando-nos no
chão e rolando ao apito do instrutor, não importa houvesse à frente pedras ou
espinhos que nos deixavam contundidos e arranhados.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O
pior de tudo para mim era vir na corrida e, com uma raiva inteiramente nova,
enterrar a baioneta calada em bonecos recheados de palha. Eu não queria pensar
na possibilidade de um dia a palha se fazer carne, de ter de furar um ser
humano, em um ser repleto de sangue que espirraria longe – e muito menos que
alguém fizesse aquilo comigo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">No
combate à distância atira-se numa sombra sem identidade, que se desloca e cai.
É muito diferente do combate corpo a corpo, quando você percebe nos olhos do
outro a surpresa e o terror, capta o cheiro de suor e medo que emana do corpo à
frente – e sente a resistência macia da carne que sua lâmina perfura no impacto
da corrida, até chocar-se contra a dureza de um osso. Lâmina que você torna a
libertar erguendo o pé e empurrando o corpo do inimigo com a sola do coturno,
como quem se livra de um fardo incômodo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Passada
a tempestade, nos dias que se seguem você se pegará criando uma biografia,
inventando um nome, um trabalho e uma família para aquele infeliz. Vai pensar,
nos momentos mais inesperados, ao acordar de manhã, enquanto faz a barba, no
meio de uma conversa, ou enquanto dá uma garfada no prato de comida, na dor que
sua vítima sentiu no momento fatal; e a que a família dele terá sentido ao
receber a notícia de sua morte, o espanto do pai, os gritos da mãe, as lágrimas
das irmãs. Vai imaginar como devem ser as tardes calmas da cidade ou aldeia
natal daquele desconhecido, que veio para sempre e de maneira inesperada
tornar-se parte de sua vida e da sua lembrança; no que ele achava graça, se
gostava de música ou de assobiar, se tinha um gato ou um cachorro, se gostava
de alguma garota, se era inteligente ou estúpido, alegre ou melancólico, se
pensava na morte, se fabricava para si um futuro: e tudo isso por que você terá
visto seu rosto de menino; e por que no fundo ele não é tão diferente de você.
E nunca mais você deixará de ser perseguido pelo grito ou gemido fundo daquele
segundo fatal, pelo som do choque da baioneta contra o osso; e não haverá sabão
que consiga lavar de si o sangue que sujará as suas mãos e o seu uniforme de
matador.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Não,
eu na era adepto de baionetas. E tampouco me entusiasmei quando pouco antes de
deixarmos o quartel rumo a um novo destino, cada um de nós foi presenteado com
um punhal de dois gumes, afiadíssimo e ligeiramente recurvo, que a partir dali
levaríamos sempre à cintura, como parte do equipamento. Como no caso da irmã
maior, ele apresentava uma reentrância longitudinal no centro da lâmina que,
descobri, tinha por finalidade provocar hemorragia interna.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Ainda
bem que ao voltar para o alojamento à noite, depois do jantar, desmaiávamos de
cansaço ao nos jogarmos nas camas; se tinha pesadelos, não conseguia me lembrar
deles depois da noite que parecia tão curta, violentada pelo precoce toque de
alvorada, já no esforço de abrir os olhos, sob o castigo das palmas e gritos de
“levanta, levanta” dos sargentos, ainda escuro lá fora. E você mal tinha tempo
de entender onde estava, antes de começar a correr, para não se atrasar.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Os
momentos de folga eram gastos com cochilos: sempre havia alguém a imitar um
cadáver de boca aberta nos nossos beliches duplos, um fio de baba escorrendo
pelo canto da boca, morto para os que se dedicavam a costurar uma peça de
uniforme, lustrar a fivela do cinto de lona, ou apenas mirar um ponto fixo no
teto, nuca pousada na palma das mãos; ou que, sentados no chão frio do
alojamento, se empenhavam num barulhento jogo de cartas: gritar e discutir é um
dos modos de espantar o medo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Nessas
horas ociosas, em que éramos por um curto tempo donos de nós mesmos, Jones
sofria com as piadas e provocações:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">–
Ei caipira, é verdade que lá na roça vocês trepam com as vacas e as galinhas?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">No
começo Jones ainda dava um risinho amarelo; com o tempo foi se fechando cada
vez mais, afundando no mutismo, na perplexidade de ter sido lançado sem
consulta num mundo hostil, que apesar do esforço tinha pouca possibilidade de
entender. Mais do que maldade, eu sentia, havia nos homens a vontade de se
sentir superior a alguém que parece inerente a todos nós. Éramos todos ali
pobres, fodidos em maior ou menor grau, no máximo remediados: e mesmo assim
ainda não tínhamos percebido que os ricos não iam para a guerra. Mas ser da
cidade parecia uma boa vantagem em comparação com um camponês bronco.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Por
pena e solidariedade e também pelo acaso de que Jones era de meu pelotão e seu
beliche ficava próximo do meu, fui aos poucos me aproximando dele, puxando
conversa, iniciando uma improvável amizade. Numa tarde morna de domingo em que
a maioria dera uma escapada para a cidadezinha próxima, na esperança de uma
trepada e de embebedar-se, e os restantes, afora os que engraxavam sapatos e
coturnos, roncavam abraçados ao colchão de seus beliches, Jones, numa prova de
que eu ganhara sua confiança, ou por pura necessidade de comunicação,
aproximou-se de onde eu deitado tentava ler um livro, puxou uma foto rachada do
bolso e me mostrou:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Eu e Bolota.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">À frente de um galpão e de um terreno arado, Jones
abraçava-se ao seu cachorro vira-lata. Partilhou comigo a contemplação
enternecida e compreendi, mais do que dos pais e dos irmãos, ele sentia falta
do seu cachorro.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Você acha que, se eu ficar muito tempo fora,
ele vai acabar esquecendo de mim? <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Claro que não, Jones. Os cachorros nunca
esquecem seus donos. O dia em que você voltar pra casa, vai ver só os pulos que
ele vai dar.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Então me contou como Bolota era esperto e como
ficava assanhado quando o via pegar o caniço para ir pescar no riacho: seguia
na frente ao longo da trilha, sacudindo o rabo de contente.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Soldado, chão. Vinte flexões de braço;
rápido, vamos lá!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Tínhamos de estar sempre alertas (sobressaltados?).
Qualquer hesitação, qualquer demora em compreender uma ordem, qualquer retardo
em pegar um objeto, em arrumar a cama, sair do chuveiro ou entrar em forma, era
punido pelos sargentos e oficiais com flexões de braço ou com “cangurus”,
movimento em que, dedos entrelaçados na nuca, tínhamos de descer e subir, alternando
as pernas. Não se tratava de sadismo, eu sabia: a agilidade de reflexos poderia
nos salvar a vida no campo de batalha. O último a entrar em forma era sempre
punido, ainda que necessariamente sempre tivesse que haver um último. Tudo isso
é para o nosso bem, eu me consolava.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O problema é que o tempo de Jones não era o nosso.
Custava a entender o que se esperava dele. Gestos lentos por natureza e por
cultura, era alvo da irritação, fingida ou verdadeira, de oficiais e graduados,
o que só contribuía para que ficasse ainda mais aturdido, cometesse mais erros.
Tornou-se o campeão em nossa Companhia de flexões e cangurus, o que estimulava
os homens, mais tarde, a fazerem piadas sobre ele e a inventarem-lhe diferentes
apelidos. Eles avaliavam que os homens do campo, por sua lerdeza, são todos uns
pamonhas. Mas eu, depois de passar uma temporada numa fazenda, sabia por
experiência própria que sua natural lentidão embutia profunda e inata
sabedoria: é que no mundo rural os trabalhos são tão pesados e as distâncias a
percorrer sempre tão grandes, que se eles executassem suas tarefas na
velocidade a que nós citadinos nos habituamos, tombariam em breve de exaustão.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Um dia o tenente Porrada, como havíamos apelidado o
tenente Anderson, num sintoma claro de que nossos superiores estavam sempre nos
avaliando e conversando a nosso respeito, o advertiu, meio rindo:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Jones, se molengas tivessem penas, você
seria um peru.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">A partir daí meu novo amigo ganhou o apelido de
Jones Peru, e era saudado por uma sinfonia de glu, glu, glus em falsete, sempre
que entrava no alojamento. A sua revanche, involuntária, veio pouco depois, por
ocasião de um exercício noturno no campo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Tínhamos de penetrar rastejando num perímetro
defensivo, percorrido por patrulhas armadas de lanternas. À medida que os
atacantes eram achados no meio do capim, caíam prisioneiros. Nossos corações
batiam com violência, a ponto que temíamos pudessem nos denunciar, quando os
“inimigos”, atraídos por algum ruído, parados junto a nós, quase nos pisando,
vasculhavam o entorno com o facho de luz e, para nossa incredulidade, não nos
descobriam, na noite sem lua. Mas cedo ou tarde tínhamos de nos mover; e fomos
caindo, um a um.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Quando por volta de uma hora da manhã os apitos dos
oficiais assinalaram o fim do exercício, só três homens haviam conseguido
entrar no perímetro. E um deles era Jones, ainda por cima o primeiro a atingir
o ponto designado. Ou seja, no momento em que tínhamos de nos comportar mais ou
menos como um bicho arisco e astuto, um felino capaz de enxergar no escuro,
Jones, integrado em seu elemento, com a velha experiência de caçador, fora
autor da melhor progressão individual de toda a Companhia, o que lhe valeu o
primeiro elogio dos superiores em todos aqueles meses. Os sargentos não
perderam a oportunidade para gozar com a nossa cara:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">– Quem diria, hein: o matuto deu um banho em vocês,
que se acham muito espertos!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">O inverno chegou, recebemos ceroulas e japonas.
Abandonar pela manhã a quentura dos cobertores tornou-se mais difícil; e com o
acréscimo de cobertas a arrumação da cama demorava dois ou três preciosos
minutos a mais, os lençóis, bem esticados, não podiam ter uma ruga, os
cobertores por cima deles desenhando meias luas. Os atrasos matinais aumentaram
e as punições começaram a ficar pesadas.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Certa manhã Jones demorou-se arrumando a cama e não
teve tempo de fazer a barba. O sargento Clark não percebeu a sombra mais escura
no seu rosto. A Companhia marchou batendo forte o pé no chão até o pátio
cimentado, para a formatura diária do Batalhão. Depois da continência à
bandeira comandada pelo toque de clarim, e da arenga do tenente-coronel Bonera,
nós, posição de descansar, fuzil ao lado do corpo, cabeça erguida, aguardamos
que o sub-comandante, major Clay, acompanhado de outros integrantes do
Estado-Maior, percorresse as fileiras, examinando-as em busca da menor falha. A
ansiedade subia dentro de nós nesse momento, por mais confiantes estivéssemos
de que não tínhamos nenhum botão faltante no uniforme, de que as fivelas dos
cintos faiscavam, e de que nossos coturnos podiam ser usados como espelhos. Até
que o olho treinado do major detectou Jones na fileira do fundo, a dos
baixinhos.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Encaminhou-se até ele:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Soldado, nome e número!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Jones
apresentou-se.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Não fez a barba hoje, soldado?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Não fiz, não senhor.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– E pode-se saber por quê?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Não tive tempo, senhor.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">A tensão tomava conta de nossa Companhia, como se a
falta de um se comunicasse de algum meio misterioso a todos. Até o capitão
Brickman à testa de nossa unidade parecia mais rígido do que o normal.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">A uma ordem do major, Jones saiu de forma. O
sargento Stone o conduziu até um pequeno estrado de madeira situado ao lado do
palanque, à frente da tropa. Um cabo recolheu o fuzil e o capacete do faltoso.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;"><span style="mso-spacerun: yes;"> </span>– Não podemos admitir o menor desrespeito às
ordens recebidas. E todos sabem que têm de fazer a barba todas as manhãs –
declamou o tenente-coronel ao microfone – O soldado aqui ao lado, para exemplo
da tropa, vai fazer a barba agora, na frente de todos.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Postado na fileira da frente, vento frio congelando
o nariz, pensei aflito, porra, por que tanta rigidez? Sabíamos que na zona de
guerra todo mundo cagava para regras e regulamentos: os soldados, cerveja
grátis à vontade e ao alcance da mão, viviam bêbados, ou drogados, com a
conivência dos superiores. Mas ali, longe dos combates, do medo e do horror, o
que imperava era o rigor dos princípios, as etiquetas da caserna, o formalismo
dos códigos.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Jones subiu no estrado. O cabo entregou-lhe um
espelho de mão e uma navalha. Sem água ou sabão, nosso companheiro – sim, nesse
momento mais do que nunca Jones era nosso companheiro, era cada um de nós, que
se imaginava em seu lugar – começou a raspar a face, o queixo, o pescoço,
fechando por vezes os olhos, torcendo a boca num rictus involuntário: era o
castigo a que dávamos o nome de “barba seca”. O frio da manhã que corava os
rostos deixava a pele sensível, tornava ainda mais difícil a raspagem,
realizada em meio a um silêncio de igreja, como se ali não estivessem reunidos
mais de 700 homens. Dava para ouvir a bandeira se debatendo. Os minutos se
alongavam, aquilo parecia não ter fim. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Quando terminou, o rosto de Jones, que nunca me
parecera tão ingênuo e juvenil, recobria-se de uma camada fina de sangue: um
palhaço pronto para o picadeiro. Consegui perceber como seus olhos haviam se
enchido aos poucos de lágrimas, de dor e humilhação. “Chega, está bom”,
decretou o sargento Stone, que ao pé do estrado acompanhava a operação. Jones
devolveu o espelho e a navalha, recebeu de volta o fuzil e o capacete, retornou
às fileiras. Desfilamos diante do palanque batendo firme o pé no cimento, a
formatura chegou ao fim. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">No alojamento, o sargento enfermeiro secou com gaze
e cuidado o rosto retalhado de Jones, passou uma pomada cicatrizante. Nesse dia
pouco se ouviu a voz de alguém em nosso alojamento. Ao fim do expediente, ao
nos recolhermos, a bagunça habitual foi substituída por uma estranha contenção,
como se alguém houvesse morrido.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Se antes falava pouco, a partir desse dia Jones
passou a falar só quando convocado, em geral monossílabos. Na mesa, mal tocava
a comida. Os homens não mais o chamavam por apelidos ou faziam piadas a seu
respeito. A cada momento alguém, puxando conversa, fingindo naturalidade, se
aproximava dele para oferecer chicletes ou repartir uma barra de chocolate: Jones
apenas sacudia a cabeça. Quando tentei falar com ele sobre Bolota e contei em
voz alta para os soldados Perez e Smith, vizinhos de beliche, algumas façanhas
do cachorro, “nem parece bicho, parece gente, vocês não acreditam”, não
consegui qualquer envolvimento da parte de Jones, que parecia escutar minhas
palavras sem ser atingido por elas.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Chegou por fim o grande momento do juramento à
bandeira, quando oficialmente deixávamos de ser recrutas, para ser considerados
soldados de verdade. Já havíamos feito a essa altura exercícios de tiro real, e
mergulhado em estreitas trincheiras que blindados atravessavam velozmente,
provocando uma fina chuva de terra sobre nossos corpos encolhidos no fundo. Ao
longo daqueles meses participamos de patrulhas noturnas, aprendemos a instalar
minas, a camuflar posições, atiramos de metralhadora e morteiro, transpusemos
riachos pendurados em cordas, rastejamos sob emaranhados de arame farpado. Em
longas marchas de até 35 quilômetros suportamos nas costas o peso de
metralhadoras ponto 30, de placas-base de morteiro, capacete de aço nos
amassando o cabelo, enquanto o suor escorria pela testa e nos queimava os
olhos. Sob o sol que nos assava a parte posterior do pescoço, até fazê-lo
parecer um naco de lombo mal passado, ou envoltos pela névoa fria da manhã,
tomamos o rumo de horizontes que pareciam se afastar, enquanto bolhas
rebentavam nos pés e frieiras esfarelavam a pele entre os artelhos: um caminhão
na retaguarda ia recolhendo os estropiados, para vergonha dos fracos.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Dentro de dois dias embarcaríamos para um campo de
treinamento, num Estado distante e quente, onde completaríamos nossa diplomação
na arte de matar e morrer, antes da Grande Viagem. Muda excitação atravessava
todos como uma corrente de eletricidade, nos deixava a boca seca e um vazio na
boca do estômago. Só Jones, olhar perdido, parecia cada vez mais indiferente a
tudo.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Nessa noite tive um sonho ou, pelo menos, pela
primeira vez me lembrei de um sonho ao acordar: nós nos afastávamos pela
estrada, em meio à noturna escuridão, iluminados pelos reflexos das chamas que
consumiam nosso quartel.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Manhã de formatura festiva, ânimo inaugural,
sentimento de aproximação de momentos decisivos, marchamos para o pátio
cimentado: era a despedida do local que fora o nosso lar nos últimos meses. O
capelão, equipado com uma Bíblia e ostentando a patente de capitão, nos
abençoaria e às nossas armas. O general Taylor em pessoa estaria presente e uma
banda militar executaria o Hino Nacional.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">A tropa postou-se ante o palanque, onde o tenente-coronel
Bonera conversava com outros oficiais à espera do general. Caniços metálicos,
dois microfones de pedestal aguardavam as vozes de estímulo dos grandes chefes.
À direita do palanque perfilava-se a banda, instrumentos no chão; à esquerda,
via-se o pequeno estrado de madeira, palco da humilhação de Jones. Enfurecida
como nunca, a grande bandeira tremulava no mastro. Posição de descansar,
fazíamos o que um soldado mais faz, esperar.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">E então, para surpresa geral, percebemos com o canto
do olho Jones adiantar-se, passar por entre nossa formação, abandonando as
fileiras. Caminhou em linha reta em direção ao estrado, num passo firme e
decidido. Tomado de surpresa, o universo imobilizou-se. Os oficiais no palanque
pararam de conversar, sem entender o que aquele soldado estava fazendo. <o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Meu coração disparou, meus olhos arregalaram-se: meu
pobre companheiro havia enlouquecido? Eu só pensava na punição a que estava
sujeito, por sua atitude fora de propósito.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Jones encostou o fuzil no estrado de madeira, tirou
o capacete. Subiu no estrado, encarou a tropa por segundos. Todos os olhos
estavam fixos nele. Puxou do cinto o punhal que recebêramos há pouco mais de
uma semana e ainda assim demorou uma fração de tempo para que todos entendessem
o que pretendia. E então ouvi o grito estrangulado de Ismael a meu lado,
enquanto oficiais e sargentos próximos do palanque corriam em direção ao
estrado. A voz do tenente-coronel Bonera soou com energia no alto-falante, em
meio a um sussurro que ameaçava alastrar-se pela grande mancha verde:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">–
Ninguém se mexe. Silêncio!<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoBodyTextIndent" style="margin: 0cm 0cm 0pt 5.65pt; text-indent: 0cm;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12pt; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 10.0pt;">Engoli o grito. Senti a vista embaralhar, o enjôo
subiu forte do estômago. Achei que ia desmaiar, o sangue me fugindo; disse a
mim mesmo que não tinha o direito de mostrar fraqueza. Agüentei firme, cabeça
levantada. Eu agora era um soldado.<o:p></o:p></span></div>
Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-52922711864391873522012-07-01T14:05:00.001-07:002012-07-01T14:05:02.036-07:00<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: center; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;"><strong>Pastel<o:p></o:p></strong></span></span></div>
<br />
<div align="center" class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-align: center; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">(Evelyn Grabin Herbstrith)</span></span><span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p><span style="font-family: Calibri;"> </span></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Ele continuava comendo o
pastel. Um daqueles pastéis sebosos, tipo de rodoviária, do tamanho de um
prato. Mordida após mordida ele tornava-se mais e mais insaciável e o pastel
parecia cada vez menos suficiente. A gordura pingava na mesa de plástico, essas
da Pepsi-Cola, forrando-a como uma toalha gordurosa. Ela colocou a mão delicada
na coxa dele e sugeriu:<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Amor, talvez a gente devesse conversar...<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Ele a ignorou. Não de uma
maneira bruta, ele não era assim, mas com um simples gesto da mão, que indicava
que ele precisava acabar o pastel. Como se o pastel fosse uma espécie de
digestor da conversa, era ele mesmo que sempre dizia que não se deve discutir
de barriga vazia ou de cabeça quente... Se bem que de boca cheia também não era
uma boa ideia. Ele seguia comendo o pastel em um alvoroço inacreditável –
estaria ela passando vergonha até ali naquele botequim? - e, por isso,
Amandinha contentou-se em juntar as azeitonas e ovos despedaçados e caídos ao
redor do prato. Percebeu, olhando no olhar dele, diria ela mais vazio do que
nunca, que ele não estava postergando a conversa, mas somente com fome.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Tudo bem... – ela deu um
risinho e finalmente concordou.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Quando ele terminou seu pastel
(e como fora grande esse pastel), limpou as mãos em um “espalhanapo”,
esfregou-as na calça, analisou-as brevemente e pegou as de Amanda com o seu
jeito estranho e um pouco grotesco de dar carinho.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Fala, Mandinha, estou pronto
pra ouvir você.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Bem... – ela pensou em fazer
uma pausa dramática - faztempoqueeuvenhopensandonissomasvocêsabecomoeusoueunãoconsigoesconderascoisaspormuitotempoentãoeurealmenteacheimelhorelaborarumjeitodetefalarissosemmuitosrodeiossabeporqueeuseiquevocênãogostadissoe…<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Mandinha, fala. <o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Era sempre assim. Em casa tudo
parecia extremamente coerente, enquanto ela repetia com a voz esganiçada as
palavras em frente ao espelho. Uma auto-confiança bem peculiar, contudo, no fim
das contas, ela acabava enrolando e criando todo um caso ao redor do que era
totalmente trivial. Nem tão trivial assim, sabe como o amor é para os jovens,
mas não custaria tanto a falar.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Mandinha? – ele indagou-a com
os olhos também, apertou as suas mãos como um estímulo para que falasse logo.
Ela podia sentir o óleo ensebando suas mãos.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Eu te amo!<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">As palavras saíram duras de sua
boca, mais altas do que o planejado e talvez um pouco mais estridentes que o
normal, e ela sentiu como se, naquele exato instante, a ligação entre os dois tivesse
ficado muda, os créditos do orelhão haviam acabado – ou haveria o outro soltado
o telefone?. Ela esperou alguma reação. Ele coçou a barriga por baixo da
camiseta e manteve os olhos duvidosos mirando os dela. Ela esperava, no mínimo,
que ele agradecesse se não fosse retribuir o sentimento, pois se ele apenas
agradecesse ela poderia ir embora menos mal-amada e transtornada, precisaria
comer menos chocolates, apenas uma caixa de bombons quem sabe. <o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Mas, e se nem isso ele fizesse?
Ou se pior, recusasse todo amor que ela tinha para dar? Achasse o sentimento
asqueroso... Ela já estava transtornada. Procurava não pensar nisso, sua mãe
dizia que pensamento negativo atrai coisas ruins, que ela devia imaginar como
se ele já estivesse falando que também a ama e talvez até escolhessem os nomes
dos filhos naquela mesma noite. <o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Nossa, Mandinha… – ele
hesitou por fim.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">- Sim? – ela pressionou
esperançosa, quase como uma pedinte, enquanto era desconfortavelmente
interrompida por um enorme ronco.<o:p></o:p></span></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; text-indent: 35.4pt; vertical-align: baseline;">
<span style="color: black; font-size: 14pt; line-height: 115%; mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-font-size: 12.0pt; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><span style="font-family: Calibri;">Então, aconteceu. De uma
maneira inevitável, quando ele abriu a boca novamente tudo veio à tona. Tudo. O
pastel e a carne moída e o ovo e a azeitona e a salsinha e uns respingos de
óleo turvo. Assim, em cima da mesa, esparramados com a jura de amor de Amandinha.
Ele não disse nada mais além daquele vômito um tanto quanto significativo... Mas
também não precisavam mais palavras. Amandinha levantou-se, enxugou a borda da
saia, deixando um borro marrom gosmento, e foi embora, engolindo, como um
vômito que voltava-lhe ácido ao estômago - um refluxo, todas as palavras que
havia dito.<o:p></o:p></span></span></div> Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-89850977040906195222012-03-27T07:47:00.002-07:002012-03-27T07:47:59.249-07:00Mesa de bar (Nanda Barreto)<span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Eu teria dito que largaria tudo, que mal me importavam aquelas pessoas todas conversando amenidades em volta da gente. Teria levantado e te olhado estridente enquanto todas as outras bocas calavam. Devia ter aproveitado o momento de sigilo absoluto, quando até o tilintar dos copos guardou silêncio pra te receber. Eu deveria ter ido até tua mesa onde você sorria aquele riso suave de já quem bebeu doses pares. Aquele riso inebriado, de boca escancarada, libertador das vontades mais dissimuladas.<o:p></o:p></span><br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; tab-stops: 28.0pt 56.0pt 84.0pt 112.0pt 140.0pt 168.0pt 196.0pt 224.0pt 252.0pt 280.0pt 308.0pt 336.0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Teus dentes no meu peito, eu ficava imaginando, enquanto te olhava pateta, a dois metros de ti. Devia sinceramente ter me atirado no teu colo logo quando tu chegastes. Ter te feito entender que eras meu. Mas eu já sabia. Sabia que a gente se amaria loucamente, que seríamos líquido noites inteiras. E sempre acordaríamos secos um do outro. Sempre querendo mais. Sabia de ti na minha cama. Das minhas roupas no teu armário. Dos meus cds confundidos nos teus. Dos livros que ninguém mais saberia de quem eram. <o:p></o:p></span></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; tab-stops: 28.0pt 56.0pt 84.0pt 112.0pt 140.0pt 168.0pt 196.0pt 224.0pt 252.0pt 280.0pt 308.0pt 336.0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Eu intuía teu cheiro. Horas a fio numa atmosfera que só nos dois poderíamos compreender. Poesia, marxismo, lirismo, budismo. Psico isto e aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou grafia. E haveria tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de seio e pescoço. Sabia que tu terias ciúmes do meu ex-namorado. Que perguntaria se ele me amava tão bem quanto tu. Depois disso, brigaríamos e eu te taxaria machista, insensível, calhorda. Sabia que em seguida irias embora e levarias alguns cds meus ou teus. Sabia que voltarias. E que irias e que voltarias muitas e muitas vezes.<o:p></o:p></span></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; tab-stops: 28.0pt 56.0pt 84.0pt 112.0pt 140.0pt 168.0pt 196.0pt 224.0pt 252.0pt 280.0pt 308.0pt 336.0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Vozes intermediárias anunciavam a noite em que eu te ligaria dizendo que não, iria me atrasar, não poderia te acompanhar naquele jantar na casa do teu amigo muitíssimo enfadonho de longa data. E te pouparia do adjetivo enfadonho por nada a mais do que esse cinismo hipereducado que a gente adquire para economizar o outro dos nossos pensamentos mais limpos. E, antes de desligar o telefone, te perguntaria se estava tudo bem. E tu dirias que sim, estava tudo certo. Uma resposta cansada e aborrecida, como se tudo o que esperasse de mim fosse a decepção. Como se eu te prorrogasse a vida. <o:p></o:p></span></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; tab-stops: 28.0pt 56.0pt 84.0pt 112.0pt 140.0pt 168.0pt 196.0pt 224.0pt 252.0pt 280.0pt 308.0pt 336.0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Antevia o momento demasiado em que passado e futuro se tornariam carregados demais e esqueceríamos, eu e tu, de gozar o presente. Nos tornaríamos esquivos e evasivos como toda a gente. E criaríamos a defesa. Emergiriam as culpas. Supus as amarras. E nossa ânsia paralela de desviar. Fugir das cortesias sem apreço. Dos abraços sem calor. Dos talões e cartões. Do crédito. Do débito. Das contas. E tantas outras correntes. <o:p></o:p></span></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt; tab-stops: 28.0pt 56.0pt 84.0pt 112.0pt 140.0pt 168.0pt 196.0pt 224.0pt 252.0pt 280.0pt 308.0pt 336.0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Já atinava minha insegurança diante do teu poder de fazer interesse nos outros. Teu amor inseduzível. E eu sofreria tanto. Choraria no teu peito. E seria menina de novo aos domingos no parque contigo. Previa os prazeres. As delícias a dois. A velha cegueira da verdade única. Sabia exatamente o que de haveria de vir. Em nome da razão, mesmo sem perceber, tiraríamos proveito da fraqueza um do outro. E enumeraríamos cada um dos nossos defeitos, didaticamente.<o:p></o:p></span></div><br />
<div class="MsoNormal" style="margin: 0cm 0cm 0pt;"><span style="color: black; font-family: "Verdana","sans-serif";">Segunda-feira, a gente ali no bar. Dois metros ou cinco segundos de ti. Distante uma palavra do nosso futuro amor. Prestes ao que fosse. Eu realmente teria dito que mal me importava aquela gente toda, teria me lançado nas tuas mãos vazias de mim. Eu teria dito que largaria tudo. Mas quis nos livrar do perigo. Achei melhor não. Longe de tudo, pedi mais uma dose sem gelo, caprichei no katchup da batata frita e fiquei lendo teus lábios, enquanto percorria meus medos.<o:p></o:p></span></div> Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com12tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-51347694927879900422011-08-17T16:15:00.000-07:002011-08-17T16:15:06.244-07:00O stripper (Mariano Mendonça Neto)<br />
O meu negócio é tirar a roupa. Ficar de sunga e escancarar os dentes para as coroas. Tudo é feito de maneira profissional. Gilete para depilar e academia todo o dia. Não gosto da depilação, mas é o meu trabalho. Dostoievski entenderia. Leio sempre o mestre russo. Entre uma e outra apresentação avanço nas páginas de seus romances. Reconheço que minha classe é de iletrados. Homens toscos. Embrutecidos pela musculatura avantajada. Dependemos desta estética apolínea. Trabalhamos com o olhar, com o desejo, com o imaginário das pessoas. Sou free lancer. Faço shows em casas noturnas e atendo na casa das clientes. Antes das apresentações, um banquinho de cozinha me basta. Fico ali, vestido de comodoro, de índio apache, de bombeiro, lendo os romances, esperando para entrar em cena. Minha vida profissional de stripper começou por acaso. Trabalhava numa destas livrarias de shopping. Nos intervalos fumava um cigarrinho, lia um livro. Daiane, minha colega, fazia o mesmo. “Olha, Paulo. Presta atenção. Os caras escreveram demais. É muita ideia, muita sacanagem. Não dá para ler tudo de bom que foi escrito. Escolhe só o filé mignon. A carne de pescoço, o Sidney Sheldon deixa no balaio.” Assim foi feito. Às vezes eu pisava na bola. Daiane me encontrava com um Paulo Coelho, com um Dan Brown. Aí eu tinha que ouvir. “Porra, eu já falei. Lê os russos, os franceses, os caras que cagam grosso.” Daiane havia conhecido um professor universitário que a iniciara na grande literatura. Se o professor comia? Eu não comi. Mas graças a Daiane meu vocabulário aumentou. E foi também graças a ela que pude desenvolver minha arte. Estava no almoxarifado, coçando o saco, lendo “Crime e Castigo“ quando Daiane me perguntou: “Paulo, você vai quebrar um galho para mim. Tirando esse monte de cabelo do seu peito, você serve. Tem o tipo apropriado para o serviço.” Nesta época, eu estava matando cachorro a grito. Recebia o salário da livraria que quase não pagava o aluguel da pensão. Daiane fazia bicos de vez em quando. Trabalhava de garçonete ou recepcionista em feiras agrícolas. Sabia o caminho das pedras. “Olhe, Paulo, eu vou te dar um endereço. Você vai fazer uma substituição. O cara adoeceu, pegou uma pereba no tico. Estão precisando de alguém com o teu porte. Alguém com músculos e alguma iniciativa. Vai lá que acaba entrando um trocado.” Imaginei logo o tapete vermelho estendido, pessoas agitadas na fila e eu duro que nem uma estaca, fazendo a segurança de um bar. Mas a encrenca era maior. “Pensa bem, Paulo. É só tirar a roupa e fazer cara de gostoso. Um bando de mulheres insaciáveis querendo se divertir. É só isso.” Eu quis ponderar sem muita convicção. “Eu sou um pouco tímido. Não sei se levo jeito para a coisa.” “Paulo, é pegar ou largar. Tem uma grana boa.” Peguei o endereço e li: “Rua das Acácias 98. Falar com o Baixinho.” Perguntei ainda para Daiane se eu tinha que levar alguma roupa especial, vestir algo mais adequado. “Não, Paulo. A jogada é ficar nu. Entendeu? Nu, porra!” Terminado o expediente, peguei o ônibus e me acomodei no fundo. Fiquei observando as pessoas. Seus silêncios, suas dissimulações. O velho russo gostaria de sentar a bunda no plástico, numa temperatura de 40 graus e eviscerar a alma dos homens. Dostoievski era batuta. Sua narrativa caótica, seus personagens desesperados, sua religiosidade inalcançável eram também ferramentas de um stripper. Uma espécie de stripper da alma humana. Um revelador, um exibicionista do melhor e do pior do espírito humano. Mas, ali, naquele momento, era o suor bruto que se revelava. E um ou outro espertinho dando uma coxeada nas balconistas e estudantes que voltavam para casa. Consegui ler mais algumas páginas do romance antes de descer na parada. Fui caminhando tranquilo pela rua. Eu conseguira dar uma lavada nas axilas e renovara o desodorante. Para enganar a torcida. Estava anoitecendo e não foi difícil encontrar o endereço que Daiane me dera. Uma luz forte iluminava o painel onde se lia “Lady’s Club”. No guichê, uma velhinha de cabelo azul tricotava algo. Levantou os olhos, que também eram azuis, e perguntou: “Trouxeram a cidra? Não vão me quebrar as garrafas. Eu esperava vocês mais cedo. É pelo corredor ao lado. Cuidado com o cachorro!” ”Sou o substituto. Foi a Daiane quem me mandou.” “Baixinho, o rapaz que veio substituir o Marcelão chegou.” Logo a porta se abriu e um sujeito que parecia um halterofilista em miniatura surgiu na minha frente. “Está atrasado. Entra logo que eu tenho que explicar o nosso esquema.” Entrei no salão e o Baixinho me puxou pela manga. Era um bar com mesas e cadeiras. Estavam dispostas ao redor de uma passarela que partia de um pequeno palco ao fundo. Caixas de som estavam estrategicamente localizadas pelo salão. Uma escadinha dava acesso à passarela. Baixinho subiu com dificuldade, mas subiu. “Presta atenção, pois não tem mistério. Hoje a função é para despedida de solteira. São meninas de família, pessoas educadas, distintas. Vai tirando a roupa devagarzinho, com manha, vaselinando no olhar. Dá uma requebradinha e tira uma perna da calça, dá outra requebradinha, tira a outra. Botão de camisa é mais um detalhe. Ajoelha e oferece o botãozinho para as clientes abrirem. Porra, esse teu peito tem cabelo prá caralho. Parece um urso!” Cheguei a me examinar. Estava lendo um romance forte, denso. Nunca se sabe. Mas estava tudo igual.<br />
<br />
Passamos pelo palco e entramos naquilo que poderia ser chamado de camarim. Três sujeitos conversavam animadamente. Baixinho fez as apresentações e continuou o seu curso rápido para stripper. “Tocou a música e já entra dançando. Não raciocina. Entra rebolando, sem afobação. Vai se soltando aos poucos, sem pressa. Vocês entram juntos na primeira música, depois vem o número solo. Aí tira tudo, cueca, sunga, lente de contato, o que for. Ô Luizão, alcança aí a roupa de gladiador romano.” O Luizão era um cara alto, forte, com uma barba que lembrava o Falcon. Abriu o armário e puxou lá de dentro um cabide com umas tiras de couro. Era o equipamento de gladiador. Baixinho pegou a fantasia e a avaliou por instantes. “Vai funcionar. Essa aqui é para o primeiro número. O smoking, ali na cadeira, é para a apresentação solo. Vamos arrebentar essa noite.” Peguei o cabide e comecei a me fantasiar de stripper. Os outros dois caras vieram me oferecer um gole de cachaça. Partilhavam uma garrafa que já estava pela metade “Caralho, ô meu. Repara nesse peito, Gledson. O cara é um porco-espinho!” Gledson fez uma cara de espanto. Pegou um frasco que estava no armário e me entregou. “Coloca essa loção na pele, no corpo todo. É loção de amêndoas. É para dar um brilho debaixo da luz. Não vai me gastar todo o frasco.” Logo percebi o movimento frenético do salão. Nossas freguesas começavam a chegar. O ruído era intenso. Foi Luizão quem tomou a iniciativa. Pediu para que déssemos as mãos em círculo. Uma pequena oração foi feita, quase que sussurrada. Havia entrega e concentração naquela modesta homília. Instantes depois já estaríamos nus, plenamente nus. A corrente se fortalecera. Estávamos prontos. O Baixinho voltou e fez a sua última recomendação. “Olha, o troço não tem segredo. Faz o que eles fizerem. Vai imitando o Luizão. Olha para o público e ri, ri muito. Na hora do smoking, abusa um pouquinho mais. Provoca que vai abrir e não abre. Prá arriar as calças também. Não entrega o ouro de cara. Vai arriando com classe, com estilo.” Foi então que comecei a refletir um pouco. Meu desejo era entrar logo naquele salão, tirar a roupa e sair correndo com a grana no bolso. Sem muita frescura. Apenas entrar e ficar nu. Mas logo eu descobriria a arte de tantalizar. Soltar a isca com paciência. Cultivar o olhar alheio através de um encantamento sinuoso, uma hipnose lasciva que promete, mas não realiza. É duro quando se é jovem. Há tanto para se aprender. E logo eu aprenderia, digamos, na carne. Começamos a ouvir a voz do Baixinho no sistema de som. Fazia as primeiras apresentações e garantia uma noite inesquecível. Uma despedida de solteira sem voltas. As freguesas gritavam, batiam os pés, assobiavam com força. Eu sabia. A partir dali, não tinha volta. Eu estava enrascado. O sistema de som largou a primeira música. Entramos os quatro no palquinho balançando as bundas no ritmo acelerado. Entrei por último e acabei ficando na ponta direita, jogando recuado. Fui seguindo a rapaziada, embromando ali com as tiras de couro. De vez em quando, um de nós avançava na passarela e rebolava um pouco. Tirava o traje de combate e ajoelhava no milho. Ficava ali fazendo biquinho para as freguesas. Um ou outro trocado era enfiado na sunga. Peguei logo o jeito. Avancei decidido pela passarela e encarnei o gladiador romano. Era comigo mesmo. Já fui tirando o saiote, o dólmã de couro e se tivesse lentes de contato tirava também. As freguesas deliravam com a minha performance. Comecei a inventar novos passos de dança. Ampliava o movimento dos quadris e oferecia o sexo com impudica irresponsabilidade. Os gritos aumentavam a cada passo, a cada provocação que eu fazia. Consegui ouvir o Baixinho no microfone. ”Pode tocar, mas não arranca pedaço! Esse é o fabuloso elenco do Lady`s Club! Artistas renomados, com experiência internacional.“ Fomos para o camarim e logo vesti o smoking. Na minha vez, já entrei esparramando as pernas, gingando com malícia e estendendo as mãos para as clientes. Baixinho estava na plateia, ao lado da garota que se despedia dos bons tempos. O mestre de cerimônia usou o microfone de novo. Pedia que eu descesse até eles. Queriam minha presença ali, bem pertinho. Desci pela escadinha e me aproximei da garota. Fui fazendo um gingado malemolente, bem debochado. Cheguei perto e lasquei um beijo na boca. Um beijo bem molhado. E ainda ofereci os botões da camisa para que fossem violados. Logo tinha mais gente em volta metendo a mão. Queriam mesmo era arrancar um naco do bacana aqui. Não tive dúvida. Puxei a garota pela mão e a levei para a passarela. Lá em cima realizei os últimos movimentos de minha apresentação. Fiquei dançando nu, me esparramando em volta dela. Os aplausos vieram em seguida. Curvei-me ao estilo dos atores de teatro tal qual um menestrel desnudo. Desejei boa sorte à futura noiva e retirei-me de cena como um experiente stripper. Na coxia, Luizão esperava-me com um robe de chambre e uma taça de cidra. “Fez tudo certo, campeão. Já pode fazer parte da trupe.” Peguei a taça e fui para o camarim. Meus colegas se revezavam agora nas apresentações. Trocavam de roupa e voltavam rápido para o palco. Sentei numa poltrona toda esburacada por pontas de cigarros. Fui relaxando até que acabei tirando uma pestana. De repente acordei e vi Baixinho diante de mim. “Foi bom. Se quer continuar, vai ter que usar um Presto Barba nesse peito. Vamos lá, rapaz. Todo mundo já foi embora.” Puxei um cigarrinho e fiquei ali fumando, pensando na vida. A noite fora lucrativa e isso me bastava. A velhota do cabelo azul apareceu de repente. Estávamos sozinhos no teatro. “É uma pouca vergonha! Com o troço todo para fora! Essa juventude não respeita mais nada! Veste, veste logo a calça e vai embora.” Vesti minha roupa e deixei a velhota cacarejando no meio das fantasias. A noite estava quente e soprava uma leve brisa. Eu tinha recebido o suficiente para pegar um táxi. Levantei o dedão e o carro estacionou na calçada. Sentei ao lado do motorista e dei as coordenadas. O taxista queria conversa. Falava das manchas solares, dos mistérios da superfície de Marte, da teoria do caos. “E aí os caras dizem que até um prego pode mudar toda a tua vida e...” Fez uma pausa para frear diante do semáforo. Aproveitei e perguntei: “Você quer ouvir uma boa história?”. O taxista silenciou. “Bom, é sobre um cara que mata uma velhota. O cara é bom, sabe das coisas. Mas ocorre um lance que ele não tinha previsto. O nome dele é Raskolnikof e ele não tinha medo.” Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-28785260391325755732011-05-03T11:19:00.000-07:002011-05-03T11:19:30.270-07:00A tulipa descartada (Guilherme Bica)Descia as escadas da redação com a pressa de quem deixou para trás quatro provas de páginas ímpares e pares para revisar. Uma amiga dela me avisara que ela queria falar comigo, queria acertar tudo, saber se era isso mesmo, se tinha acabado daquele jeito, se já era o fim. Eu passei pela porta do prédio, ganhei a rua e vi Carmela sentada num daqueles toscos exemplares de mesa metálica que normalmente pertencem a botecos malcheirosos, mas ali preenchia a calçada em frente a uma sorveteria. E aquela imagem tão insólita de uma guria tão linda como Carmela recostada num objeto de invariável natureza ordinária, que dava sinais de gasto e perdia a cor branca nas laterais para denunciar a verdadeira pele de um cinza metálico escuro, aquela imagem me causou de pronto uma vulgar estranheza inicial.<br />
<br />
Juntei-me a ela, puxando uma cadeira de uma mesa vizinha, e tentei um Oi para avaliar se me respondia. Ao que Carmela suspirou algo que não compreendi e obrigou-nos silenciosos por alguns segundos. E aquele silêncio poderia calar todos a nossa volta: os taxistas narradores de piadas obscenas, o cara engravatado da revenda de automóveis que anunciava a promoção do dia e até o carro de som num volume anormal que convidava a todos para a festa de sábado no clube.<br />
<br />
E aí, eu perguntei pra ela, e aí ela sorriu aquele sorriso irônico que só ela sorri, mesmo que com quinze anos poucos saibam o que significa ironia, e me despejou uma centena de lamentos do tipo Tu não tava comigo?, Eu achei que a gente estava começando a se entender, mas agora já não sei, O que tu quer, afinal?, Tem que escolher!, Eu não vou dividir ninguém!, A gente parecia bem, e o tom agressivo foi minguando à medida que ela começou a encolher os lábios para não chorar e eu não me lembro das outras reclamações pertinentes de Carmela, só recordo que tentei pegar em sua mão e fui repelido rapidamente.<br />
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Ela voltou a ficar muda e a única coisa que se movia nela era a franja bem aparada, dividida ao meio, expondo a testa e balançando pouco com o vento que não decidia se vinha ou ia embora. Parecia que só eu via a discrepância daquele relacionamento incipiente que não deveria vingar. Eu na faculdade, eu estagiando, eu tomando cerveja, vodca, uísque, eu lendo Neruda, Nassar, Faulkner, eu ouvindo Tom, Chico, Vinicius, eu vendo Glauber, Godard, Antonioni, eu distante tantos anos do colégio. Ela denunciada pela juventude da camisa verde e larga desenhada pelo brasão da escola que encobria o seio esquerdo, ela vestida com a calça preta do uniforme juvenil ainda no corpo, ela refém de toda aquela limpeza que nos tornava tão afastados, a limpeza na boca, nos dentes, nos braços, cabelos e até na voz.<br />
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Na volta da mesa da qual recendia uma tensão lúgubre e lúbrica ao mesmo tempo, as sete amigas de Carmela me julgavam e mimetizavam o sorriso irônico, mas sem a propriedade da boca verdadeira. E me deu uma vontade de contrariar tudo o que eu havia demonstrado sem palavras nas últimas semanas – as ligações não atendidas, as mensagens não respondidas –, e me ajoelhar ao lado de Carmela para pedir desculpas e dizer que ela era a mais bela guria que eu já havia conhecido, que eu não estava nem aí para eu ter vinte e quatro e ela nove anos a menos, que tudo daria certo daqui pra frente.<br />
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Mas não dava. E foi o que eu disse. Carmela, não dá! Sei que ela ficou surpresa. Porque aqueles olhos cor de tijolo claro e o corpo em sublimada adolescência e fulminado com justificada sede por todos os homens pelos quais ela cruzava – e ela alcançava a idade de tomar consciência disso – não estavam acostumados à rejeição. A minha feiúra discreta cometia a insolência de descartar a beleza de tulipa de Carmela. Ela se recompôs, amparada pelas amigas, e me disse Se mudar de idéia, me avisa, e aquela frase eu sabia que traria comigo por muito tempo ainda, tanto que estou eu aqui a escrever sobre ela, impelido talvez por uma esperança ingênua de que um dia ela leia estas linhas e reflita na pele de um espelho honesto com sua beleza aquele mesmo sorriso limpo e irônico, mas agora com outro sentido, mais autônomo e consciente. <br />
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Elas deixaram a sorveteria e encaminharam-se para a esquina, Carmela com os braços entrelaçados nas amigas. Ainda tive tempo de subir as escadas, correr até a sala de meu chefe e esticar o pescoço para fora da janela e vê-la sorrindo e me esquecendo, antes de sumir atrás de um ônibus que resolveu aparecer justo naquele momento inoportuno. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-32495634813119817872011-04-14T10:48:00.001-07:002011-04-14T10:48:37.248-07:00Noturno (Gecy Belmonte)O vento bate com força nas árvores em frente a varanda do quarto. Nuvens escuras se superpõem rápidas, prenunciando tempestade. Nenhuma estrela no céu. Pela janela entram riscas de luz vindas do poste que ilumina a rua. Ele fecha os olhos com força. Precisa dormir cedo e parar de fazer manha, esta é a determinação dos pais. <br />
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Ao lado da cama pode enxergá-lo no escuro, os olhos esbugalhados brilham e o bafo fétido dele está bem próximo. Cobre a cabeça com o edredom, o aperto no peito volta e a respiração escorrega fina pela traquéia até chegar à boca e ao nariz, sente o suor gelado molhar as mãos e os pés. Precisa resistir, inspirar e expirar bem devagar (isso ajuda), não fazer barulho, ele deve acreditar que está dormindo. Ou morto, assim o deixará em paz.<br />
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Mas como fazer para ficar ali, com o medo crescendo, crescendo. Sabe que não dará conta por muito tempo. Quer cumprir a ordem dos pais para não mudar para o quarto deles no meio da noite, ir atrás da mãe, como passou a fazer nos últimos meses. Mas o pavor que sente ali, sozinho, no escuro, é maior que o temor do castigo no dia seguinte. Retira as cobertas, coloca as pernas para fora, primeiro uma, depois a outra. Levanta-se, tem os passos abafados pelo carpete, assim não há risco de despertá-lo. Quer a mãe, só ela consegue acalmá-lo quando o pânico noturno chega. <br />
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Alcança a porta, gira o trinco com cuidado e saí. Deixa o inimigo lá, fechado, com os brinquedos, os livros que adora e as figuras do Super Homem que ornamentam as paredes azuis do quarto. Pode ser que, quando despertar, ele se distraia e não vá atrás dele. Corre descalço até o quarto dos pais, ao fundo do corredor, e abre a porta de mansinho. Não há ninguém. <br />
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Ouve vozes que vêm do escritório, no andar de cima da casa. Dirige-se para lá, sobe os degraus de dois em dois. A porta está fechada. Escuta a voz alterada da mãe e do pai, e para. Eles gritam um com o outro. O barulho da chuva que começou a cair o impede de ouvir o que dizem. Assusta-se, isso nunca aconteceu antes. Enquanto está ali, criando coragem para entrar, percebe um ruído vindo da parte debaixo. É ele, deve ter acordado e está à sua procura, é capaz de sentir seu arrastar paquidérmico rumo às escadas. <br />
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Quer a mãe, precisa dela e não ficará ali, parado, no piso frio. Empurra a porta, os pais viram-se surpresos, cessam a discussão, mas a fratura está exposta, sem sangue, só o osso partido ao meio. Corre para o colo da mãe e percebe que ela chora. Não um choro comum, mas um tipo mais fundo, como um soluço para dentro, lágrimas escorrendo pela face. O pai, em pé, do outro lado da mesa, olha os dois sem saber o que fazer, mas também está triste, tem os ombros caídos, parece mais velho sob a luz branca do escritório. <br />
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A mãe o abraça com força, beija seu rosto, seus cabelos. Está tremendo, tem uma certa aflição nos dedos. Por um momento ele aquiesce no enrosco morno e seguro. Pode escutar a batida dos corações, os ritmos de ambos se fundem, mãe e filho são um só, fitas de dupla face. Entende que algo muito grave está acontecendo, quer perguntar mas falta coragem (se não souber pode ser que o não-dito não se realize e que a possibilidade dessa coisa ruim se estanque). Agarra-se ainda mais ao pescoço da mãe, não consegue chorar ou emitir som, o ar começa a faltar, pensa que vai morrer (mas crianças não morrem, viram estrelas). Quer sair dali, quer levar o pai e a mãe juntos, os três no aconchego da grande cama de casal, para onde está acostumado a fugir, mesmo correndo o risco de ser levado de volta para o seu quarto no meio da noite ou de ficar de castigo no dia seguinte. <br />
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O pai, por fim, começa a dizer alguma coisa, mas ele não escuta. No canto do escritório, perto da estante cheia de livros e documentos, vê a mala grande que ele usa sempre para viajar. Está pronta. Do outro lado da porta, ainda fechada, sabe que o inimigo o alcançou, resfolegante pelo esforço de subir a escada. A chuva e o vento tornam-se mais fortes, ouve o estrondo de um trovão e o de um transformador que se rompe, bem perto. A luz se apaga. Sem velas ou lanterna, os três ficam ali, mudos, no escuro. O silêncio faz a noite tornar-se mais lúgubre, medos guardados afloram, sente que todos os monstros maus estão presentes na pequena sala.<br />
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Agarra-se mais ao pescoço da mãe, quer retê-la para sempre. O pai diz para se acalmar, garante que não há porque ter medo, enquanto usa o celular para jogar um pouco de claridade sobre a mesa, na direção deles. Em minutos a luz retorna. O pai diz que está na hora de ir, pega a mala, as chaves do carro, o paletó, dá-lhe um beijo na cabeça e parte, prometendo sempre vir vê-lo. Mal olha para a mãe, cujo rosto se mantém paralisado, como se as lágrimas que rolam viessem de outra face que não a sua. Sabe que o pai não voltará, embora não entenda bem o que está se passando. Não sabe o que fazer, não quer que o pai vá embora, mas, ao mesmo tempo, fica contente, não será mais castigado, a mãe, agora, é somente sua. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-20098293516604392592011-01-20T10:53:00.001-08:002011-01-20T10:53:57.641-08:00Zaaap! (Marcel Citro)“Como vocês podem ver, lá embaixo existem vestígios de estruturas, de edifícios... Esta cidade provavelmente foi construída próxima a uma bacia hidrográfica. Lembrem-se, falamos há pouco que já existiu água aqui.”<br />
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“É claro que havia urbes mais importantes, mais sofisticadas na superfície estéril que vocês vêem agora: Emissões de rádio mencionam lugares que protagonizaram os eventos mais marcantes da época que antecedeu o colapso. Hoje, ‘Pequim’ e ‘NY’ são termos vazios de sentido, mas grande parte das ondas captadas vieram destes locais. As últimas, inclusive, foram enviadas de NY. De qualquer maneira, estamos neste ponto do planeta e não em qualquer outro porque aqui se situa a cidade melhor preservada. Chamava-se Porto Alegre.”<br />
<br />
“Estão vendo, ao longo do leito seco daquele rio? As edificações estavam dispostas na sua margem direita, em sentido longitudinal. Por favor, aproximem um pouco mais os seus visores halogêneos: viram? Chamavam-se edifícios. Assim como os mais fortes exploravam os mais fracos, os habitantes desta cidade também moravam uns sobre os outros, não sabemos ainda os critérios que utilizavam para definir cada posição. Há bastante controvérsia sobre o modo como interagiam estas pessoas, há os que sustentam que alguns viviam diretamente sobre o solo, e até mesmo embaixo dele.” <br />
<br />
“Estudos revelaram que havia também construções menores, habitadas por um grupo familiar individualizado. Não sabemos se estas estruturas isoladas era um indício de abundância ou não. De qualquer forma, destas construções menores quase nada restou.”<br />
<br />
“Vou explicando enquanto vocês observam. Só há três certezas sobre esta civilização: comiam pedaços de animais mortos, utilizavam o ar como meio de propagação de várias línguas faladas – lembrem-se, falar era valer-se de um aparelho fonador para produzir vibrações em estruturas grosseiras chamadas cordas vocais – e adotavam um denominador comum de troca chamado ‘dinheiro’. Na verdade, era mais do que um denominador, constituía-se na religião mais influente aí embaixo. A maioria destas pessoas pautava sua vida em função dele, colocava sua obtenção como tarefa primordial a ser executada por todos os grupamentos celulares, acima de tudo e de todos”. <br />
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“Estou projetando agora uma halografia multidimensional do conteúdo do disco que encontramos na sonda espacial Voyager... isso é a imagem de um ser humano...curioso, não é? Aqui, imagens de outros planetas deste sistema solar, eles detinham uma tecnologia ainda bastante embrionária quando ocorreu o colapso. Procuramos muito a imagem deste...deste deus nas diversas faixas de cobre do disco, mas não encontramos nada que pudesse se enquadrar”.<br />
<br />
- Será que não era justamente isso, o dinheiro, que determinava o lugar de cada um nos edifícios que estamos vendo?<br />
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“É possível. Pesquisas demonstraram que a maioria dos seres humanos vivia em lugares improváveis. Parece que o determinante para isso teria sido justamente a falta de dinheiro. O que não é de estranhar, um dos poucos estudos extensos realizados neste planeta, logo depois de termos encontrado a Voyager, revelava que dez por cento da população da terra controlava oitenta por cento dos recursos. Não é à toa que a civilização acabou por colapsar por completo.”<br />
<br />
- E o colapso aconteceu com aquela história do estrondo ou do...como era mesmo a palavra?<br />
<br />
“Bem lembrado! Na última transmissão de rádio que detectamos, alguém citando outro ser humano chamado T.S. Eliot declarou que o mundo não iria acabar com um estrondo, mas com um gemido. Não sabemos exatamente o que é um gemido, mas parece bastante poético, não é?”<br />
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“Bom, pelo jeito não há mais questionamentos. Estou percebendo que todos estão concentrados nas observações, mas tenho que avisá-los que nosso tempo aqui acabou. Ainda temos que visitar, neste quadrante, os anéis de saturno, a nebulosa de Órion e as anãs-vermelhas perto do quasar oeste”.<br />
<br />
- Mas afinal de contas, isso tudo acabou com um estrondo, ou com o tal de gemido?<br />
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“ Ah, isso não sabemos...nunca iremos saber. Mas foi algo muito, muito rápido.” <br />
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- Alguma coisa tipo Zaaap?<br />
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“Exatamente. Zaaap!” Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-43749949625938342952010-12-23T09:46:00.000-08:002010-12-23T09:46:14.381-08:00O assessor (Guilherme Castro)Antes de conhecer o doutor Herculano, meu ofício era tomar mate com halls na praça, todo santo dia. Acordava seis, seis e meia, punha a chaleira no fogão, limpava a bomba com um grampo espichado, deixava a erva inchar na cuia, tudo preparado pra ver o Bom Dia Rio Grande tranquilo; oito, oito e meia, saía. Até a praça dava o quê?, quatro, cinco quadras. Passava na padaria e comprava um pacote de halls preto - gosto de chupar halls e tomar mate, dá um choquezinho dentro da boca que é bem bom -, daí tomava meu mate olhando o movimento. Quando não tinha mais bala pra chupar, ia pra casa. Fritava um bife, cozinhava arroz, almoçava tranquilo. Matava duas cumbucas de arroz-de-leite e voltava à praça. Tudo normal. <br />
<br />
Defronte à Câmara de Vereadores de Canoa Branca tem um banco, ali eu sentava. Via a chegada dos vereadores, quando tinha sessão. Quando não tinha, assistia a chegada dos funcionários, dava no mesmo; importante importante era o movimento. Certo dia, o Beto, um vereador que fazia questão de ir de bicicleta pra Câmara – tá que o partido proibisse mostrar carro na frente da Câmara, mas ele que era exibido – me disse que o doutor Herculano queria gente pra Assessor. Não que precisasse de dinheiro, tenho uma casinha alugada que me basta, todo caso fui até o gabinete do doutor e perguntei sobre esse negócio de ser Assessor.<br />
<br />
Fez uma cara de agora é que me lembro e me mandou ficar à vontade. Sentei. Abri a mateira. Sevei um mate.<br />
<br />
“Sabes bater à máquina, Brizola?”. Me chamam assim pelas sobrancelhas, sempre esfiapadas.<br />
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“Com um dedo, doutor”, fui sincero. <br />
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“Me conta das tuas experiências, então”, ele prosseguiu. <br />
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“Olha... Ultimamente tenho mais é tomado mate na praça, doutor.” <br />
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“Então és um AMH.”<br />
<br />
“Sou?” <br />
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“Analista de Movimento Humano”, me explicou o doutor. <br />
<br />
“Sim, claro”, achei interessante essa coisa. <br />
<br />
“Joice, me tira um coelhinho da cartola, sim?”, pelo telefone, ele pediu à secretária, que logo apareceu com uma folha datilografada. <br />
<br />
“Assina aqui, meu Assessor”, me disse ele, riscando um xis no pé da página <br />
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Termo de Posse, dizia. <br />
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Assinei. <br />
<br />
“Agora espera que eu te chamo, tá?”. <br />
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Queria saber do salário, quanto era, mas como ele não tocou no assunto, e nem eu, ficou por isso. <br />
<br />
Voltei à praça, tinha a térmica ainda pela metade, isso dava o quê?, cinco, seis mates.<br />
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<div style="text-align: center;">*</div><br />
Dia seguinte: seis, seis e meia, acordei. Aqueci água, pus erva pra inchar, limpei a bomba, Sidney Sheldon na mateira; pra mim, escritor é Sidney Sheldon; vi o Bom Dia Rio Grande tranquilo: ia chover em Pelotas. Bom, oito, oito e meia, saí. Tudo normal. <br />
<br />
Sentei no banco e logo vi o doutor Herculano chegar à Câmara. Gritei: “Ô, chefe!” Com as mãos, me mandou esperar; o portão, que fechava sozinho, me foi retirando o doutor de vista. Pensei: bom, mas que sou Assessor, isso eu sou, pra mim papel assinado é o que conta. Segui tomando meu mate e chupando halls. <br />
<br />
Por um mês, mais ou menos, eu gritei ô, chefe! quando via o doutor chegar à Câmara; e ele, com as mãos, me dizia: calma, Brizola! <br />
<br />
Um dia, tomava meu mate e lia Sidney Sheldon bem na parte dum incêndio alucinante quando ouvi ele me chamar. Fui até o gabinete. <br />
<br />
“Grande Brizola!”, me recebeu com festa. “Joice, traz uns coelhinhos, sim?”. A Joice trouxe. Três. Desenhou o mesmo xis no pé das folhas: Folha-ponto, dizia. <br />
<br />
“Assina aqui, meu Assessor!”.<br />
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Assinei.<br />
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“E aqui.” <br />
<br />
Assinei.<br />
<br />
“Mais aqui”<br />
<br />
Tudo assinadinho.<br />
<br />
“Te chamo em seguida, fica tranquilo”, ele disse, e já me deu as costas. <br />
<br />
Mas continuei ali, parado, esperando alguma ordem, sei lá, alguma coisa. Então ele tapou o bocal do celular e disse vai embora com outras palavras: “fica tranquilo!”, foi o que ele disse. De fato fiquei, pra mim papel assinado é o que vale, e nesse dia assinei três coelhinhos.<br />
<br />
<div style="text-align: center;">*</div><br />
Não sou de me queixar, mas teve a primeira vez. É que fim do mês recebia em casa dez pacotes de erva-mate e cinco de halls como salário; conseguia me manter o quê?, vinte, vinte e um dias, nem isso.<br />
<br />
Fui ao gabinete. <br />
<br />
“Tá me faltando erva, doutor”, desembuchei, todo corajoso. Foi mais fácil que pensei: me deu um aumento na hora; fecharia os trinta e um dias folgado; a partir daí, mês de trinta sobrava o quê?, um pacote inteiro de erva. Ganhando mais, hora de mostrar trabalho, pensei. <br />
<br />
O gravador eu já tinha, um portátil da Gradiente; o crachá, mandei imprimir colorido na Canoa Press. Ficou assim: AMH em cima, Assessor embaixo, num canto a minha foto três por quatro de terno e gravata. A partir daí, se perguntassem qual era o meu ofício, eu respondia: sou Assessor do Doutor Herculano, e ainda mostrava o crachá pra quem não acreditasse.<br />
<br />
<div style="text-align: center;">*</div><br />
Um dia o doutor mandou dizer pelo Beto que era pra eu me tocar a Pelotas. Me entregou um celular e uma cartola cheia de coelhinhos. Missão de Estado. <br />
<br />
Cueca, meia, camisa, calça de brim, japona, três ou quatro potes de Minancora – pra mim, desodorante é Minancora -, joguei tudo na mala; a mateira já carregava, e o crachá: raramente tirava do pescoço. <br />
<br />
“Mando teu salário pelo ônibus, fica tranquilo”, me disse o Beto. <br />
<br />
Fiquei mesmo.<br />
<br />
Entrei no Embaixador. O ônibus não passava de oitenta, isso dava o quê?, três horas, três horas e meia até Pelotas. Ultrapassado o pórtico de Canoa Branca, os campos de arroz surgiram no para-brisa, um verde uniforme lindo de se ver; nessa hora senti pena de, por causa do meu novo ofício, ter de sair de lá, eu que só deixei a cidade uma vez, quando precisei trazer uma tia-avó de Camaquã e fui dar em Jaguarão. Todo caso, vida de Assessor é assim, dura, devia eu desconfiar. Passando o Texaco, fechei a cortina, começava eu a sonhar e um piparote do cobrador me acordou. <br />
<br />
“Já estamos chegando?”, perguntei, meio dormindo. <br />
<br />
“Vai pra onde, Brizola?”<br />
<br />
“Pelotas”, respondi. <br />
<br />
“Nem do Taim passamos”, ele respondeu. “São vinte reais”.<br />
<br />
O doutor havia me dado o quê?, cem, cento e vinte, mais umas quantas bolsas de supermercado com erva e halls. Um adiantamento, exigência minha. Paguei os vinte e virei pro lado. Tranquilo.<br />
<br />
<div style="text-align: center;">*</div><br />
Pelotas, como toda cidade grande, tem mais auto que gente. Na rodoviária é uma quantidade de táxi esperando, realmente, que tu pague uma fortuna pra meio-metro de corrida. Me nego. Mesmo. Dar dinheiro eu pra taxista? Saí a pé e achei o Naite Pelotense, um hotel em conta, pegado à rodoviária, bem bonzinho: quinze cruzeiros o pernoite, direito a café da manhã e tudo: pão torrado, café preto, iogurte e uma banana. (Quando que eu ia tomar iogurte, e de garrafinha?) Paguei dois pernoites adiantados à Baronesa, proprietária e moradora do Naite. No quarto, escondi a cartola mais a mateira dentro do boxe, por segurança. E fui dormir com o celular preso ao elástico da cueca, também por segurança; pânico de cidade grande. <br />
<br />
Seis, seis e meia, levantei. Crachá no pescoço, gravador com pilha nova que era pro relatório não desandar na minha primeira manhã pelotense. Não vi o Bom dia Rio Grande - no Naite só tinha rádio -, tomei café, iogurte, e escondi a banana na mateira, pra mais tarde. Oito, oito e meia, perguntei à Baronesa onde era a praça da cidade.<br />
<br />
“A mais próxima?”, me perguntou.<br />
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“Ah, tem mais de uma...”<br />
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“Olha, daqui? Umas doze quadras”. <br />
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Coisa muito complicada, e longe, quase que uma Canoa Branca inteira. <br />
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Resolvi relaxar.<br />
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Sentei na frente do hotel numa cadeira de praia. Sevei o mate. Logo a Baronesa abriu outra cadeira ao lado. “Posso?”, perguntou. E eu vou negaciar? Sevei um mate pra ela. Dia seguinte sevei outro. Fui sevando, sevando, todos os mates que ela pedia eu sevava. Às vezes colocava capim cidró na térmica, só porque ela pedia; tava em Pelotas mesmo... Nenhum conhecido vendo é a conta; porque pra mim, mate, só com halls. Mas tinha uns olhos puxados, a Baronesa, tinha uma boca graúda ela, uma bunda que me segurava pra não beliscar quando passava rebolando. A gente foi se conhecendo melhor e, no decorrer do quê?, mês, mês e meio, já chamava ela de Barô, só Barô. <br />
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Com mulher no meio a coisa fica mais profissional, organizada, é inevitável isso. Foi ideia dela: passar a limpo e fichar os relatórios em pastinhas: por turno, dia, mês, ano. Foi ideia minha: fixar uma placa de bronze na frente do Naite: Unidade de AMH, dizia. Ela que pagou. Outra ideia, nossa: grampear cartões de visita nos recibos dos hóspedes, que, aliás, eram praticamente dois: seu Alexandre, vendedor itinerante de alpargatas, e eu. <br />
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Resgatamos uma escrivaninha de compensado abandonada no porão do Naite. Duas, três pinceladas de tinta branca, ficou como nova. Placa na parede, cartões na praça, unidade pronta. Tirei então da cartola uns quantos coelhinhos pra Barô assinar. <br />
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“Que que é isso?”, perguntou. <br />
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“Fica tranquila”, eu disse, “é coisa séria”. Beijei a testa dela. Ela amoleceu e começou a assinar, um por um, como uma boa fêmea deve ser, obediente. Todos devidamente assinados, tomei-lhe os coelhinhos e guardei na cartola. “Te ligo em seguida, minha Assessora”, disse, apressado, porque o Embaixador saía em quê?, uma hora, hora e meia no máximo. Saí a pé; táxi me nego. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-49352251595714769132010-12-09T10:16:00.000-08:002010-12-09T10:16:00.614-08:00Calma, já vai passar (Augusto Britto)Tudo começou quando ele disse que tava com dor, mas acho que a própria vida já dói tanto que aquilo me passou despercebido. Tá doendo, tá doendo, ele continuava repetindo todo dia, e eu, com pena – um pouco dele, um pouco de mim mesma –, dizia: calma, mano, já vai passar, toda dor uma hora passa. Essa frase era repetida constantemente lá em casa. Sempre tem alguém sofrendo, e o tempo sempre passa pra sarar uma dor que não sara nunca. Mas até há pouco eu acreditava que a dor sumia, que a gente um dia ia ser feliz, e por isso continuava repetindo que já ia passar, como conforto pra mim e pra ele. Quando ele disse que tava com dor pela primeira vez eu achei que fosse a dor do filho que vê seus pais se separando, e – como irmã mais velha – eu tentei cuidar dele, dar amparo e carinho. Mas quanto mais eu abraçava o mano mais ele reclamava de dor, e eu ficava sem saber o que fazer, perdida diante de toda aquela situação. O pai e a mãe brigando constantemente, e eu tendo que cuidar do mano, sem saber nem cuidar de mim mesma, que tinha tantas outras preocupações; mas eu tinha que esquecer de tudo, eu sabia, e proteger a gente como dava. Eu reparei um dia em um quadro que ele tinha posto no nosso quarto, e perguntei o que que era, e ele respondeu, é uma foto da Austrália, mana, o irmão do Pedrinho tá lá agora, é bem longe daqui e é tri bonito, e eu olhei pra ele e percebi o quanto ele tava sofrendo com tudo aquilo, como ele tava tentando fugir de tudo de todas as maneiras, e ele continuava, será que um dia a gente vai poder ir pra lá, mana, será que lá o pai e a mãe vão conseguir parar de brigar?, e eu fiquei sem reação; quis dizer o que eu achava, que tem coisas impossíveis, que tem lugares – e sonhos – inalcançáveis, mas silenciei; não podia falar isso pra ele, eu tinha que cuidar dele e dar esperanças, por isso eu respondi, um dia a gente pode ir pra lá, mano, não sei se a mãe e o pai vão, mas eu te prometo que um dia eu te levo pra lá. Eu abracei ele forte, como única coisa que eu podia fazer, e ele de novo repetiu a reclamação, tá doendo, mana, tá doendo muito, e eu, já sem voz e soluçando, disse, vai passar, mano, tudo passa. A gente sempre foi muito unido, mas naqueles últimos tempos a gente tava muito mais próximo, porque ficava sempre nós dois sozinhos, abraçados, enquanto o pai e a mãe brigavam, e eu tentava tapar o ouvido do mano ou falar qualquer coisa pra ele não ouvir nada, mas eram gritos muito altos da mãe, eram berros incessantes do pai, e a gente ficava ali, sofrendo, sozinho. Nossa amizade se intensificava a partir do sofrimento que aumentava e aumentava e não parava nunca, apesar da frase sempre latente de que a dor passa, e que tudo ia passar. Quando o pai e a mãe começavam a discutir sem parar eu levava o mano pra passear, a gente ia no cinema, tomar sorvete, caminhar, só pra tentar fugir um pouco daquilo tudo, mas nunca dava pra fugir, ele sempre perguntava por que que isso tava acontecendo, por que o pai e a mãe tavam brigando tanto, e eu nunca sabia o que responder. E ele cada vez mais falava que tava doendo, e eu me irritava, porque tava doendo em mim também, mas eu tinha que ser forte e aguentar por nós dois, porque eu era mais velha e me sentia responsável. Mas minha força era abraçar ele e tentar não chorar, pra depois chorar sozinha e sofrer sem ter ninguém pra me ajudar, porque a mãe tava já sofrendo muito com a separação, e não queria saber de ninguém, muito menos do pai, aquele filho da puta que me traiu todos esses anos, ela dizia, e me deixou aqui tendo que cuidar de vocês sozinha, mas eu já tinha idade pra perceber que não era bem assim, que ela não tava cuidando da gente, que na verdade eu tava sozinha com o mano e a gente era quem mais sofria por causa de tudo aquilo. E no final de todos os dias era assim: eu e o mano chorávamos sozinhos e unidos, ouvindo a mãe gritando do quarto ódios pra sala e pro pai, que mandava ela calar a boca e dormir, porque no outro dia ele ia ter que acordar cedo e trabalhar pra sustentar a gente, e a resposta da mãe ele nunca ouvia, porque era uma resposta doída em lágrimas e gemidos, e porque o pai nunca foi bom em ouvir o que se fala baixinho. E o mano sempre antes de dormir repetia, tá doendo, mana, tá doendo, e eu às vezes fingia dormir e não respondia, outras vezes abraçava ele, porque achava que isso era só o que eu podia fazer. Eu me sentia tão impotente e abandonada e infeliz e confusa que não me dei conta de que eu podia fazer alguma coisa. Mas logo eu, uma guria de dezessete anos, que sofria tanto com tudo o que tava acontecendo, que tinha que pensar no que eu ia fazer da vida, em como passar em medicina no vestibular, em como me ajudar, tinha que ajudar o mano, dar carinho pra ele, e ainda mudar alguma coisa? Não tinha como eu mudar nada. Já tá dormindo, mana?, ele me perguntava, e eu ouvia que ele não conseguia não chorar, mas eu não falava nada: queria dormir, queria estar dormindo. Mãe, o mano tá com dor, ele não para de reclamar, eu falava pra ela no almoço, o único momento em que eu podia falar com ela, mas eu ouvia sempre a mesma resposta, agora não, eu acabei de acordar, tou com dor de cabeça, outra hora a gente conversa. Era fácil pra ela falar aquilo, não era ela que ouvia ele reclamar o dia inteiro de dor, não era ela que tava sofrendo por ver ele sofrendo, não era ela que pensava nele, que tinha que sair do cursinho no meio da tarde pra ir buscar ele no colégio porque ele tava com muita dor – assim eu não ia nem ter chances de passar em medicina, a mãe sabia, mas parecia que ela não dava bola, parecia que só existia ela e só ela que tava sofrendo –; não era ela que via ele chorando e não podia fazer nada, e chegava no colégio dele pra ouvir da diretora que ele tava com muita dor na perna, que era melhor levar ele no médico, eu, com dezessete anos, que tinha que estudar pro vestibular, buscar e levar ele no colégio, sair com ele, cuidar dele e ainda por cima sofrer, como é que eu ia fazer tudo isso?, mas a diretora não tava mais ouvindo, ninguém tava ouvindo, e o mano tava chorando muito, dava uma pena, e mesmo assim eu não podia fazer nada, e só naquele momento que eu olhei pra ele e vi que ele tava magrinho, que ele parecia tá sem forças. Por que tu não disse que a dor era na perna, guri?, eu perguntei irritada, mas depois me arrependi, porque o coitado do mano tava sofrendo muito, dava pra ver, e eu tinha que cuidar dele, e não colocar a culpa nele, e quando ele disse, porque eu não queria te incomodar, eu chorei e não soube mais o que fazer, porque vi que na verdade era ele que tava cuidando de mim esse tempo todo, e disse, desculpa, mano, eu vou te levar pro médico, tudo vai passar, tudo passa, daqui a pouco tu vai tá bem de novo, tudo vai dar certo, mas eu falava aquilo sem convicção nenhuma, porque eu aos poucos tava me dando conta de que talvez a dor não passasse nunca: que talvez a vida fosse mesmo doída desse jeito, pra sempre. A gente chegou em casa e o pai e a mãe tavam brigando, mas o mano era mais importante que a briga infinita deles, por isso eu tentei interromper, disse, mãe, pai, mas eles me mandaram calar a boca, disseram que era pra gente ir pro quarto ou sair de casa, pra eu levar o mano pra algum lugar, mas eu disse que não dava – eles não queriam ouvir –, não dava – eles não queriam ouvir –, não dava, e eu já tava quase chorando quando eles perceberam que tinha alguma coisa errada, e eu falei gaguejando que o mano tava com dor, que algum deles ia ter que nos levar pro hospital, e eles fizeram silêncio quando eu disse essa palavra. Dava pra ver que eles não sabiam o que fazer – acho que eles nunca souberam o que fazer. Eu levo vocês, o pai disse, tá tudo bem contigo?, ele perguntou pro mano com uma indiferença que me assustou, e aquilo tudo me doía cada vez mais, especialmente quando o mano respondeu tranquilamente, tá, pai, se tu não quiser me levar agora não precisa, pode acabar de conversar com a mãe, não quero atrapalhar vocês, e aquela consciência e lucidez do mano me atordoaram, e eu olhei com nojo pro pai e pra mãe e não soube de onde ele tinha tirado aquele respeito, porque eles nunca tinham pensado senão neles mesmos, e eu senti asco quando o pai respondeu, não tem problema, vamo lá, a conversa com a tua mãe já acabou, como se só por causa da incomunicabilidade dos dois ele ia ser pai e pensar na gente. No carro eu fui atrás com o mano, como se o pai fosse só o motorista mesmo, como se fosse só nós dois no mundo e a gente fosse enfrentar tudo sozinhos – sempre sempre sozinhos –, mas apesar da solidão eu já me sentia melhor, a gente tava indo resolver aquele problema, e quando o mano colocou a cabeça no meu peito e disse baixinho, pra que só eu ouvisse, tá doendo, mana, eu abracei ele com amor e respondi, calma, mano, a gente tá indo pro médico, ele vai te curar, tudo vai passar, já, já, repetindo sempre a mesma ideia desgastada, mas que naquele momento me pareceu – mais do que nunca – verdade, e deve ter parecido pro mano também, porque ele deu um sorriso, e a gente ficou ali, sabendo que tudo ia passar, que a dor ia enfim passar. Quando a gente chegou no hospital, o pai foi direto falando que queria um médico, porque o filho dele tava com muita dor e não podia esperar mais, e eu fiquei pensando se era o mano que não podia esperar mais ou ele que queria que tudo acabasse logo pra poder voltar pra casa de uma vez. É só preencher a ficha e aguardar, a mulher disse, e eu logo entendi que quem ia preencher a ficha era eu, e o pai falou mesmo, preenche essa ficha que eu vou no banheiro, filha, e se virou pro mano e passou a mão na cabeça dele e disse, pode ficar tranquilo, filhão, o médico já vai nos chamar, e saiu e deixou a gente ali, sozinhos. O ambiente era tenso, e eu comecei a ficar aflita, parecia que tudo exalava dor, e isso deve ter lembrado o mano da dor dele também, porque ele disse, tá doendo, tá doendo, e eu respondi que já ia passar, que eu ia preencher a ficha e o médico ia nos chamar a qualquer momento, que tudo ia ficar bem, só que dessa vez a ideia me soou ridícula e falsa, mas era a única que eu sabia e podia falar, e eu tinha que dar segurança pra ele, mesmo que eu me sentisse a pessoa mais insegura naquele momento, e eu disse, senta aqui, mano, eu vou entregar a ficha pra moça ali, e fui, enquanto o mano ficou quietinho, e quando eu virei pra trás me deu uma pena de ver ele sozinho e corri pra poder voltar logo pra ele, porque ele só tinha a mim, eu não podia decepcionar o mano, eu tinha que cuidar dele, e eu voltei e abracei ele, e logo depois o pai voltou, e depois mais o médico nos chamou, e eu tava agoniada com aquele hospital e aquela gente doente indo de um lado pro outro, e a minha vontade foi de ir correndo, mas o mano tava com dor, por isso a gente foi devagarinho, e eu falei como que falando pra mim mesma, não precisa ter pressa, se for pra ficar bem a gente pode esperar o tempo que for, não tem problema, mas não tava tudo bem, eu sabia, e o médico examinou o mano e disse que ele ia ter que fazer uma radiografia pra ver o que que tinha acontecido, e eu acompanhei ele, sempre em silêncio, eu e ele, e o pai ficou perguntando sem parar coisas inúteis pro médico – acho que foi só naquele momento que ele se deu conta de que tinha um filho e que ele tava doente. O mano fez a radiografia e a gente ficou sentado esperando o resultado, sem saber o que esperar, e eu tava com muito medo, e abraçava o mano, eu e ele sentados, e o pai ali, de pé, e eu percebi que ele tava louco por um cigarro, mas agora devia tá com vergonha de deixar os filhos sozinhos, tava andando de um lado pro outro, como que um acompanhante somente, um motorista, porque a dor não tava nele, ele tava sofrendo só agora, a dor tava no nosso abraço, no mano, na perna do mano, mas já ia passar, já, já, ia passar, só que ele não me perguntava mais e eu também não falava nada – o silêncio como um pacto, espantando o que não se quer ouvir. O médico nos chamou de volta, agora com a radiografia, e eu entrei na sala apavorada, e acho que o mano percebeu, porque ele apertou forte a minha mão e disse, agora a dor vai passar, mana, a gente vai voltar pra casa, mas logo quando a gente se sentou eu vi na cara do médico que não tava tudo bem, e quando eu vi uma radiografia, mesmo sem entender nada do que ali era mostrado, eu soube de imediato que as coisas não iam passar, que o mano ia continuar sentindo dor, e quando o médico falou em tumor eu fui fraca e chorei, e o mano, que não tava entendendo nada, disse, calma, mana, calma, e eu me senti pior ainda, porque era ele que me amparava e cuidava de mim de novo, e o pai perguntou, como assim tumor, doutor?, câncer?, e o médico respondeu que sim, que a princípio era o que mostrava a radiografia, que o mano ia ter que ficar ali internado pra no outro dia já fazer uma biópsia pra comprovar e ver com qual tumor especificamente o mano tava, porque não dava mais pra perder tempo, e eu ouvia aquilo tudo com dor, era uma notícia doída, e eu fiquei muito preocupada com o mano, porque ele não tava entendendo direito que que tava acontecendo, mas eu não podia explicar pra ele, não podia dizer, mano, tu tá muito mal, não, eu tinha que ser forte e passar confiança pra ele, mas já não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer isso, não sabia mais fazer nada. Por mais absurdo que pudesse parecer nos falaram que a gente tava com sorte, porque naquela noite tinha um quarto vago pro mano ficar. O pai tava completamente atordoado, não sabia o que fazer, e eu ia resolvendo tudo enquanto ele ficava feito um abobado do meu lado, e já no quarto eu me irritei, pai, liga pra mãe e avisa tudo pra ela, vai lá fora que aqui pega mal o celular, eu queria era ficar a sós com o mano, e o pai foi correndo, certamente louco pra fumar um cigarro e pensar no que tava acontecendo, e foi bom, porque ali ele não ia ajudar em nada, e pelo menos ele se dava conta do problema do mano, e a gente ficou sozinho ali, e eu não sabia o que falar, até que o mano falou, relaxa, mana, a dor já tá diminuindo, e era ele de novo cuidando de mim, eu não podia admitir isso, e eu dei a mão pra ele sem saber como ajudar, como amparar ele, eu, tão angustiada com aquilo, e só consegui dizer, desculpa, mano, e ele ficou em silêncio, e eu chorei naquele quarto de hospital que me sufocava, que nos sufocava, e o mano chorou também, e éramos nós dois, sozinhos, chorando diante daquela situação cada vez mais doída, e ficamos nós dois um esperando que o outro dissesse o que nós dois queríamos tanto ouvir mas ninguém dizia: nada passava, nada ia passar, e a gente tinha medo dessa certeza, e o pai logo depois voltou com a mãe, e os dois entraram chorando e abraçando o mano, e eu imaginei uma cena em que dois pais disputam amor em beijos e abraços, querendo cada qual se mostrar mais doído com a dor do filho, se importando sempre com aquela briga que não acabava nunca, enquanto o mano – e eu chorava só de pensar nisso – talvez acabasse, e como era injusto tudo aquilo que acontecia naquele quarto, e eu me irritava e queria logo que eles fossem embora e nos deixassem os dois ali, como sempre sozinhos, e eu odiava eles naquele momento, colocava a culpa de tudo neles, que tinham me impedido de ver tudo antes, mas também sentia uma culpa doída em mim e pedia desculpa, desculpa, desculpa pro mano sem dizer, só apertando a mão dele e olhando bem no fundo dos olhos molhados de lágrimas dele, e aquele retrato era um retrato doído, cuja dor eu sabia que não se extinguiria nunca. Quando tava acabando o horário de visitas uma discussão se instalou no quarto – uma discussão que pela maneira com que era travada já há muito vinha sendo ensaiada: quem dormiria no hospital?, só que a resposta pra mim o pro mano era óbvia, não tinha como ser diferente, mas pro pai e pra mãe não, e parecia que a discussão não era só pra responder a pergunta, era pra responder quem era o melhor pai, mas o mano – com uma sabedoria que me deixou atônita – entendeu isso, e quis logo resolver tudo, não precisam discutir, eu quero que a mana fique, ele disse, e eles me olharam como que se dando conta da obviedade da questão, como que se dando conta de que eles ali não ajudariam em nada, mas isso eles não devem ter pensado, eles nunca pensavam, e saíram mudos, e ficamos, de novo, eu e o mano, sozinhos, pra encarar mais uma noite doída de choro, mas que ia doer muito mais que qualquer outra noite, e eu sabia que eu não ia conseguir dormir, mas tentei pelo menos fazer com que o mano dormisse, ia ser bom pra ele, mas ele não parecia com sono, e mesmo assim eu apaguei as luzes e deitei no sofá dando boa noite pra ele, mas logo depois – ele sabia também que eu não ia dormir nem ia fingir que dormia – ele perguntou, mana, sabe o que que eu tava pensando?, e eu tive medo de perguntar por uma resposta que eu não sabia qual era, mas sabia doída, no quê?, eu perguntei finalmente, e ele respondeu, tava pensando que a gente podia ir pra Austrália quando eu sair do hospital, o Pedrinho me disse que o irmão dele falou que lá é tri legal, e eu abafei meu choro no cobertor, e ele continuou, que que tu acha, mas deve ter se dado conta de que eu chorava, porque ficou em silêncio por um bom tempo esperando uma resposta que eu não sabia qual, mas eu tinha que responder, e falei, sim, mano, tá combinado, quando a gente sair daqui a gente vai, cuidando pra não revelar tristeza na voz, e ele disse, e a gente vai poder surfar lá, mana?, quando eu melhorar da perna eu vou querer surfar lá, porque parece que lá é tri bom de surfar, e eu respondi que sim, mas que por enquanto o melhor era dormir pra ficar bem descansado pro outro dia. E no dia seguinte cedo vieram pro nosso quarto pra levar o mano pra fazer o procedimento, e eu fiquei apreensiva sozinha, sentindo falta da companhia dele e temendo a falta que eu fazia pra ele, e o médico depois veio nos informar – pro pai e pra mãe, que tavam ali de novo – que o resultado ia sair em no máximo dois dias e que ia dizer exatamente qual o tumor que o mano tinha e a partir disso o tratamento que ia ser feito, e aquelas quarenta e oito horas foram absurdamente desgastantes, nós, que há muito esperávamos que tudo passasse, sabíamos que quanto mais o tempo passava mais tudo piorava, e tínhamos medo do resultado que ia chegar, e eu fiquei o tempo todo com medo, esperando, e não pensei em momento algum em tudo que tava me fazendo sofrer antes, porque quando acontece uma coisa assim a gente revê o que nos dói, e a mãe ficava ali toda hora também, saía só de noite, e o pai ia sempre que podia, quando não tava trabalhando – ou com a vagabunda, a mãe continuava repetindo, mas nem eu nem o mano dávamos bola mais – e eu chorava frequentemente, e o mano também tava sofrendo muito, aqueles dias foram horríveis como nenhum outro dia tinha sido antes, apesar de todas as dores doídas até então, e quando o médico chegou com o resultado as batidas do meu coração emudeceram qualquer palavra que eu pudesse querer falar, e eu escutei quieta ele falando que o tumor era agressivo, que se chamava Sarcoma de Ewing, e que era um tumor ósseo de péssimo prognóstico, e que, como tumor agressivo, o tratamento também tinha que ser agressivo, e que portanto, como o tumor tava localizado na tíbia, ele ia ter que amputar a perna do mano pra poder tratar e retirar o foco do tumor, tentando impedir uma metástase que era extremamente perigosa, e a mãe ouvia tudo aquilo como se só agora entendesse que o filho dela tava morrendo, e eu ouvia aquilo quieta, impotente até pra falar, estática, e o mano não entendia direito, porque ele perguntou chorando, eu vou perder a perna, mana?, e o médico disse que sim, que ia ter que amputá-la assim que desse, e que depois o mano ia ser encaminhado para um oncologista pra iniciar a quimioterapia, e o mano não parava de chorar ouvindo aquilo, e eu abracei ele e depois a mãe nos abraçou, e o médico saiu nos deixando ali, completamente abatidos, e foi nesse momento que o pai chegou e voltou toda a choradeira, e eu não queria que aquilo acontecesse, ninguém queria, mas tinha que ser, e a gente ficou no quarto – o sofrimento em um abraço unido – esperando algum milagre, mas não veio, veio só o médico no dia seguinte falando que a sala de operação já tava pronta, que ele ia ter que ser levado pra fazer o procedimento, e aquilo tudo era muito doído, eu tava chorando muito, e ele foi, enquanto a gente ficou numa sala de espera, esperando não sei o quê, porque nada significava mais nada naquele momento, eu não sabia mais o que fazer, e o médico voltou pra falar que a operação já tinha sido finalizada e que em breve a gente ia poder entrar na sala de recuperação, que era onde o mano tava, por um tempo, só pra ver como ele tava, falar um pouco com ele, e aquele tempo era só angústia, e eu só vi que o tempo tava passando quando o médico voltou e falou que se a gente quisesse a gente podia entrar na sala de recuperação agora, e a gente entrou lá pra ver ele sem a perna, sem a perna, sem a perna, e a gente não sabia como reagir, eu tentei transmitir confiança, mas a quem eu queria enganar?, tudo era horrível, ele tava morrendo, ia morrer, e eu chorava muito, a dor não passava pra ninguém, só piorava, era tudo mentira, tudo falso, e o mano me chamou pra perto e sussurrou no meu ouvido que tava doendo, que continuava doendo, e eu perguntei onde, e ele respondeu que continuava doendo a perna, a perna que tinha sido amputada continuava doendo e que tava doendo muito, muito mais do que antes, e eu olhei pra ele e sofri, porque não consegui falar pra ele o que ele queria tanto ouvir, não tive coragem de dizer que já ia passar, que toda dor uma hora passa. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-54272297857315371762010-11-25T08:42:00.000-08:002010-11-25T08:43:37.761-08:00Pequenos milagres (Berenice Rheinheimer)Não podia evitar: tinha pavor de aves. Pombas, patos, araras, sabiás ou flamingos; não importava o tipo, o fato é que padecia deste medo há muitos anos, como se sua própria existência dependesse de manter distância das penosas. Tentou, sem sucesso, algo que lhe ajudasse a encontrar a coragem perdida há tantos anos. Fez análise, tomou florais, submeteu-se a simpatias e até freqüentou um terreiro de candomblé, tudo sem resultado. Seu pânico continuava tão inabalável, que Celeste acabou por seguir o conselho do último terapeuta, de aceitar e conviver com seus temores. Era complicado, precisava evitar os parques, vitrines de pet shops e até propagandas de televisão, sequer a imagem de um pássaro conseguia suportar. <br />
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Foi consciente de suas limitações que pisou no terraço naquela manhã. O assombro era maior que o medo. Precisava saber o que era aquilo se debatendo na piscina suja. Celeste herdara a cobertura, mas por seus hábitos noturnos, motivados pela fobia, quase não usava a parte externa do imóvel. Ali jaziam vasos, desprovidos de qualquer verde, plenos de terra seca que levantava vôo com facilidade, criando poças barrentas ao menor chuvisco. Junto ao deck de ardósia encardida, havia uma pequena piscina, mantida com água apenas para não danificar a fibra, a qual Celeste mandava limpar uma ou duas vezes por ano. Por este motivo, o corriqueiro era que a água se encontrasse verde e mal cheirosa. Sob a luz mansa de um dia nublado, Celeste teve dificuldade em distinguir o que se lamentava na água rasa e apodrecida. Viu que era um negro, muito escuro, de tez quase azulada, caído de lado e apesar de seu empenho, não conseguia levantar-se, porque não equilibrava suas grandes asas. Parecia um mendigo de cabelos muito brancos e olhos de catarata. Suas asas imundas boiavam no charco repleto de limo em que a piscina havia se transformado.<br />
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Celeste rendeu-se ao impossível, tinha de admitir tratar-se de um anjo. A possibilidade do divino não amenizava o inconveniente: havia penas espalhadas por todo deck. Com esforço, o anjo conseguiu erguer-se um pouco e sentar na borda da piscina, o que fez Celeste gritar. Alheio, não tomou conhecimento da presença dela, e falou. Pronunciou algo que ela não pode compreender, talvez uma língua antiga, a voz rouca e mansa de anjo confabulando. Refeita da surpresa, compreendeu que era necessária uma atitude. Pegou a peneira da piscina e cutucou a criatura, enxotando-a. Só conseguiu fazê-lo porque entre ela e o anjo havia a longa distância do comprimento da haste de alumínio. O máximo que logrou, para seu desespero, foi fazer o anjo bater as asas peladas, perdendo o pouco de penas que lhe restavam. Ela decidiu entrar, estava atrasada. Talvez ao longo do dia, aquilo (seria mesmo um anjo?, perguntou para si mesma) desaparecesse. Ele não surgiu do nada? Então o fenômeno podia repetir-se. <br />
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No final do dia, na entrada do edifício, o síndico a esperava com o semblante contrariado. Reclamou da água escura que respingou durante roda a tarde, sujando os vidros dos andares inferiores. Ignorou quando Celeste tentou falar da inesperada visita, apenas frisou:<br />
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- Vazamentos dentro do imóvel são de responsabilidade do condômino.<br />
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Celeste praguejou, irritada com a inutilidade de um anjo sem milagre, entrou em casa decidida a seguir as orientações da vigilância sanitária. Orientações antes negligenciadas, mas agora tinha a esperança de que o aversivo usado para espantar os mosquitos da dengue pudesse também afastar o anjo. Então jogou dez quilos de sal grosso dentro da piscina. Tinha muitos pacotes em casa: cada vez que recebia uma notificação, comprava os dois quilos de sal recomendados, mas adiava as saídas no terraço, esquecendo-se de usá-lo. Assim como com os cutucões, num estupor de peru, o anjo ignorou Celeste. Ela começou a chorar, gritando xingamentos nada devotos, e furiosa, não percebeu a ausência do medo quando algumas penas voaram em redemoinho. Resolveu dormir um pouco, no outro dia poderia pedir auxílio a algum religioso: reverendo, professor de catequese ou, talvez, alguém da Universal.<br />
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Após poucas horas de sono desassossegado, acordou preocupada. E se aquilo resolvesse entrar no apartamento? E se chamasse outros como ele, saídos de algum tipo de geriatria do reino dos céus? Andou até a sala e espiou pelo vidro, o anjo continuava sentado no deck, as pernas penduradas dentro da piscina e as asas desplumadas jogadas no piso. Num destempero típico da madrugada, Celeste lançou para perto da piscina três frascos acesos de Jimo fumegante. A única conseqüência foi fazer o ser alado tossir e espumar. Arrependida, Celeste estava a ponto de chamar a Eco Salva, quando os estertores do anjo diminuíram. Bastou que ele, com a mão em concha, lavasse o rosto na água escura. Depois, iniciou um ritual como quem se benze, o tronco e as asas num balanço ritmado, molhava os dedos na água e passava-os pela testa. <br />
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Vencida, Celeste voltou a se deitar, aceitando o que o céu lhe impunha. Se fosse o caso de ter um anjo domesticado, qual outra solução, senão aceitar? Com o passar dos dias, acostumou-se com a presença de mais alguém em casa, mesmo que o anjo permanecesse alienado. Alimentava-se de larvas crescidas na piscina, também de pequenos insetos ou trevos e outras ervas daninhas que insistiam em brotar da terra seca. <br />
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Na segunda semana ela capitulou e ofereceu a ele uma cesta de frutas, e como prova definitiva sua rendição, um envelope com sua matrícula no curso de esperanto. Contou ao anjo que começaria a frequentar as aulas na semana seguinte. Ele a olhou pela primeira vez e deu-lhe um sorriso de dois dentes. Celeste sentou-se no banco de madeira, já sem verniz. Não se lembrava de ter passado mais de cinco minutos no terraço na última década. Viu no tronco que fora uma palmeira, uma orquídea pronta para florir. Olhou o pergolado vazio e sentiu falta da lágrima- de- cristo de antigamente. Os vasos de temperos ainda tinham as placas pintadas por sua mãe. Celeste fez questão de olhá-las de perto: hortelã, alecrim, manjericão. Teve saudades dos aromas de sua infância. <br />
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Saiu com pressa e voltou carregada de mudas de flores, sementes de ervas aromáticas, adubo e um grande regador. Sob o olhar do anjo, pôs-se a repovoar os vasos, disposta a restituir a vida do lugar. Ainda tinha guardados os bebedouros de beija- flor de seu pai: pendurou-os, e também as casinhas de madeira que as curruíras ocupavam na primavera. Descobriu duas bromélias sobreviventes e, em cima da treliça que um dia sustentou uma buganvília, um ninho de sabiás. A fêmea trazia no bico a refeição dos filhotes, uma minhoca ainda se contorcendo. Satisfeita com os pequenos milagres do cotidiano, afastou-se para permitir que a mãe alimentasse a prole, enquanto ela se punha a adubar as mudas recém plantadas. Viu que o anjo se movimentava. Num arrastar de asas ele suspendia o regador, ajudando Celeste em sua tarefa de cuidar das folhagens. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com10tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-37599965920030565182010-10-28T10:10:00.000-07:002010-10-28T10:10:13.997-07:00Travessia (Gustavo Grandi)<div style="text-align: right;">“I do desire we may be better strangers.”</div><div style="text-align: right;">(William Shakespeare: As You Like It)</div><br />
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Cleide sorria enquanto os desconhecidos rapazes da loja entravam na casa carregando a geladeira nova. “Pode deixar aqui mesmo, ainda preciso limpar o lugar onde ela vai ficar.” O carregador concordou com a cabeça, atento aos movimentos loiros do cabelo de Cleide. “Bonita”, comentaria depois com o colega. Sebastião não estava em casa. A mulher recebeu a entrega, assinou e despediu-se dos carregadores acenando com o pano de prato. Depois sentou-se num banco da cozinha e ficou olhando para a geladeira, imaginando o que faria com cada compartimento. “Deve ser o dobro da outra”, pensou. <br />
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A outra, a geladeira velha, já estava no pátio quando chegou a nova. Ainda funcionava. “E o que fazemos com ela?”, perguntara Cleide ainda na loja, enquanto escolhiam. “Vai ser um presente para a tua mãe”, respondera Sebastião. A mãe de Cleide morava sozinha do outro lado da rua, recebendo assim visitas freqüentes do casal. <br />
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Naquela manhã, Sebastião acordara mais cedo para arrastar sozinho a geladeira velha até o portão. Chegou atrasado no emprego: a tarefa lhe tomou o dobro do tempo que tinha planejado. Entre suas vendas, pensou algumas vezes na aquisição, no tempo que passaria pagando as prestações, na excitação da esposa quando fecharam a compra. Quando chegou em casa, ela o recebeu no portão. “Veio?”, perguntou. “Veio”, respondeu Cleide procurando o brilho verde nos olhos do marido. “Um negrão de olhos verdes”, dissera para a mãe logo que se conheceram. Depois do estranhamento, a sogra aprovara o genro, dizendo à filha que o havia imaginado pelo menos um palmo mais alto. <br />
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A geladeira velha repousaria no pátio por aquela noite; no outro dia atravessaria a rua para ocupar a garagem da mãe de Cleide. “Falo com o Walmor”, disse Sebastião. “Ele me ajuda a carregar.” <br />
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Na manhã seguinte, vestiu-se e foi direto à casa ao lado interromper o chimarrão solitário do vizinho madrugador. “O senhor não me ajudaria a atravessar a rua com a geladeira, seu Walmor?”, pediu depois de dar bom-dia. “Muito pesada?”, perguntou o militar, sério, enquanto livrava-se da cuia para poder apertar as juntas dos dedos grossos. “Trabalho para dois”, sorriu Sebastião. “Te ajudo sim”, declarou Walmor. E, cruzando os braços: “Pode ser no fim de semana?” Sebastião tinha pensado em resolver isso já hoje, mas disfarçou e respondeu sorrindo que “Claro, não tem pressa, quando o senhor puder.”<br />
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<div style="text-align: right;">“Vivere per sempre</div><div style="text-align: right;">Ci vuole coraggio</div><div style="text-align: right;">Datti al giardinaggio</div><div style="text-align: right;">Dei fiori del male”</div><div style="text-align: right;"><br />
</div><div style="text-align: right;">(Baustelle:Baudelaire)</div><div style="text-align: right;"><br />
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Quando Sebastião e Cleide se casaram e compraram a casa naquela rua, Walmor e a família já moravam ali havia muito tempo. O tenente aposentado, um descendente de alemães nascido no interior, morava na cidade desde os dezoito, quando entrou para o quartel. Sua força física não vinha só do serviço militar: a enxada já lhe havia moldado os braços antes que deixasse o campo. Forte no corpo e conservador nas idéias, contrastava com o ambiente urbano como um broche de veludo contrastaria com a sua farda, hoje guardada no roupeiro, longe dos olhos.<br />
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Sua aposentadoria veio antes do esperado. O processo iniciara havia pouco tempo e já era a terceira vez que Walmor chegava em casa praguejando por causa do major que estava sempre embriagado. “Imagina que ontem eu tive que mandar o sargento descarregar a pistola dele, de medo que machucasse alguém”, dizia à esposa. “Como chegou a ser major é uma coisa que eu jamais vou entender.” Os comentários ficavam mais ácidos a cada dia, até a noite a em que o tenente Walmor entrou em casa em silêncio. A esposa lhe perguntou o que queria jantar. “Matei o major Aírton”, foi a resposta. O grito não teve coragem de ferir as cordas vocais da mulher e os tímpanos do marido. A confissão foi recebida pelo respeito das esposas prudentes. Resignou-se a entrar no quarto, fechar a porta e chorar em silêncio. “Legítima defesa”, dissera o mesmo sargento que tinha descarregado a arma do alcoólatra, única testemunha. “Ele entrou na sala cambaleando, pegou a arma e começou a brincar com ela apontada pro tenente.” Foi absolvido. Ainda assim, havia matado um superior, devia ser afastado do quartel. Aceleraram seu processo de aposentadoria, negando-lhe, porém, o aumento de salário que recebem os oficiais quando se aposentam. “Dois mil reais por mês”, disse Walmor à esposa. “Isso é o que me custou aquele gambá.”<br />
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Anos depois, mudavam-se para a casa ao lado Cleide e Sebastião. Iam-se embora os vizinhos antigos, gente que não se despediu de Walmor por causa de uma árvore de cinamomo. O tenente tinha um jardim, adquirira com a aposentadoria esse passatempo. Passava tardes inteiras envolvido com as plantas, ora cuidando com os dedos grossos das flores frágeis, ora martelando na escada ornamental de madeira. A mesma árvore que dava sombra para os antecessores do casal enchia de folhas e galhos o jardim do tenente. Ainda que a sujeira caísse do lado de cá, o tronco ficava do lado de lá do muro, fora do terreno do militar. Na quinta vez que tentou convencê-los a derrubarem a árvore, Walmor não conteve um soco que fez o vizinho cair batendo a cabeça no tronco que causara a discórdia. Dali até a mudança foram quarenta dias. Logo que viu o casal chegando, o militar foi falar com Sebastião, pedir permissão para cortar a árvore. Sebastião pensou na sombra, depois pensou que no futuro queria ter uma piscina e paz com os vizinhos. Passou a tarde seguinte ajudando Walmor e mais meia dúzia de militares a serrar através de um tronco que mal podia ser abraçado por duas pessoas. Fizeram uma pausa, e Cleide trouxe uma jarra de cerveja para os homens. Seu cabelo loiro brilhava como a bebida, pensou Sebastião, feliz. Orgulhava-se de perceber que os olhos daquele velho tenente alvejavam sua esposa.<br />
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No próximo domingo, enquanto Walmor assava um churrasco para os filhos e netos, sua esposa pensava na prestatividade do vizinho novo. “Ele ficou a tarde inteira ajudando vocês?”, perguntou. O tenente confirmou. “Por que tu não dás um pouco de churrasco pro casal?”, perguntou a esposa. “Ele parece gostar de carne branca”, respondeu com um esgar. “Quê?” “Nada. Leva o espeto de frango pra eles”, respondeu o marido. A mulher obedeceu, mas a frase não a abandonou durante a semana que se seguiu. No outro domingo, quando os filhos já tinham ido embora, ela entrou na sala e encarou o marido. “Se ele fosse branco tu tinhas atirado?”, perguntou. Como resposta recebeu um tapa que a pôs deitada. Walmor saiu de casa e foi beber cachaça no bar. Durante as três doses, ficou sentado em silêncio, olhando para as mãos. Quando voltou, a esposa já dormia virada para a parede. Olhou para a mulher por um tempo, deu meia-volta e caminhou até o seu jardim. Sentou-se na escada ornamental entre as flores para apertar as juntas dos dedos grossos. Com a luz dos postes da rua, podia ver que o jardim não estava mais contaminado por galhos e folhas de cinamomo.<br />
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Pela terceira vez na semana, o despertador arrancou Sebastião da cama antes do habitual. Era um sábado nublado, fresco. Foi novamente até a casa de Walmor e percebeu antes de bater palmas que o carro não estava na garagem. A esposa do tenente atendeu ao chamado. “Ele foi visitar a irmã”, gritou da janela. “Volta só à noite.” “Tudo bem”, respondeu Sebastião, convencido de ter visto indulgência na expressão da mulher. O sol se fora e Walmor não vinha. Foi só quando, deitado, tentava dormir, que Sebastião ouviu o barulho do carro entrando na garagem do vizinho, tarde demais para cobrar a ajuda prometida.<br />
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O relógio não precisou acordar Sebastião mais cedo no domingo. Dormira mal toda a noite, e quando amanheceu não fez mais nenhum esforço para adormecer novamente. Levantou-se da cama, vestiu-se e foi à casa de Walmor, passando pela geladeira que já estava ali havia quatro noites . “Ele foi à missa”, gritou novamente a mulher, desta vez com clara desaprovação da atitude do marido. Quando voltou, o tenente trazia sacolas de carne e um saco de carvão. Sebastião não teve coragem de interromper o rito dominical do vizinho. Ao fim da tarde, quando os filhos do militar foram embora, Walmor foi ao bar, desta vez para passar horas bebendo. Quando Sebastião o viu voltar, já de noite, mal conseguia caminhar. Ao ser cumprimentado por um berro ébrio, Sebastião se limitou a olhar para Cleide e dizer: “Amanhã eu peço para o Márcio.”<br />
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Então saiu da cama na segunda-feira e foi comer uma laranja no quintal, sentado em uma cadeira de praia ao lado da geladeira, que começava a demonstrar sinais do tempo que passara ao relento. Esperava que Márcio, o vizinho do outro lado, saísse para o trabalho. Queria abordá-lo para pedir a ajuda que Walmor não lhe dera, mas em seus pensamentos nasceu também uma secreta esperança de que Márcio lhe oferecesse carona. Surgiu mirrada, fraca, e foi-se alimentando de lembranças em que Sebastião era sempre gentil com o vizinho, ainda que não se falassem muito. Na hora em que Márcio saía de casa, agitando com os dedos o cabelo molhado e pendurando o paletó no banco do carona, já não era mais uma esperança: tornara-se um mero reconhecimento de que qualquer outra postura seria rude. <br />
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Da janela de casa, Cleide viu Sebastião se precipitar em direção ao carro de Márcio, enquanto este disfarçava o susto, cumprimentava e esperava que o vizinho falasse, justificasse a abordagem sem precedentes. Cleide via o marido que falava e apontava ora para a geladeira, ora para a casa da mãe. Márcio, com as mãos no volante, mantinha o semblante simpático e demonstrava pressa. Quando Sebastião entrou em casa, disse: “Ele trabalha até tarde hoje, mas me ajuda amanhã”. Cleide concordou com a cabeça e produziu da geladeira nova os ingredientes para o café da manhã, que o marido tomou apressado, regulado pelo horário do ônibus.<br />
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<div style="text-align: right;">“I’m waiting in this cell because I have to know</div><div style="text-align: right;">Have I been guilty all this time?”</div><div style="text-align: right;"><br />
</div><div style="text-align: right;">(Pink Floyd: The Wall)</div><br />
Um pessimista que passasse tempo suficiente na casa de Márcio podia chegar ao extremo de acreditar na utopia da família feliz. Cumprimentavam-se na cozinha com bons-dias ensolarados, comiam frutas de uma mesa colorida e riam juntos da inteligência inesperada do filho de quatro anos. O trabalho do casal já rendia o suficiente para planejarem a compra de uma casa maior. A jovem esposa previa um segundo filho, mas Márcio, ao se imaginar criando irmãos, enxergava uma possível semelhança com seu próprio pai, sob quem crescera junto com um caçula. “Uma vez o velho me deu uma surra”, gritava para ser ouvido entre as gargalhadas dos amigos “porque eu tinha apanhado de uma garotinha do meu colégio. A gente nunca esquece apanhar duas vezes no mesmo dia!”, dizia, limpando as lágrimas que soem acompanhar o riso sonoro. Homem macio, pouco mais de trinta anos, Márcio produzia o brilho que emana dos homens que ainda não se entediaram da própria capacidade de sustentar a família. Caminhava de duas maneiras: durante a semana flutuava veloz, com a elegância que as roupas sociais lhe davam ao corpo saudável; quando trazia o filho pela mão, flanava lento como um turista.<br />
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A família convivia em casa à noite e saía nos fins de semana, para fazer coisas que fazem famílias iniciantes. Márcio não trabalhava nas manhãs de terças e sextas-feiras, usava esse tempo para praticar natação. Chegava cedo, nadava por uma hora e ia para o chuveiro, onde chegava a passar três horas aproveitando o prazer que a água quente lhe dava. Podia até parar de nadar, pensava, mas não imaginava uma semana sem os longos banhos na academia. Tornaram-se um hábito tão forte, que com freqüência se pegava devaneando no trabalho sobre os chuveiros do vestiário. Quando saía do banho antes do meio-dia, comprava alguma coisa para a esposa antes de almoçar. Uma edição ilustrada de Confissões de uma Máscara foi o presente que mais lhe dera prazer oferecer à mulher. Ela era japonesa por parte de mãe, justificara. Precisava conhecer a literatura de suas origens.<br />
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Quando Sebastião e Cleide ocuparam a casa ao lado, Márcio foi o primeiro a recebê-los na rua. Conversou por mais de uma hora com o casal, falando sobre como a rua era tranquila e seu filho logo poderia brincar com as outras crianças. Semanas depois, numa sexta-feira em que Márcio saía de casa para ir nadar, olhou do carro para as pernas de Sebastião. Passou segundos mirando o vizinho que saíra de casa de bermuda para tirar o lixo, antes de ir para o trabalho. Logo percebeu o ridículo de estar parado na calçada, com o motor ligado, olhando para as coxas de outro homem. Foi sair, deixou o carro apagar. Dirigiu até a academia pensando que se tivesse pernas tão fortes teria mais impulso na piscina.<br />
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Sob o sol da manhã de sábado, Márcio despertou depois da esposa. Foi até a cozinha e a encontrou à mesa, de pernas cruzadas, comendo uma maçã. Sentou-se também ele. “E então, com quem era?” a mulher o olhava com malícia. “O quê?” “O sonho que tu tiveste essa noite. Achas que eu não ouvi como ficou a tua respiração?” Márcio corou violentamente. Tinha um medo vivo de falar dormindo desde que seu irmão lhe perguntara por que insultava o pai no sono. “Vamos, fala.” Ela sorria, mostrando-se compreensível. “Quero saber quem é essa mulher que toma meu lugar de noite!” Agora ela ria, afetando uma brincadeira exagerada. Márcio encarava o prato, sentindo o rosto incandescer. “Não tem mulher nenhuma”, murmurou. Ela gargalhou: “Ah, claro, quer dizer então que tu tens esse tipo de sonho com homem!” No mesmo momento, todo o sangue que há pouco se apressara em ocupar os vasos de seu rosto abandonou Márcio a uma palidez hospitalar. A esposa percebeu e ficou séria. Não soube o que fazer por alguns segundos, depois se levantou e foi para o quarto do filho dizendo “Vamos ver como está o pequeno dorminhoco”. Ficou olhando o menino que dormia. Quando ele acordou, foi carregado pela mãe até a cozinha, entre cócegas e risadas. Márcio olhou para os dois e sorriu, levantando com dificuldade os olhos do prato vazio.<br />
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Decidiram passar o sábado na casa dos sogros de Márcio. Ligaram para avisar que lhes levariam o neto para uma visita e foram almoçar em família. Depois do almoço, o avô dormia, e a avó ensinava o filho a fazer dobraduras de papel. Márcio segurava a mão da esposa, mas o casal não se olhava. Em casa, à noite, a mulher o olhou com bondade e o beijou. Dormiram abraçados.<br />
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<div style="text-align: center;">***</div><br />
A terça-feira chegou para ameaçar com chuva sólida a geladeira velha, agora coberta por uma lona. Sebastião sequer pensou em falar com o vizinho sobre a possibilidade de realizar o trabalho com aquele tempo. No outro dia, de tempo bom, quando Sebastião acordou, Márcio já saíra. Voltou à noite apenas para pôr a família no carro e sair novamente, sem sequer olhar para o vizinho que o esperava ao lado da geladeira. Sebastião não quis chamá-lo, sua pressa era clara já desde a maneira com que estacionou o carro na calçada. <br />
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Quando Márcio saía para o trabalho na quinta-feira, Sebastião esperava por ele no portão, com a lona embaixo do braço. Entre gentil e tímido, Sebastião interrogou o vizinho sobre a ajuda. Márcio, de dentro do carro, respondeu: “Eu preciso trabalhar. Não sustento a minha família carregando eletrodomésticos.” Antes que pudesse reagir à aspereza, Sebastião viu o carro passando o sinal fechado e dobrando a esquina. Caminhou lento até seu pátio, fechou o portão e parou em frente à geladeira, cuja pintura já descascava. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-56258019249707932742010-10-14T13:40:00.000-07:002010-10-14T13:40:18.224-07:00A poética do conto em wordLeitores do Blog,<br />
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para receber cópia de <strong>A poética do conto</strong> é preciso remeter-me um e-mail:<br />
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<a href="mailto:charleskiefer@uol.com.br">charleskiefer@uol.com.br</a> <br />
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O texto está em word e mando o arquivo completo.<br />
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Só poderei fazer isso até o final deste ano, pois recentemente assinei com a <strong>Editora Leya </strong>o contrato de segunda edição. O livro será re-lançado em 2011 e a partir de janeiro do próximo ano, por força desse mesmo contrato, não poderei mais enviar o livro a ninguém. <br />
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Abraço,<br />
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CK Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-18582274312832731802010-09-26T10:12:00.000-07:002010-09-26T10:12:19.731-07:00Catarse (Regina Maria Schneider)Jesus caminhava calmamente pela Rua da Praia, em Porto Alegre, o jornal dobrado embaixo do braço, quando viu Judas, de terno Armani, todo engomado, gravata e tudo. O olhar de Judas era fixo, duro, sem afeto, a boca retorcida pelo sarcasmo. Andava sem olhar para os lados. <br />
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Então, Jesus, tocando–lhe de leve, falou:<br />
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– Como vai, Judas? Há quanto tempo...<br />
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Judas conhecia bem aquela voz doce, e teve um sobressalto de pavor, pior dos que sofria ao saber dos resultados da Bolsa de Valores. Virou-se rápido, e encontrou os suaves olhos do Senhor. Mal conseguindo murmurar alguma coisa, suando de nervoso, respondeu:<br />
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– Boa tarde – e ainda tentando disfarçar para livrar-se daquela situação embaraçosa, perguntou –. De onde mesmo o conheço?<br />
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– De um tempo bem longe, Judas, o da Crucificação...<br />
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– É verdade – respondeu Judas, mostrando reconhecê-lo por completo, estremecendo, entre envergonhado e constrangido.<br />
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Mas que encontro maldito, pensou, logo Ele, logo Ele... Entre tantos bilhões de homens no planeta, os chineses, os indianos, os africanos, logo Ele, ali, na mesma esquina da Rua dos Andradas. Que coincidência terrível e desagradável...<br />
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Porém Cristo, vestido com uma túnica branca, larga, de calças jeans, calçando sandálias de couro cru, o cabelo negro e comprido, alto, magro, o rosto encovado, os olhos brilhantes de sabedoria e amor, olhava-o com ternura. Parecia um hippie, e além de Judas, ninguém o reconheceria assim simples e humilde, e sem denotar qualquer atitude de Rei e Santo que era... <br />
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Judas não pôde fingir mais:<br />
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– Meu Jesus, eu sou indigno de receber a tua boa palavra. Eu fui um traidor, um homem de baixo caráter, um podre...<br />
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– Não fales assim, meu Irmão... Eu não esqueci o teu sofrimento, o teu desespero, o teu remorso... Tua vida passada, e quantas mais deves ter tido até hoje. Sei que foram dolorosas. Fiquei marcado em ti com meu sangue... Mas vamos tomar um cafezinho, assim conversamos mais à vontade.<br />
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Judas estava petrificado, não sabia o que fazer. O homem que traíra e que pagou com morte violenta por seu ato lhe falava com amor, compreensão, humildemente. Queria esquivar-se desse encontro, ser engolido pela terra, ali naquele momento, sumir, desaparecer, mas Jesus, com o semblante resplandecente, o hipnotizava, o atraía como havia sido antes, quando Judas O amava e O seguia. Lembrou os seus ensinamentos, o tempo em que pescavam juntos e sentavam para cear, distribuindo pão e peixe para o povo. Estava tão rígido e tenso que não conseguia se mexer, e Jesus sentiu isso. Pegou-o amavelmente pelo braço e convidou-o a ir a sua sala de trabalho, que ficava ali pertinho, no Edifício Annes Dias. <br />
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Lá chegando, abriu o amplo aposento, fez Judas sentar-se num sofá e serviu dois cafezinhos. <br />
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Judas continuava petrificado.<br />
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– Eu te matei – falou, olhando bem nos olhos de Jesus, pela primeira vez – Como pude? Eu, que conhecia a Tua doutrina, a Tua filosofia, as Tuas parábolas, as Tuas profecias, o Teu amor ao próximo, eu que Te amava mais do que a mim mesmo, vacilei, Te entreguei...<br />
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– Calma, Judas, o teu crime não foi o único na Humanidade. Teve Caim, em primeiro lugar, e outros crimes horrendos. Ainda hoje existem tantos que eu nem poderia lembrar todos, basta ler os jornais, as revistas...<br />
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– Aquele beijo – falou Judas – aquele beijo. Aquele beijo – repetia obsessivamente de cabeça baixa, balançado-a para lá e para cá –. Sabe Jesus, depois dele, nunca mais beijei ninguém na face. Nem os meus filhos, nem a minha mulher, nem minha mãe... Aquele beijo ficou cravado em mim como uma cicatriz. Pior, como um ferro incandescente no meu peito, que pulsa, que lateja, uma angústia que nunca se vai. Ainda hoje ele arde e me queima aqui dentro. <br />
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– Cada um tinha que fazer o que estava escrito, Judas. Eu fiz a parte mais fácil: meu papel foi ser mutilado, torturado, morto pelo bem da Humanidade. A ti tocou a parte pior: a de trair um amigo, um companheiro de luta, para que as profecias fossem cumpridas. Estava escrito. Cada um teve que representar o seu papel. Tu foste uma vítima, te escolheram para traidor. Quanto a mim, eu só tive que morrer. Sofri, é verdade, mas o meu sofrimento não chegou nem perto dos teus remorsos. Quantas dezenas de séculos já se passaram desde a Paixão, e tu ainda estás te martirizando, como naquele dia em que fui preso. Não aguentaste a dor da culpa e te enforcaste no pé de figueira.<br />
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– Era o mínimo que eu tinha a fazer. <br />
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– É exatamente isso o que quero te dizer: tu foste o exemplo mais notável, mais concreto, mais real de que a traição mutila e derrota o ser humano. Ela deixa seqüelas irremediáveis na consciência. É um crime horrendo, pior talvez que o parricídio. Foi contigo que a Humanidade aprendeu esta lição.<br />
<br />
– Mas o pecado continuou, Mestre, o homem não parou de trair. Acontece todos os dias, a toda hora, de várias maneiras.<br />
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– É verdade, Judas. Mas tu não avalias quantas pessoas deixam de cometer traições levadas pelos ensinamentos evangélicos que nós dois construímos juntos. Centenas de milhões de indivíduos na terra seguem a Palavra das Escrituras e não traem. Com o teu arrependimento, tu te redimiste e te tornaste um santo. Quanto aos que ainda traem chegará sua vez de compreender o mistério: eles não sabem o que fazem e reencarnarão em tantas vidas quanto forem necessárias para esse aprendizado. Estava escrito.<br />
<br />
– Estava escrito – repetiu Judas resignadamente, como se tivesse, enfim, compreendido o seu papel.<br />
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Jesus, olhando-o tão tenso e contrito, disse: <br />
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– Deita-te no sofá, Judas, relaxa, estamos a sós aqui, podemos conversar à vontade.<br />
<br />
Judas afrouxou a gravata, descalçou os sapatos. Sentia-se cansado e exaurido com aquele encontro inesperado. Estressava-o aquele jeito amável do homem que matara. Estirou-se no sofá com lassidão, tendo Jesus a sua esquerda, quase atrás de si, evitando aquele olhar que não suportava porque fazia lembrar-se de tudo. E, então, num átimo, compreendeu o que o Mestre tentava lhe dizer.<br />
<br />
– Escrito! – gritou ele revoltado – Quer dizer então que eu fui usado, escolhido feito cobaia para cumprir um papel viciado, que já estava previsto, que alguém teria que fazer a qualquer custo, contanto que a profecia se cumprisse... Mas é claro, Tu mesmo o disseste, certa vez: “Em verdade, em verdade vos digo que um de vós me há de entregar". Tu sabias o tempo todo que seria eu o infeliz, o desgraçado. E o que fizeste para me ajudar? Nada, absolutamente nada. E me tornei, assim, a grande vítima da história, o bandido, o vil, o traidor, enquanto Tu foste a Vítima, o Mártir, o Salvador da Humanidade, o Santificado. A Bíblia é o livro que mais vende em todos os tempos, espalhando a Tua história, o Teu sacrifício. O Teu nome é respeitado em todo o mundo ocidental e até oriental, as crianças são batizadas com o Teu nome enquanto eu... Sou o símbolo da traição, o sinônimo mesmo disso. Eu fui o verme imundo para que o Teu nome se enchesse de glória. A vergonha e a impureza me tornaram desprezível, torpe, ignóbil, a verdadeira expressão da baixeza, da vileza, da degradação...<br />
<br />
– Não te julgues com tanta severidade, Judas Iscariotes. E não penses que nada fiz para te ajudar. Rezei muito por ti no Getsemani, companheiro, mas a tua tentação foi mais forte do que a minha prece. E, além disso, na Última Ceia, avisei: "Em verdade, em verdade vos digo que um de vós, que come comigo, me há de entregar... O Filho do Homem vai, segundo está escrito dele, mas ai daquele homem por quem for entregue o Filho do Homem! Melhor fora a esse homem não ter nascido.” Eu te avisei, Filho!<br />
<br />
Judas recordou o episódio e abaixou a cabeça em sinal de culpa.<br />
<br />
– Mestre – disse ele – perdoa–me.<br />
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– Antes de eu morrer na cruz, meu amigo, tu já estavas perdoado. E, além do mais, estás idealizando demais a minha figura, eu somente fiz o que pude naquela época, era a minha obrigação. Naqueles tempos, eu tinha um pouco mais de luz do que os outros homens, e julguei compreender melhor a Humanidade, guiado pelos ensinamentos do Meu Pai. Então, pregar a minha fé foi uma coisa natural em mim, não pretendi te usar em qualquer sentido. Podes ter certeza que desempenhaste muito bem o papel que te coube. A traição ficou marcada na Humanidade como uma das coisas mais abjectas e vis que um ser humano pode cometer. Teu exemplo serviu para isso, para ensinar as pessoas a não trair. O teu suicídio transformou tua atitude na representação do arrependimento. Tu foste corajoso e forte ao te enforcares. Não precisas te sentir perseguido por isso.<br />
<br />
– Mas por que eu, logo eu?<br />
<br />
– E por que não tu, Judas? O que tu tinhas de melhor que outros para não poderes servir de traidor? Isso é uma onipotência tua. O de querer sempre ser o maior e o melhor. <br />
<br />
Judas estremeceu e começou a chorar aos arrancos, sacudindo-se convulsivamente.<br />
<br />
– Eu tinha o livre arbítrio, Jesus, eu podia ter me negado, escolheriam outro apóstolo, mas eu escutei o primeiro chamado, Satanás entrou em mim, botei olho grande naquele dinheiro, cedi ao primeiro impulso, não pensei muito e Te vendi!<br />
<br />
– Foi – disse o Senhor.<br />
<br />
Judas desesperou-se. De um salto, levantou, arrancou a gravata italiana, tirou o casaco de tweed, jogando-os no chão. Rasgou as vestes como se ainda vivesse em tempo bíblico. Arrancou os cabelos, arregalou os olhos, delirante, febril, doentio e transtornado. Debatendo-se, gritou o que pode de raiva, de angústia, de agonia. Depois, deitou-se novamente de bruços, exausto, chorando feito criança, aos solavancos, um menino mau arrependido diante da figura do pai.<br />
<br />
Jesus o olhava com mansidão, sentado no outro sofá. <br />
<br />
– Sabe, Rabi – falava Judas com a voz entrecortada – de tudo o que se passou, a tua prisão, a tua tortura, a coroa de espinhos, o teu sangue vertendo, tu arquejante ao peso da cruz, a chacota e o escárnio com que te trataram, a tua sede, o fel que bebeste, a tua própria morte, as tuas chagas, de tudo isso o que mais me doeu foi o meu próprio beijo. Meus lábios quentes e voluptuosos, viperinos, beijando tua face morna e inocente, tua carne humana... Ao longo desses dois mil anos, vivendo sempre dezenas de vidas sobre a terra, é aquele beijo que me martiriza, e me afoga. Trair, muitos e mais do que eu traíram, é humano, mas aquele beijo jamais poderei esquecer.<br />
<br />
– Foi um beijo sujo, não é assim que tu o sentes, Judas ?<br />
<br />
– Sim, um beijo covarde. Ele marcou irremediavelmente a minha laia, a minha corja, a minha árvore genealógica. Fiquei com o sinal de Caim... Sabe, Cristo, depois que te traí, repeti esse gesto muitas vezes. Por exemplo, fui Nero.<br />
<br />
– Eu sei, Judas, eu fui Agripina...<br />
<br />
– No Brasil, fui Joaquim Silvério dos Reis...<br />
<br />
– Eu sei, Judas, eu fui Tiradentes.<br />
<br />
– Eu fui Hitler.<br />
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– Eu sei, Judas, eu fui judeu.<br />
<br />
– Eu fui da Klu Klux Klan.<br />
<br />
– Eu fui Martin Luther King.<br />
<br />
– Viste, viste Mestre? E além do mais, fui Stalin e Médici. Pinochet e Bush tem meu sangue.<br />
<br />
– Eu sei, Judas. Fui o operário russo, o povo chileno, o árabe, o índio, o negro, o palestino, o cigano, o homossexual, o drogado, o presidiário, o brasileiro. E tu sempre estavas lá, do lado contrário ao meu.<br />
<br />
– Meu problema é genético.<br />
<br />
– Não sejas determinista, tu podes mudar essa maneira de ser.<br />
<br />
– Sou filho de Caim. Faz parte da minha natureza.<br />
<br />
– Estou aqui contigo, meu Filho, para que tu aprendas a mudar e, principalmente, a te perdoares, a refazeres tua vida, pois ainda voltarás muitas vezes à Terra. E hoje, o que fazes, que profissão exerces?<br />
<br />
– Sou agiota. Extingo a vida do infeliz que me bate à porta todo o dia, do miserável que está endividado, atolado, sem saída. Sugo as suas últimas forças, abandonando-as somente quando estão esgotados e exangues e nada mais posso tirar delas. E Tu, Cristo, que fazes por aqui, nesta distante cidadezinha, perdida no Sul.<br />
<br />
– Sou psicanalista. Tento ajudar as pessoas a viver um pouco melhor. A vida não é um peso só para ti. As pessoas que batem à minha porta procurando apoio, vêm assombradas pelo sofrimento, angústias, culpas, remorsos...<br />
<br />
– Analista? Mas então este é Teu consultório? E este sofá não é mais do que um divã? Eu estou vivendo uma sessão de análise?<br />
<br />
– Sim, Judas. Foi a maneira que encontrei para te ajudar, te escutando melhor, te deixando falar mais dos teus sentimentos...<br />
<br />
Judas levantou-se, andou um pouco pela sala, viu o retrato de Freud na parede. Estava visivelmente mais aliviado. Deitou-se de novo no divã, ficou olhando o teto, silencioso, refletia sobre o que Jesus lhe dissera. Pensou em perdoar seus devedores, aliviar os juros altos que aplicava aos empréstimos. Precisava visitar um irmão aidético que não via há dois anos. Queria também beijar os filhos, tinha muito que fazer. Levantou-se. <br />
<br />
Haviam se passado exatos 50 minutos.<br />
<br />
Jesus também levantou. Estavam ombro a ombro, de homem para homem, face a face, e o abraço veio natural, espontâneo, necessário, irresistível. Ficaram assim abraçados por um longo tempo.<br />
<br />
– Volto amanhã – disse Judas – na mesma hora, está bem? Foi bom falar, Meu Rabi, há quanto tempo eu não chorava? Há mais de dois mil anos. Foi emocionante estar aqui Contigo e saber que posso mudar para melhor. Eu ainda Te amo e muito, descobri isso agora. Aliás, nunca deixei de Te amar, mesmo quando cometi aquela loucura.<br />
<br />
– Eu também te amo, Judas, e muito. Eu vim pelos pecadores.<br />
<br />
– Eu sei, Mestre, obrigado. Quanto Te devo?<br />
<br />
Jesus olhou-o bem nos olhos, serenamente, e disse com fala mansa:<br />
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– Trinta moedas de prata. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-51394109101709288082010-08-26T12:10:00.000-07:002010-09-02T12:01:13.071-07:00Melhor voltar para casa (Cláudia Baumgarten)Querida, hoje eu acordei diferente. Tu sabes como as dores preenchem a vida. Mesmo eu ingerindo essa infinidade de pílulas coloridas, as dores continuam a me perseguir. Elas se tornaram as minhas leais companheiras. Elas te substituíram, Celeste. Os anos se tornaram mais difíceis sem tua presença. É viva a cena do dia em que a tiraram de mim: A violência de branco, o semblante amedrontado das crianças – o caçula Alfredo tinha apenas dez anos - e o olhar desconfiado dos criados. De todos, ficou só a filha da Firmina, que limpa a casa. E basta, não preciso mais dos outros. Ainda moro aqui no Solar dos Magalhães onde tudo se deteriora. As cortinas do nosso quarto não são mais tão claras e têm as marcas de visitas das traças; o colchão, uma vez macio e convidativo, tem manchas amarelecidas; os móveis não escondem as ranhuras causadas pelos cupins. Que saudade de tuas eau de toilette. Ao invés dos suaves aromas, a vulgaridade do mofo e da urina. Isso foi o que me sobrou e em nada lembra nossos áureos tempos onde tinham vez as viagens ao primeiro mundo, os amigos influentes e os socialmente importantes com suas generosas festas. Lembra quando oferecemos nosso apartamento em Paris para o governador Flores da Cunha? Ou quando hospedamos os filhos de Arthur e Elisa Klein? Quanto embaraço, em pleno estopim da guerra. Fazíamos parte do seleto círculo da alta sociedade porto-alegrense. Mas isso faz tanto tempo. Os que não morreram, se afastaram naturalmente. Bando de hipócritas! <br />
<br />
Nossos filhos? Não falo com eles nem tenho notícias. Eu não telefono, eles também não. Eu não os visito, eles tampouco. Ainda lembro bem dos quatro correndo pela casa e tu, com a severidade doce de mãe, chamando-lhes a atenção aos bons modos de crianças bem educadas; os quinze anos de Celina em 1944, nossa última grande festa; Corina, coitada, não teve sua apresentação à sociedade. Estava sem a mãe e nunca me perdoou por isso. O Alfredo, em minhas divagações, parece nunca ter saído dos cueiros. Estou um pouco confuso. O dia de hoje foi exaustivo. Não sei se essas lembranças incluem o Geninho ou sou eu quem o resgata de algum porão sujo e o enxerta nelas. Até hoje não sei o seu paradeiro. Nossos filhos se afastaram de mim; não tiveram culpa. Deixem-me em paz! – gritei, certa vez. E eles me deixaram. Mas não fica preocupada, eu ainda tenho a Negrinha. Eu não sei o seu nome de batismo, nunca consegui gravá-lo na memória. Faço uma deferência ao seu tom de pele, nada mais. Toda vez que a chamo assim, arqueia uma das sobrancelhas, enrugando um pouco a testa. Acho que não gosta, mas eu não me importo. Ela é paga para cuidar de mim. Diz que faz curso superior de enfermagem, mas eu duvido. Desde quando negros entram na faculdade para estudar? Mu-la-ta, seu Eugênio. Negra, não. Ela sentencia, cheia de si. Parece ter saído do quadro do Di Cavalcanti que temos na biblioteca. Para mim não faz a menor diferença, eu não ligo a mínima para a cor da pele dela, desde que faça as coisas certinhas, não falte ao serviço e, o principal, que fale pouco, quase nada.<br />
<br />
Eu disse que acordei diferente. Abri os olhos antes do ronco do despertador, um hábito que venho cultivando há algum tempo. Não gosto do barulho dos alarmes dos relógios, eu já experimentei e quebrei vários. Também não aprecio ser acordado pela enfermeira. Prefiro acordar sozinho, sempre a mesma hora. Hoje ele tentou aplicar o golpe baixo da falta de luz. Mas eu fui o vencedor, mais uma vez. Zombei dos seus enormes olhos vermelhos piscantes, pareciam tiques nervosos. Preciso dele porque consigo enxergar as horas mesmo sem os óculos. Malditos. Nunca sei onde os coloco, e vem a Negrinha e me entrega. Às vezes penso que ela os esconde de propósito, só para me irritar. Não consigo ler, cansa. Os olhos ardem, lacrimejam. A visão fica embaçada, tal qual a janela desse quarto, que nada se vê através. Tolerante, suporto a sofrível leitura do jornal pela minha cuidadora. Criatura esquisita. Já desisti de manter conversa com ela. Sua cultura se resume aos signos do zodíaco; na política seus comentários são carregados de um discurso esquerdista radical. Em outros tempos, seria liquidada.<br />
<br />
Sonhei contigo noite passada, Celeste. Burlavas o esquema de segurança, passavas pelo portão de ferro e vinhas ao meu encontro, amável, sem dizer nada. Um vestido azul, pouco decotado, vestia teu pequenino corpo. Lúcida e radiante. O cabelo farto estava preso, apenas alguns fios se rebelavam caindo ao lado das orelhas ornadas pelos brincos de mamãe – aqueles que te dei no primeiro ano de casamento. Generosa, me estendeste a mão e eu te convidei para dançar. Deslizávamos ao som de Danúbio Azul quando percebi que o ritmo clássico deu lugar ao popular. O salão nobre do Clube do Comércio transformou-se numa gafieira desclassificada. Fiquei desajeitado, pois não sabia te conduzir. Tentei me desvencilhar de ti e pedir à orquestra que parasse com o insulto, mas não consegui, me seguravas forte e me conduzias ao sabor dos acordes frenéticos. O roçar das tuas coxas me causavam um prazer juvenil. Segurei teu corpo com mais firmeza enquanto sussurravas algo que não pude distinguir, o som no salão estava ensurdecedor. Meu corpo suava por todos os poros e o teu também. Um susto me acometeu quando visualizei outro rosto e não o teu. Era mais escuro, com feições mais fartas; os cabelos muito ondulados, negros. Os cheiros se misturaram e eu despertei suado, ofegante e com o pijama molhado. O sonho transformou-se em pesadelo. Engoli o orgulho e a vergonha, esperei a chegada da Negrinha com a bacia d’água para meu banho matinal.<br />
<br />
É degradante essa hora. Detesto o contato em minhas partes íntimas. Ela me tocou de um jeito que mulher decente não tocaria. Uma despudorada, isso sim! Nesse momento, a Negrinha fica muito perto de mim. Dá até para sentir a sua morrinha. - Não tens tempo para te banhar? Não tem água quente em casa? – eu pergunto. Nesses dias frios é bem compreensível desprezar um banho dia e outro. Ela responde: Tomei sim, seu Eugênio. Tomei sim. Fez bico de passarinho e começou um assobio, afinado e insuportável, de uma canção que não sei qual é e nem desejo sabê-la. Já pensei em oferecer-lhe meu chuveiro para espantar a catinga, meu lar. O que pensarias disso, Celeste? Desisti e pedi para acelerar a dupla tortura. <br />
<br />
É mesmo, eu disse que acordei diferente. Segura meus voos, depois de velho dei para devaneios impróprios. Desculpa, querida, manterei a compostura. As dores não me visitaram hoje, deram uma feliz trégua ao meu corpo. Eu já nem sabia o que era ficar sem dor. Pude levantar-me sozinho, sem o braço extra da Negrinha, porque ela sempre está por perto quando eu desperto. Ela escancarou um sorriso alvo – que dentes perfeitos, eu nunca havia reparado, ou talvez nunca tenha sorrido para mim – e disse: Muito bem, seu Eugênio. Muito bem. Pelo visto, o senhor acordou animado e de bom humor! Percebi que eu retribuía àquele meigo sorriso. A sua voz foi um convite à vida. Combinava com o dia ensolarado que fazia lá fora e que eu provoquei para entrar. Abri as janelas, um rastro de poeira dançante pode ser visto, e o sol aqueceu a tua cadeira de balanço. Há muito eu não respirava um ar tão fecundo, gelado, revigorante. Tive um desejo enorme de tomar o café da manhã na cozinha, não mais na cama, junto aos lençóis senis e amarrotados. Na cozinha, sobre uma toalha limpa, comer pão com manteiga e café bem forte. Mas o doutor proibiu, senhor, advertiu a petulante. Aos diabos, o doutor! – gritei. Enquanto me deleitava com tamanha fartura, Negrinha me observava atenta, enchendo vez em quando a cuia com água quente. Lembrei da minha meninice na estância de papai e das rodas de chimarrão com a peonada. Mamãe não gostava, achava um hábito subalterno e para não afrontá-la, nunca bebia em sua frente ou com os negros. Ela jamais me perdoaria se o fizesse. Acho que Negrinha teria sido escrava de dentro de casa se vivesse àquela época. O que tem a cor dela, Celeste? Não podemos ser preconceituosos nesses tempos modernos. Ouvi dizer que é crime. <br />
<br />
Quis sair daqui. As paredes do corredor que dá acesso à sala social, tomadas por quadros com fotografias desbotadas de cinco gerações dos Magalhães, pareciam estreitar-se. Pude até sentir a respiração daqueles que insistem não ser esquecidos, talvez fosse um convite para ficar ali estampado também. Senti medo, uma urgência em ver a vida além delas. Para aplacar o vento minuano que insistia em soprar, vesti o casaco de couro; de longe, petit pois, de perto, bolorento. Melhor se tivesse um poncho. À luz do dia, em plena rua, minhas pupilas diminuíram e me causaram vertigem. Segurei-me no braço da enfermeira, evitando a queda. Fomos à Praça Quintilhano. Está muito diferente daquela que frequentávamos, tem cerca e recebe visitantes pouco ilustres. O passeio trouxe à tona lembranças até então aprisionadas em um sótão escuro, revistas como um filme em preto e branco. Vi jovens abraçados nos bancos de madeira, crianças pulando alvoroçadas pelo gramado e seus cães correndo atrás... Pensei na brevidade da vida, da nossa vida. Engraçado, hoje as lembranças não doeram, ficaram coloridas de novo. Precisei sentar. O sol refletido no uniforme branco da Negrinha a deixou mais escura ainda. As suas mãos pousadas sobre os joelhos estavam bem feitas, unhas curtas e sem esmalte. Irias gostar, Celeste. Apesar do odor, ela parece asseada. Não trocamos uma palavra, mas nos entendemos muito bem. Foi o silêncio que evitou o abismo entre nós, ela sabia disso. Talvez seja mais inteligente que eu previra. Tanto faz, agora. <br />
<br />
As horas passaram e o estômago reclamou pelo almoço. Pretendia ser comensal dos Ávila, mas não sei se vivem ainda ou se me receberiam. Paramos num restaurante qualquer, com comida servida a num tal sistema de buffet. A Negrinha me ensinou como funcionava e me serviu, sem o menor requinte. Não havia garçom para nos servir, acreditas? Vi nos olhos dela o receio em relação ao que pedi para comer, mas ela nada disse. Minha doce cúmplice. Eu disse doce, Celeste? É que eu pensava em ti e no tempo que almoçávamos juntos. Lembra? Éramos muito felizes, não? Cometi o disparate de pedir um vinho e bebê-lo com ela. É triste beber sozinho. Pedi o melhor Cabernet Sauvignon que o lugar oferecia e degustei como se fosse um beijo há muito desejado. A língua deu uma travada ao primeiro contato com o rubro líquido. Eu o fiz dançar por todos os cantos da boca, amaciando o sabor. – O aroma é de especiarias e frutas vermelhas maduras, percebes? É o carvalho que dá o toque amadeirado. Os vinhos de guarda são envelhecidos em barricas de carvalho. – Ensinei à Negrinha um pouco da arte de Baco. Ela o bebeu com o mesmo interesse com que me escutava.<br />
<br />
O meio da tarde chegou cedo demais. Pedi que me levasse ao teu encontro. Não! Eu não disse nada a ela. Fomos de táxi. O caminho até o Hospital São Pedro está tão diferente. Não reconheci minha cidade. Semáforos, automóveis, edificações modernas e altas, outras apenas rejuvenescidas. Não a vi crescer, prosperar. Há quanto tempo o senhor não sai de casa, seu Eugênio? Perguntou a Negrinha, admirada com a minha perplexidade. Vinte, trinta anos? Perdi as contas, meu bem. – respondi. Oh, não te aborrece, Celeste. Deve ter sido efeito do vinho, caso contrário, eu jamais a trataria com tamanha obscenidade. Quando cheguei em frente ao prédio de arquitetura neoclássica, que por muitos anos tem sido teu lar, estremeci. A decadência do manicômio fez espelho com a de nossa família. Quantas vidas destruídas... Geninho, estúpido ou inocente demais. Ainda não sei como classificá-lo. Hoje eu entrei. Não me viste? Eu sei que não, fui muito discreto. Estavas conversando com as nuvens, como fazias no dia em que te levaram de mim. Sim, eu chorei. Mas por piedade de mim, incapaz de entrar em teu mundo e sorrir contigo novamente. É melhor voltarmos para casa, seu Eugênio. Já fizemos muita extravagância hoje, sugeriu a outra, me levando pelo braço, me afastando de ti. <br />
<br />
Ainda não queria retornar ao solar. Precisava me despedir do dia. Fui até a Usina do Gasômetro, às margens do lago Guaíba, que até ontem era rio. Sugestão dela, dizendo que lá apreciaríamos o mais belo por-do-sol do mundo. Fumei um cigarro. A fumaça percorreu sem resistência o caminho já desbravado até meus alvéolos. Envolto à névoa formada pelo ar expelido, transportei-me aos tempos de guri, no colégio. Meus primeiros pitos foram lá, no banheiro, escondido com mais uns três moleques. Já estava dependente quando fomos pegos pelo padre. Situação que resultou em mãos inchadas de tanta palmatória, uma suspensão de uma semana e um sermão do papai, sem falar da surra e do traseiro dolorido. <br />
<br />
Era melhor voltar para casa. O vento, que continuava a soprar forte, fazia música e levava consigo o calor acumulado no dia. Desejei viajar com ele. Minhas mãos, então frias, foram aquecidas ao contato com as mãos macias de Negrinha. Quem visse de longe, à primeira vista, poderia crer que fôssemos amantes. Não havia mais tempo para isso.<br />
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<div style="text-align: center;">* * *</div><br />
Jacinta acordou sobressaltada com o insistente alarme do despertador do quarto contíguo. Perdera a hora. Vestiu às pressas o jaleco e correu até o quarto de seu paciente, pronta para receber uma bronca. Seu Eugênio não se encontrava na cama, como todas as manhãs. Estava sentado na cadeira de balanço – só corpo – próximo à janela, abraçado a um antigo álbum de família. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com9tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-20599190786970720362010-08-12T12:26:00.000-07:002010-08-12T12:26:16.056-07:00O Cadáver (Ricardo de Albuquerque Müller)Não sei se devo ou não acreditar nos meus olhos, se tenho a mente perturbada pela mais terrível solidão que um homem pode suportar. Esse cheiro de morte com o qual tenho convivido dia após dia tem me levado a um desespero que beira à loucura, onde não vejo saída nem na própria morte. Escrevo com a intenção de, ao relembrar os fatos, tentar encontrar uma lógica que me explique tudo por que venho passando, apesar de achar que estarei condenado a um lento e interminável martírio.<br />
<br />
Havíamos passado ao largo das ilhas Cayman num dia de mar calmo e praticamente sem vento. Os turistas já haviam almoçado e a maioria estava no convés apreciando a paisagem. Devido ao cansaço, eu preferi ficar na cabine e tirar uma sesta. Foi com um duro golpe na cabeça que acordei e percebi que o navio afundava. Demorei alguns instantes para entender o que se passava, mas logo compreendi que a embarcação adernava para bombordo. Ouvi muitos gritos e um barulho infernal que deduzi ser o casco se partindo. Pela escotilha, vi homens ao mar e vários corpos boiando. Dois botes haviam sido lançados, mas com o desespero os passageiros foram subindo neles em número excessivo e desordenadamente, acabando por emborcá-los. Tentei abrir a porta da cabine, mas ela estava trancada. A escotilha também estava emperrada, e não consegui abri-la. Não achei nenhum objeto de metal ou de algum outro material resistente que pudesse servir para arrombar a porta. Fui tomado de um desespero sobre-humano e comecei a gritar e a chorar, dava socos e pontapés na porta e rezava. O navio continuou virando de lado até a porta da cabine ficar para baixo e a escotilha para cima. Depois, começou a afundar rapidamente e vi a água encobrir totalmente a pequena abertura circular, porém a cabine continuava totalmente seca, sem infiltração de água. Foram poucos minutos até o navio se chocar contra o fundo e estabilizar. Então, do barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor.<br />
<br />
Recomposto, percebi que não estava sozinho. Havia um homem inerte e com a face completamente desfigurada dentro da cabine. Provavelmente tinha sofrido o traumatismo no momento em que o barco havia virado bruscamente. Palpei o pulso e logo vi que ele estava morto. Em seguida, tive náuseas e mal-estar, e precisei me virar de costas para o cadáver e respirar fundo. Permaneci nessa posição por alguns instantes e não conseguia imaginar como ele tinha surgido ao meu lado. Eu certamente havia entrado sozinho na cabine e a porta estava fechada. Então, criei coragem e me virei. Estendi o corpo e passei a examiná-lo mais detidamente. Havia um afundamento de face e múltiplos ferimentos que não permitiam reconhecê-lo. O lado direito do crânio apresentava uma grande contusão, com laceração no couro cabeludo que deixava entrever parte da massa encefálica entre os fragmentos ósseos. Procurei nos bolsos algum documento que pudesse identificá-lo, mas nada encontrei.<br />
<br />
Fazia uma hora que o navio havia afundado. Continuava tudo no mais absoluto silêncio. A única iluminação provinha da luz natural que iluminava o oceano e entrava pela pequena escotilha, num tremular inconstante e fantasmagórico. Deduzi que não poderíamos estar muito longe da superfície, pois a intensidade da luz era razoável. Contudo, não percebia nenhuma movimentação junto ao navio, nenhum sinal que indicasse que o naufrágio tivesse sido avistado por alguém. Tentei outras vezes sair desse local pequeno e oprimente, mas não tive sucesso. Enfim, desisti. Restava apenas aguardar um possível resgate.<br />
<br />
Após seis horas o ar estava insuportavelmente quente e irrespirável, com uma emanação pestilenta proveniente do cadáver que já começava a se decompor. Não conseguia me afastar dele devido ao espaço exíguo. A noite já começava a despontar e as trevas invadiam pouco a pouco o cubículo, deixando-me extremamente aflito. Durante a longa espera até o amanhecer, eu permaneci acordado e com os olhos abertos, rodeado pelo mais profundo breu, sem me mexer, com medo de tropeçar no cadáver.<br />
<br />
No dia seguinte e nos outros foi a mesma tortura, o mesmo sacrifício pelo qual deve passar o condenado ao fogo eterno. Mas seria o demônio tão sádico e cruel? Teria isso a ver com a minha vida um tanto quanto desregrada? Estaria sendo eu punido pela bebida e outros vícios? Confesso que pensei seriamente no suicídio, mas não tinha como cometê-lo. Não pela falta de coragem, mas pela falta de meios materiais. Não comia e não bebia, mas o meu corpo nada pedia. E os dias e as noites se sucediam numa massacrante e interminável rotina. O que mudava era apenas a progressiva putrefação do cadáver, que inicialmente havia inchado e adquirido uma coloração esverdeada, para depois começar a liberar uma secreção escura e fétida, com formação de bolhas e perda de partes da pele e demais tecidos. Eu não tinha onde ficar a não ser sobre aqueles restos de matéria putrefata, com o meu corpo cheirando a morte, mas sem conseguir morrer.<br />
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Faz um ano que ocorreu o naufrágio. Ninguém ainda apareceu para resgatar o navio. O cadáver que me acompanha — eu o batizei de Polinice — está praticamente reduzido a uma ossada. A luz fraca e tremulante e o escuro profundo e absoluto se intercalam numa sucessão infinita e torturante. Sinto que esta cabine é o meu túmulo onde jamais conseguirei descansar. E ninguém neste mundo poderá me responder a uma dúvida que me afligirá por toda a eternidade — poderia ser eu o cadáver? Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-36344893235985319972010-07-04T14:54:00.000-07:002010-07-04T14:54:22.965-07:00Desabafo contra velhos decrépitos (Luara Pinto Minuzzi)Vocês estão enxergando aquele velho decrépito sentado na poltrona feita especialmente para combinar com a imagem do dono (o que quer dizer, poltrona decrépita)? É claro que não estão enxergando. Como eu sou boba. Vocês não podem ver nada, apenas imaginar a partir das palavras que eu escrevo. Ou seja, se não confiarem em mim, o problema não é meu, já que os caros leitores dependem da narradora para ficar a par dos fatos, e não o contrário. Enfim, vocês não enxergam, mas acreditem quando eu digo que um velho decrépito está sentado em uma poltrona ainda mais decrépita. É a pura verdade. E o tal de velho decrépito finalmente dormiu após vários dias de vigília.<br />
<br />
Já contei quem é o velho decrépito? Não? Como eu sou mal-educada. Não me apresento, nem apresento meu marido. Pois é, esse velho decrépito é meu marido. Meu marido há tantos milênios que eu já até perdi as contas. Parei o cálculo nos 47 anos, 11 meses, 25 dias e 19 horas do nosso casamento e da noite na qual o velho decrépito (que, na época, não era velho, mas já mostrava indícios da decrepitude potencializada com a idade) tirou minha virgindade e minhas últimas alegrias. <br />
<br />
Vocês estão notando como ele baba e ronca enquanto dorme? É claro que não. Mas se essa história fosse um filme, aí sim, tudo seria diferente. Os leitores (que se transformariam em espectadores) poderiam observar as pantufas ocres puídas e o chambre que já conheceu melhores dias em cores – pois eu não admitiria nada menos do que um filme em cores. Mas já sou uma senhora com certa idade e, quando se chega a essa certa idade, não é mais possível aprender as modernidades malucas dos jovens. <br />
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Bom, como eu ia dizendo, o velho decrépito afirmou sentir muita angústia pelos livros que não leria. Então, botou-se a ler e ler. Mas a insanidade dele atingiu o auge quando, entre lágrimas, confessou não ser capaz de dormir enquanto não terminasse uma obra. “Imagina morrer e deixar um livro pela metade”, o decrépito me disse. Então, após alguns dias sem sono, parando apenas para comer e ir ao banheiro (tudo com a minha ajuda, aliás, ajuda é eufemismo, pois só faltou que eu comesse e cagasse por ele, precisava fazer tudo, o velho decrépito não presta para mais nada), ele chegou à última página do tal de volume. E dormiu. <br />
<br />
Sempre ocupadíssimo com essa maldita literatura, o velho decrépito – o que me deixava doida, não, o mais correto seria escrever que ainda me deixa doida. Quanto tempo vocês imaginam que sobrava para mim e para as crianças (sete crianças, por sinal, porque tempo para fazer crianças o velho decrépito tinha suficiente)? Não precisam responder, pois se trata de uma questão retórica e eu também não ouviria as respostas, já que vocês lerão esses papéis em um tempo e espaço diferentes dos que eu escrevo. É, espaço até, por uma enorme coincidência, poderia ser o mesmo (se não se considerasse a palhaçada que o velho decrépito costumava dizer de uma pessoa nunca poder entrar no mesmo rio duas vezes, mas isso é coisa de gente vagabunda e desocupada com miolo mole). Porém, tempo, não. Tempo definitivamente não seria o mesmo. Mas divagações assim não interessam, desculpem essa senhora que já viveu demais e precisa desabafar. Eu também não responderei a questão acima formulada. Não é necessário. Não, para ser bem sincera, responderei sim, pois prometi a mim mesma que essa seria a minha vingança contra o velho decrépito. Como vocês já esperavam, eis aqui a solução do problema: nenhum, não sobrava nenhum tempo para a família dele. <br />
<br />
Eu lembro uma vez na qual resolvi espiar um livro bonito com letras douradas. Vocês sabem como é, uma esposa dedicada e afetuosa busca aproximar-se do seu companheiro e, para me identificar mais com o velho decrépito, eu precisaria entender um pouco daquela papelada toda. Nada mais fácil para mim, alguém que sempre se mostrou inteligente e perspicaz. Decidi abrir em página aleatória e li um trecho. Meus cabelos arrepiavam-se mais e mais a cada palavra. A mulher passou a língua no seu peito, detendo-se no mamilo. Sentindo o ingurgitamento no baixo-ventre... Não, não continuarei, essa é uma história respeitável, escrita por uma senhora respeitável. Se transpus a passagem aqui é apenas para tornar a narrativa mais completa e realista para os meus leitores. Aquele velho decrépito. Eu sabia que não era à toa o seu gosto por esse monte de letrinhas enfiadas numa capa dura. Só podia ter sacanagem no meio. Velho decrépito.<br />
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É difícil de acreditar que vocês não podem ouvir nem cheirar o velho. O som é tão alto e o odor, tão insuportável, que eu fico pensando ser possível que eles cheguem a outro tempo e outro espaço. Vocês não sabem tudo o que eu preciso agüentar. Já contei a vez na qual ele surtou durante um noticiário na televisão? A mocinha – aquela bonita dos cabelos curtos, sabem? – falava as neves do Kilimanjaro estão derretendo. Especialistas prevêem seu desaparecimento para os próximos 30 anos e as lágrimas do velho decrépito começaram a molhar a mesa onde ele estava apoiado. Eu, tola – não, tola, não, de boa-fé –, fiquei orgulhosa da preocupação do meu homem com a causa ecológica. Deveria ter desconfiado. Entre suspiros e fungadas, consegui entender o decrépito dizendo ele me fez acreditar que ao menos as neves do Kilimanjaro eram eternas. Então era isso, o velho, além de decrépito, burro, foi enganado por um escritor doido, pois bobagem assim só poderia ter sido escrita por um dos decrépitos profissionais. Era só o que me faltava. Velho decrépito, burro e bobão. <br />
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Comentei sobre como eu era muito mais feliz na casa dos meus pais? Minha memória às vezes falha. Se estou me repetindo, fiquem bem sentados aí lendo de novo esse episódio vivido por mim, pois uma narração assim pode servir de alerta para muitas jovenzinhas que se julgam extremamente espertas. Sim, eu vivia sem preocupações quando solteira. Conheci o velho decrépito, que na época me pareceu tão culto, e casei. Casar com homem culto não serve para nada. Ouçam, ou melhor, leiam o que eu digo. São muito bons na teoria, já na prática...<br />
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Vocês juram não poder ouvir os roncos dele? Juram? Se bem... Eu também não estou escutando barulho nenhum. Estranho. Ia começar a reclamar apenas para manter o hábito, o que é sempre bom. Porém, a verdade é que tudo está silencioso. Meus leitores vão me perdoar, mas precisarei acabar por aqui, me angustia não saber se o decrépito está vivo ou morto. Já havia inclusive pensado em uma frase de impacto digna daqueles hippies lunáticos com obras publicadas. Vocês se impressionariam. Agora o velho me atrapalhou e eu não poderei deslumbrá-los como queria. Afinal, ele é um velho decrépito, mas é meu. O meu velho decrépito. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com7tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-10795121685025480922010-05-30T09:23:00.000-07:002010-05-30T09:23:51.362-07:00Recital dos mortos, de Nelson RegoTudo estava ruim, mas ficou pior depois que a televisão veio aqui e filmou seu Seis revirando os olhos e recitando sem parar os nomes dos mortos. No início, seu Seis fora apenas o mais doido entre os malucos já contratados por meu pai. Alguns são malucos. Outros, safados fingindo serem médiuns. Eu sei quando eles estão fingindo, eu sinto. E sei quando são doidos e acreditam de verdade.<br />
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Seu Seis nunca quis cobrar. Dizia que não se cobra por um dom dado por Deus, não tem preço. Queria jorrar como uma fonte de água pura para todos, era o que dizia. Meu pai convenceu ele a cobrar pelas consultas, em nome de manter a casa. Seu Seis concordou. Cobrava o valor da comissão paga a meu pai e mais um pouco, que era para custear alimentação, luz, essas coisas, já que decidiu ficar morando no quarto anexo ao consultório.<br />
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Meu pai tem faro para negócios. Percebeu logo que seu Seis iria render muito. O outro médium, que trabalhava há meses no consultório, continuou atendendo, alternando-se com seu Seis. Por pouco tempo. Era um fingido, mas tinha alguma intuição e compreendeu que o melhor era ir para longe de seu Seis. Meu pai só tem olhos para dinheiro e não viu que, depois de dinheiro, seu Seis traria desgraça.<br />
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Tive medo de seu Seis desde que botei os olhos nele pela primeira vez. Inchado como um cadáver, pensei isso. Nunca vi um cadáver dias depois da morte. Sei que é assim porque se fala muito na morte aqui em casa. Meu pai conta piadas e histórias de assombração, debocha. Achei seu Seis estufado como um cadáver apodrecido.<br />
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Com o tempo, achei que se tornava a cada dia um pouco maior. Sonhei uma vez que ele inchara até ocupar o tamanho inteiro da sala.<br />
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Quando eu era pequena, os médiuns atendiam dentro de nossa casa. Ao perceber que o negócio iria prosperar, meu pai construiu o consultório nos fundos, no pátio. Seu Seis foi o primeiro que preferiu morar no quarto anexo. Movimento de pessoas querendo consultar sempre existiu. Mas só com seu Seis é que se formaram filas.<br />
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As pessoas vinham de outros bairros e até de outras cidades. Depois da televisão, passaram a vir de todo o país. Antes, seu Seis dava consultas como qualquer outro médium, só que de um jeito mais impressionante. Revirar os olhos, ele sempre revirou. E os guinchos que solta, antes de falar com aquela voz que vem do fundo de uma caverna, também são os mesmos. O que mudou foi a mensagem.<br />
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Seu Seis dava notícias dos mortos. As pessoas ficavam sabendo sobre os planos astrais em que eles recebiam lições, preparando-se para novas jornadas no mundo. Os mortos enviavam conselhos e súplicas, pediam que os vivos acendessem velas para afastar os demônios. As pessoas gostam de levar susto. Quanto mais gente saía de olhos arregalados e dando risadinhas nervosas do consultório, mais gente queria entrar na sala escura. Meu pai fazia fortuna.<br />
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Foi então que a coisa começou. Seu Seis desandou a recitar listas de nomes e sobrenomes que ninguém sabia de quem eram. Mal-estar mesmo era causado pelo que ele dizia misturado com as listas. “A bala entrou pelo ouvido esquerdo, os miolos ficaram esparramados pelo chão”. As pessoas trocavam olhares. “A lataria degolou o velho, que nem assim morreu na hora, ficou ali, estrebuchando.” Ninguém entendia nada. “Quatorze anos, quatorze anos, não tinha mais do que quatorze anos.” Misturava essas frases sem nexo com as listas de nomes, repetia sem parar frases e listas. Só se acalmava ao nascer do sol, quando adormecia, recomeçando pelo meio da manhã.<br />
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Nessas horas todas falando, bebia apenas uns goles d’água e comia menos ainda, sem sair do transe. Nem por isso deixei de achar que ele continuava aumentando.<br />
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As consultas pararam. Ainda vinham pessoas escutar, muitas até, mas ninguém pagava para ouvir listas intermináveis de nomes desconhecidos.<br />
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De início, meu pai pensou que a coisa seria passageira e que, após, a fama de seu Seis iria aumentar mais ainda. Pensou que deixar as pessoas assistirem o transe enlouquecido incendiaria o falatório, seria boa propaganda para o estabelecimento. <br />
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Depois viu que não tinha jeito, seu Seis não voltaria às consultas rentáveis. Decidiu chamar o pessoal do hospício, para que tratassem de remover o médium, já que ninguém conhecia parente ou amigo de seu Seis que pudesse se encarregar disso. <br />
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O azar foi que, no instante em que meu pai colocou a mão no fone para chamar o hospício, uma mulher gritou lá no consultório. Seu Seis dissera nome e sobrenome do sobrinho dela, Rogério Leandro de Oliveira, dissera e repetira, não havia como confundir. E completara com a informação – “baço perfurado”.<br />
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A mulher estava histérica e o grupo que a acompanhava, agitado. Seu sobrinho morrera semanas antes num acidente de carro. Ele e outros três, bêbados, haviam se chocado contra a traseira de um caminhão. O ferimento fatal fora perfuração no baço.<br />
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“Anota os outros nomes, anota os nomes”, alguém gritava, no meio da confusão de todos falando, da mulher chorando, do seu Seis recitando sem parar. Meu pai, mudo e pálido.<br />
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O pior foi em meia hora confirmado. Consultados os parentes das vítimas, três outros nomes correspondiam aos mortos no acidente.<br />
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Nas primeiras horas da manhã seguinte, já se formara uma pequena multidão na calçada em frente à casa. Meu pai não queria permitir que fossem escutar seu Seis, mas invadiram o pátio, espremeram-se no consultório, disseram que seu Seis pertencia a todos. Meu pai ameaçou chamar a polícia, mas não chamou.<br />
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Ficaram ouvindo seu Seis. Haviam chamado parentes e amigos de pessoas mortas de maneira violenta. Anotaram as frases malucas e os nomes que seu Seis enfileirava.<br />
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Passou o tempo. E nada.<br />
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Meu pai já estava esperançoso de que fossem embora frustrados. Mas aí aconteceu. Foi como gol marcado em estádio lotado. A vibração começou no consultório, prosseguiu pelo pátio e se alargou pela rua. O ajuntamento era um caldo grosso que a corrente de exclamações atravessava rápida. Andreia Soares, esse o nome reconhecido. Duas amigas dela estavam presentes. Quando seu Seis acrescentou “a facada atingiu o coração” e as duas confirmaram, foi nova gritaria. Até o anoitecer seu Seis marcou uma dezena de pontos, entre centenas de nomes recitados.<br />
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Eram também de mortos os nomes não identificados? Para verificar isso, espalharam por todos os modos possíveis os nomes anotados e chamaram mais parentes e amigos de mortos a escutarem o recital. Em dois dias seu Seis alcançou uma centena de pontos. Multidão agigantada tomava a rua, invadia nosso pátio. <br />
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A partir daí os acontecimentos são conhecidos por todos. Veio a televisão e depois outras emissoras, e mais rádios e jornais. Seu Seis, meu pai e até eu viramos celebridades. A rua prosseguiu lotada.<br />
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Os jornalistas investigaram o passado de seu Seis a partir das informações que ele dera a meu pai. Seu verdadeiro nome seria José Santos. Teria quarenta e poucos anos. Haveria sido casado e comerciante no interior paulista. Há dez anos abraçara a missão a ele confiada por Deus, passando a percorrer o país em nome do Criador.<br />
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Nada foi confirmado, seu Seis, que não tinha documentos de identidade, viera do nada.<br />
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E tiveram todos que se contentar com a explicação que dera a meu pai sobre seu novo e sagrado nome, Seis: explicação nenhuma. Um segredo entre Deus e ele, segundo o próprio.<br />
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Investigaram também a vida de meu pai. Quiseram saber se ele possuía outra renda além das comissões sobre as consultas. Meu pai lhes informou que era aposentado por invalidez. Por que invalidez, se era ainda moço e aparentava boa saúde? Perguntou-lhe um repórter com jeito desconfiado. Meu pai falou dos pulmões, puxou uma tossezinha para demonstrar e desconversou.<br />
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Algum vizinho soprou um boato e os repórteres foram averiguar na delegacia policial. Acho que subornaram funcionários para obter registros de denúncias contra meu pai, por estelionato. Coisas de sua mocidade. Nada fora provado, ele nunca estivera preso.<br />
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Mesmo assim, denúncias e a aposentadoria precoce, que colocaram sob suspeita, serviram para por lenha na fogueira das matérias que indagavam se a casa dos médiuns não explorava as crendices e as dores do povo.<br />
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Porém o povo já estava com a sua convicção formada. Para a multidão, seu Seis era mensageiro de Deus. Estava acima de meu pai, livre de contaminações.<br />
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Ninguém soube explicar como, mas em poucos dias estabelecera-se um culto, com organizadores, regras e crença. Quando seu Seis dizia o nome de uma vítima de acidente, assalto ou outras violências, se parente ou amigo do morto estivesse naquele momento presente, valia por uma poderosa vela acesa no plano astral. Auxiliava a vítima a liberar-se do trauma e evoluir em seu karma. O benefício estendia-se aos vivos que houvessem testemunhado o momento em que a boca santificada de seu Seis pronunciara o nome.<br />
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Daí porque a romaria que tomava a rua e invadia o pátio tornara-se constante. Mães desesperadas, órfãos, legiões de sofredores faziam fila rezando em voz baixa. Esperavam horas pelos instantes em que estariam no grupo com permissão para entrar no humilde santuário de seu Seis.<br />
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A maioria saía da sala sem a recompensa desejada. Mas, a cada dia, diversos eram os que saíam exultantes, abençoados pela audição do nome aguardado. Dádiva completa era quando o nome vinha acompanhado do bônus extra da frase com informações exatas. “Derrapou na pista e capotou até descer pelo barranco”, e uma viúva desatava em prantos. “O ônibus bateu de frente contra o caminhão, a menina estava dormindo, sim, estava dormindo, estava dormindo a menina, ainda está para acordar, vai acordar no céu” – os avós iam embora enlaçados, rostos suavizados pelas lágrimas misturadas com o sorriso. “Dois tiros à queima-roupa, agonizou um dia inteiro”, os pais se retiravam quase dispostos a perdoar o assassino.<br />
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Testemunhar que muitos eram abençoados incentivava os desafortunados a voltarem nos dias seguintes em busca da mesma dádiva. A crença afirmava que o consultório montado por um salafrário fora o lugar escolhido por Deus para abrigar a missão de seu Seis, num sinal dos misteriosos caminhos através dos quais se realiza a vontade divina. Na sala santa deveria permanecer seu Seis em transe, em respeito à vontade suprema.<br />
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Meu pai bem que tentou chorar miséria, fazer-se de inocente e pedir uma moeda por visitante, mas percebeu em seguida que corria o risco de levar uma surra.<br />
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Os organizadores do novo culto colocavam ordem nas filas, controlavam o tempo de permanência dos grupos dentro da sala, anotavam nomes e sobrenomes recitados, divulgavam as listas, chamavam o povo. Providenciavam as flores e os incensos. Registravam as preces de agradecimento enviadas pelos sofredores. Revezavam-se dia e noite na vigília em torno de seu Seis. Baniram qualquer pagamento na entrada do consultório, em nome de romper com o passado suspeito da casa. Apenas aceitavam donativos dos abençoados com a escuta dos nomes queridos. Essas coisas todos sabem. Viram na televisão, escutaram no rádio, leram no jornal. Sabem que na rua surgiu e cresceu um comércio ambulante de flores, velas, pedras mágicas, retratinhos de seu Seis e camisetas estampadas com a imagem dele, livros de preces, escapulários, churrasquinhos e lanches rápidos. <br />
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Sabem que sou bonita, pois me viram na TV, dando entrevista na frente do portão da casa, declarando que gostaria que aquilo tudo terminasse, e que nunca seu Seis pronunciara nome e sobrenome de minha mãe na lista dos mortos. Assistiram, na reportagem que fizeram no colégio, a estúpida da minha professora dizendo que às vezes chegam até a ficarem assustados com minha inteligência, mas que a lástima é que poucas vezes estou disposta a esforçar-me e tirar melhores notas.<br />
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E todos viram, ouviram, leram padres, pastores e líderes espíritas condenando o novo culto. Tomaram conhecimento de psiquiatras explicando que esquizofrênicos podem desenvolver uma memória psicótica, capaz de armazenar inacreditável quantidade de informações sobre o tema de sua obsessão. Acompanharam os jornalistas investigando os quatro mil nomes acertados por seu Seis e verificando que, quase todos, haviam tido suas mortes violentas noticiadas.<br />
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Conhecem a controvérsia que se seguiu. Seu Seis fora leitor das páginas policiais em suas horas de folga do ofício mediúnico, antes de afundar no transe ininterrupto. Desde quando poderia estar acumulando informações? Por que não pronunciava nomes de pessoas mortas após sua entrada no transe definitivo? Seus poderes, por acaso, teriam data de validade? E aqueles outros nomes não confirmados, que formavam uma legião muito maior, quem eram? Nomes inventados? Essas evidências e perguntas sem respostas não indicariam que a explicação dada pelos psiquiatras seria verdadeira?<br />
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Souberam do mesmo modo que suspeita alguma abalou o ardor dos novos crentes. Como seu Seis poderia lembrar de quatro mil nomes e sobrenomes e, de uma parte destes, saber informações precisas sobre as circunstâncias de suas mortes? Por que ter mais fé na possibilidade de uma fantástica memória do que no milagre da comunicação com os mortos? Quem explicaria a paz celestial que inundava os abençoados com a escuta dos nomes queridos? Viram, ouviram e leram organizadores do culto e parentes e amigos das vítimas dando testemunho de sua fé. <br />
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O que não sabem era o que acontecia comigo. Nem o que se passou entre mim e seu Seis enquanto tudo definhava.<br />
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A primeira vez foi no metrô. O trem estava atulhado de mortos. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação do tipo que eu pudesse controlar. E era nítida. Nítida demais. A primeira vez foi no metrô. Depois aconteceu na rua, no supermercado, no ônibus, na sala de aula. Fui no estádio e ele estava lotado, de mortos. Fiquei olhando aquela gente ensangüentada, empilhada nas arquibancadas e pensei: esses são os que morreram em acidentes de trânsito no ano passado. Subi no elevador espremida entre rapazes de cabeças furadas, os que foram desovados no lixão durante o carnaval. Desci do ônibus cheio de suicidas. Não queria voltar ao metrô, mas fazer o quê? Não podia deixar de andar pela cidade e ver a multidão de cadáveres descendo as escadas para dentro das bocas negras das estações. E os trens? Eu me apavorava. Mas era até divertido.<br />
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Por quanto tempo se prolongaria o novo culto? Eu fazia cálculos. Lembrava de ter lido que, desde décadas, morriam trinta mil, quarenta, cinqüenta mil em acidentes de trânsito todo ano. Isso somava um milhão ou dois, por aí. Os mortos em assaltos, em disputas do tráfico, em brigas de rua ou de bar, em brigas de família, os esfaqueados, os fuzilados e os espancados eram o dobro dos mortos em acidentes de trânsito. Só nos festejos do último Ano-Novo haviam se ralado não sei quantos. E tinha mais uns punhados de soterrados por desabamentos, de fuzilados por engano pela polícia, de mulheres mortas depois ou mesmo antes de serem estupradas, sei lá. Seu Seis iria dizer os nomes de todos esses milhões? Eu duvidava, a tal da memória psicótica não poderia ser assim tão poderosa, nem poderia ter lido todas as páginas policiais, nem todos os mortos eram noticiados. Mas qual o número que ele teria conseguido guardar? <br />
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Não deixava de ser engraçado voltar da escola e abrir passagem entre o grupo de defuntos que se apinhava no portão da casa, entrar e fazer meu lanche de final de tarde. Meu medo diminuía, até mesmo no trem. Em troca, crescia o tédio. Sempre ouvira falar em morrer de tédio, agora começava a entender que isso poderia ser mais do que um jeito de falar.<br />
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Quando alguém levaria seu Seis embora? Meu pai não ia no juiz pedir a remoção de seu Seis por medo de que os crentes, em represália, exigissem do poder púbico a revisão de sua aposentadoria. Eu não tinha para onde ir, casa que me recebesse. Na verdade, nem queria. Eu me consolava assistindo a desgraça de meu pai, sujeitando-se à situação por causa da aposentadoria mixuruca, temeroso não sei de quais outras represálias. Bem feito, pensava.<br />
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Sabia que seu Seis sairia do transe quando esgotasse o estoque de mortos identificáveis. E quando isso acontecesse, algo mais aconteceria, eu sabia, sentia. Mas o quê? E quando? <br />
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Adivinhava que continuaria enxergando mortos enquanto seu Seis morasse nas peças nos fundos da casa. Já não sentia medo. Nem no trem, espremida pela multidão sendo devorada pelos vermes. E deixara de achar engraçado. Tudo era hábito, não sentia nada. A única coisa que me interessava era saber quando seu Seis iria embora.<br />
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Um dia tive uma iluminação. Minha pergunta estava errada. Não era quando. Era o quê. O que seu Seis queria para ir embora? Mal pensei isso e um defunto se virou para mim. Não posso dizer que me olhasse, já que no lugar dos olhos tinha a fenda aberta por uma machadada. Movia os lábios devagar, falava baixinho. Não consegui entender o que dizia, mas tive uma intuição.<br />
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Naquela noite, como em todas, fui ao consultório. Depois que o expediente das visitas terminava, permaneciam com seu Seis apenas dois ou três dos organizadores. Revezavam-se na vigília de proteção ao santo, anotavam os nomes e frases que ele continuaria pronunciando até o nascer do sol. Eu levava bifes e arroz, sanduíches e café para eles. Essa era a forma que meu pai encontrara de ainda ganhar uns trocados com seu Seis. Negociara com os organizadores que eu providenciaria todas as noites as refeições e eles pagariam uma taxa pelo serviço.<br />
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Às vezes eu permanecia na sala, observando seu Seis, enojada. Ele suava sempre, pegajoso, melento. Sentia cheiro de carne podre desprendendo-se do homem enorme.<br />
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Sabia que seu Seis parara de alimentar-se apenas nos primeiros dias do transe profundo. Depois, durante a noite, em segredo, os vigilantes o alimentavam com parte das refeições que eu preparava com fartura, obedecendo à exigência deles. Ninguém me contara isso. Eu sabia. Para o público eles mantinham a imagem milagrosa de que seu Seis apenas ingeria goles d’água e quase nada de comida. Eu imaginava seu Seis cagando durante a madrugada e aqueles cretinos limpando o asqueroso em transe. Desejava que o consultório, o quarto, o banheiro pegassem fogo.<br />
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Era comum os vigilantes abandonarem a tarefa de anotar os nomes. Seu Seis repetia várias vezes as listas antes de iniciar novas. Os vigilantes cansavam. Retiravam-se para um canto, conversavam em voz baixa.<br />
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Naquela noite permaneci mais tempo na sala. Sentada no chão diante de seu Seis esparramado sobre a poltrona, revirando os olhos, recitando as listas. <br />
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Seu Seis passou a pronunciar mais devagar os nomes, fazia breves intervalos. Os vigilantes prosseguiram em sua conversa em voz baixa, no canto da sala.<br />
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Então eu vi. Seu Seis fixou seus olhos nos meus e moveu devagar os lábios. Não emitiu som, mas entendi o movimento. Ele pronunciara o nome de minha mãe. Retornou de imediato ao recital, no momento em que os vigilantes interromperam a conversa e voltaram seus rostos para nós, alertados pelo intervalo de silêncio mais prolongado.<br />
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Saí da sala sem sentir paz celestial alguma por ter lido nos lábios repulsivos o nome de minha mãe, não me senti como os outros, que se consideravam abençoados pela audição de um nome aguardado.<br />
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Para mim acontecera de modo diverso. E diferente deveria ser o significado do acontecido, pensei. Tive outra intuição. Passei a ler todos os dias as páginas policiais. No sexto dia aconteceu: a reportagem sobre uma mulher de nome e sobrenome iguais aos de minha mãe, assassinada de modo idêntico. Seu marido estava assistindo futebol na TV, à noite. Esvaziara todas as garrafas e queria mais. Não iria deixar de assistir o jogo para buscar as cervejas no bar, quadras adiante. Mandou a mulher, que sumiu no trajeto da rua escura. Encontraram seu corpo na manhã seguinte, num terreno baldio, degolada, de bermudas arriadas. A polícia confirmara que havia esperma em seu ânus. Do mesmo exato modo como meu pai mandara minha mãe para a morte, seis anos antes.<br />
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Seu Seis não me dissera um nome do passado. Dissera o futuro. Pensei isso um minuto antes de escutar uma mudança no vozerio habitual que vinha da rua. Deixei o jornal sobre a mesa da cozinha. Lavei a louça do meio-dia antes de sair à rua. Não sentia pressa. Era reconfortante ouvir aquela mudança para um tom aflito nas conversas da multidão de peregrinos. Eu adivinhava qual seria a novidade.<br />
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Fui até os fundos. Minha entrada no consultório era sempre permitida pelos organizadores. Seu Seis interrompera o recital. Permanecia balançando devagar a cabeça, mirava o teto. Tinha uma mistura de riso silencioso e careta medonha na cara. Alguns peregrinos observavam a cena. Talvez agora enxergassem a verdade, eu pensava, olhando para seus rostos pasmos.<br />
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O recital de seu Seis nunca fora em solidariedade aos mortos. Ele sentia necessidade de estar rodeado de tanta dor. Sentia prazer. Eu sabia.<br />
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Prolongara com nomes falsos a expectativa pela audição dos nomes aguardados. Nenhuma vela fora acesa em outros planos pela salvação dos mortos, quando um nome fora recitado.<br />
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Seu Seis é doido de atar. Mas não é apenas doido. Ele se comunica de verdade com alguma coisa. Demorei a entender isso. Foi só naquele momento, depois de ler que uma mulher de nome igual ao de minha mãe fora assassinada do mesmo modo, olhando para o riso medonho do monstro, que eu soube.<br />
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Eu olhava para os rostos dos tolos, tentando adivinhar se eles enfim enxergariam a verdade. Mas, não. Eles estavam assustados. Perdidos. A verdade, eles não queriam encontrar.<br />
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O que aconteceu depois todos assistiram na TV, ouviram no rádio, leram nos jornais. Sabem que o culto definhou, que agora poucas pessoas permanecem em frente à casa, esperançosas ainda de que seu Seis volte a recitar os mortos.<br />
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Acabou o noticiário, e todos lembram dessa história, pois foi há menos de um mês que iniciou o declínio do culto.<br />
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O que nunca souberam é o que acontecia comigo. Eu retalhava porções de carne a cada noite, preparando os bifes que levava com arroz, sanduíches e cafés para os vigilantes, que alimentavam o santo em jejum. Minha mão tornava-se mais destra a cada noite, forte, ágil, incisiva no corte. A faca longa e afiada passara a ser um prolongamento de meus dedos. Eu me perguntava se o novo transe de seu Seis, sorrindo para o teto, seria profundo a ponto de impedi-lo de defender-se de um golpe. <br />
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Seguia minha rotina. Continuava enxergando os mortos, amarrada ao tédio com cordões e laços fortes. Sei que era imaginação minha. Mas não era imaginação que eu pudesse controlar. Assistia o espetáculo. A diferença era que, agora, os mortos pareciam ter medo de mim. Não viravam em minha direção seus rostos. Mantinham distância respeitosa. Retiravam-se aos poucos do local em que eu estivesse. Até o metrô tornava-se rarefeito. Sei que era imaginação minha. Mas, nítida demais.<br />
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Eu levava as refeições todas as noites até os fundos. Os vigilantes não tinham mais o mesmo ânimo. Até dormir, dormiam. Ouvira eles comentando que esperariam mais uma semana ou duas. Se o santo não voltasse a recitar milagres, seria removido para o asilo.<br />
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Meu pai se lamentava pela perspectiva de perder a venda das refeições. Repetia para mim, como se esperasse que eu inventasse uma solução, que a credibilidade fora perdida, não seria possível reativar a casa com outros médiuns. Meu consolo era assistir seu tormento. <br />
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Prosseguia em minha rotina. Esperava por algo, sem saber o quê. Ficava observando seu Seis, uma noite após outra. Os imbecis dos vigilantes permaneciam conversando no fundo da sala. Dormiam. Eu me perguntava se, durante esse tempo todo, nenhum deles percebera que seu Seis continuara a crescer. Cada vez mais alto, mais inchado.<br />
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Todas as noites levava as refeições e permanecia um tempo diante do monstro. Ouvira os vigilantes comentando que não existiam motivos para adiar a remoção do seu Seis. Só que eu já não desejava isso. Não enquanto tudo não estivesse, de verdade, terminado.<br />
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Eu sabia, sentia, que deveria escrever sobre os acontecimentos. Escrevi isso tudo na noite retrasada, sem parar.<br />
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Ontem à noite o demônio falou em voz baixa comigo. Os vigilantes estavam distraídos no canto da sala, jogando baralho. Eu permanecia em pé diante de seu Seis, observando seu inchaço. Imaginava se ele não explodiria como um balão se fosse furado. Estava com os olhos fixos em seu estômago, saltado sob a camisa, quando senti um formigamento na testa. Antes mesmo de levantar a cabeça, adivinhara: o olhar de seu Seis estava cravado ali. Sei que não era apenas reflexo do único abajur aceso no canto da sala, havia mesmo um brilho próprio saindo de seu olhar, um brilho de coisa ruim. Seus olhos pareciam duas cabeças de cobras encarando-me desde cima. Seu olhar foi baixando. O monstro estava me admirando. Seu olhar deliciou-se com meu umbigo, deixado à mostra por minha calça de cintura baixa. Sua língua asquerosa fez movimentos para fora da boca como se lambesse, enquanto fixava meus pés descalços. Chupou meus dedinhos à distância, um por um. Ele demorou o olhar em meus peitos, salientes sob o tecido da camiseta branca. Então começou a mover os lábios em silêncio. Não consegui ler o que diziam. Aproximei-me para entender, mesmo sabendo que aconteceria o que aconteceu. A mão suada de carne podre acariciou meu braço, enquanto eu lia e relia nos lábios do pestilento o nome do meu pai. <br />
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Os dois vigilantes abobados nada viram. Mal responderam ao boa-noite que desejei ao me retirar. Nem perceberam que, na porta, ainda me virei para seu Seis e mandei para ele um beijo prolongado.<br />
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Não duvido mais de seus poderes. Sei que ele pode chamar forças obscuras para produzir acontecimentos. E entendi a troca que ele me propôs. Sei que ele pode prever o futuro. Mas não todo o futuro. Ele também se deixa cegar.<br />
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Passei a noite em claro. Em alguns momentos pensei em recuar, porém me foi nítido que, quando fraquejava, o tédio, ou a raiva, ou o medo, sei lá, tornava-se tão grande e pavoroso que não sei se era uma enchente que vinha do fundo de mim para me afogar ou se era um mar de ondas gigantes vindo de fora, do mundo.<br />
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Passei outra noite em claro. Mas estou sem sono. Escrevo essas últimas linhas agora pela manhã. Meu pai tomou cerveja em vez de café. Saiu sem me dizer palavra. Notei que o bolso de sua calça estava estufado por um bolo de dinheiro e que a ponta de uma nota de cinqüenta estava à mostra. Ele já não sabe mais o que faz. Sempre se achou esperto, sequer percebe o quanto está débil. Foi jogar sinuca no boteco, fazer apostas. Em sua ilusão, pensa que vai voltar para casa com mais dinheiro do que saiu. Não vai voltar para casa. Vai ser assaltado. Vai reagir. Vai ser morto. Foi a última vez que o vi. Eu sei.<br />
<br />
Voltei da rua faz meia hora. Só vi as pessoas de sempre, as que vivem suas vidinhas. Os mortos desapareceram. Em instantes meu pai vai se juntar a eles. Minha mente está expandida. Compreendo tudo como nunca havia compreendido. Estou sem medo, sem sono. Estou desperta como jamais estive. <br />
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Os dois vigilantes abobados bateram na porta da cozinha. Vieram me dizer que vão sair mais cedo. Os dois outros não demoram a chegar. Não preciso me preocupar com seu Seis, ele está dormindo um sono pesado, tão cedo não acorda.<br />
<br />
Na verdade, os outros dois vigilantes vão demorar. Eu sei. Depois de todos esses meses, estaremos só eu e seu Seis na casa. Eu, aqui na cozinha. Ainda agora, retalhava a carne. Ele, lá nos fundos. Dormindo, acreditaram os dois abobados. Só eu e ele. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-21788630521201770542010-05-19T10:53:00.000-07:002010-05-19T10:53:54.529-07:00A devota, de Caetano SordiNaqueles dias, em que o mundo conhecido parecia ter sido colocado de cabeça para baixo, apenas uma consternação habitava os pensamentos de Fermín Arantza: conduzir a mãe, pela última vez, à Igreja de Santiago Apóstolo, em Amorebieta, para se confessar. Os dias que restavam para Suri Arantza na companhia dos vivos eram poucos. Os sinais disso eram tão evidentes quanto o rastro dos aviões alemães no céu: de uns tempos para cá, a velha mãe não aquietava a língua um só segundo, destilando, do nascer ao pôr do sol, as cantilenas religiosas, en el “idioma”, que todos, num raio de duzentos quilômetros, saberiam acompanhar. <br />
<br />
O problema que se interpunha na mente de Fermín era de ordem prática: o padre confessor havia sido transferido dois anos antes para Amorebieta. Padre Xoaquín, um dos poucos galegos conhecidos que aprenderam o idioma, era, na cabeça de sua mãe, autoridade inviolável em termos de confissão. Suri Arantza jamais se subordinaria aos conselhos de um padre mais jovem. Ainda mais se ele se recusasse a falar euskera e tivesse “aqueles olhos andaluzes” como tinha o então abade da capela local. Era de suma importância, portanto, que o bloqueio dos nacionalistas fosse atravessado para que sua mãe pudesse habitar a eternidade ao lado direito do Senhor.<br />
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Desde o dia em que eclodira a guerra, foram poucos os gentios do povoado que tinham visto jorrar sangue ou explosões de pólvora à sua frente. Protegido, à leste e ao sul, por umas colinas baixas; e a norte e à oeste pela coroa dentada do Cantábrico, o vilarejo, até então, havia sentido somente os efeitos secundários do fratricídio peninsular. Os racionamentos de comida e mantimentos já duravam um ano. Os aldeões já tinham se resignado a comer estritamente aquilo o que produziam, tratando produtos enlatados, bem como industrializados de toda sorte, sob o registro de bem-vindas exceções domingueiras. A situação piorara, entretanto, desde que os nacionalistas haviam bloqueado a Estrada Grande, na altura de Amorebieta, por volta do entardecer da quinta-feira de Pentecostes.<br />
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Levá-la seria de grande facilidade e simplicidade se a devota não estivesse acometida do furor cantinolento que a fazia repetir, uma atrás da outra, todas as cantigas de Igreja conhecidas em Euskadi, sem que nada, absolutamente nada fizesse-lhe parar. Pelas ordens do generalíssimo, todas as línguas peninsulares que não o castelhano estavam expressamente proibidas em território nacionalista. Mesmo que cruzasse o cerco conduzindo a mãe com sua demente cantoria, o simples fato de andar por Amorebieta ao seu lado poderia produzir graves problemas para ambos; e de problemas, Fermín Arantza já possuía a complicada vida da etxalde. Se todos os problemas do mundo fossem como aqueles da vida pastoril, por exemplo, recolher uma ovelha morta do leito de um rio, a existência seria significativamente menos complicada. Assim pensava Fermín Arantza toda vez que a polícia implicava com algum conhecido seu por chamar as coisas por seu nome de verdade.<br />
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Sim, na cabeça de Fermín Arantza, as coisas tinham nomes de verdade e nomes de mentira; os primeiros, evidentemente mais antigos e potentes que os segundos. Não havia motivo que o convencesse para chamar Donostia de San Sebastián, euskera de basco ou mesmo “vascuense” (palavra horrível ouvida de um sujeito local conhecido como “o gramático”), bem como a sagrada etxalde de “fazenda” e substituir o corriqueiro e fluido Egun On por um frio e cortadiço “Buenos dias”. Explicar-se em castelhano, assim como explicar o problema da sua mãe em castelhano para a soldadesca armada, era uma situação do mundo dos possíveis que nada agradava Fermín Arantza, justamente por ter de substituir as palavras autênticas pelas palavras mentirosas. <br />
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A Fermín Arantza, que nunca fora muito afeito à atmosfera citadina, restringir seus horizontes à cerca da etxalde nunca havia se configurado como um problema. Até mesmo visitar o povoado, distante a poucas léguas do seu portão, consistia para ele uma tarefa aborrecida, destas que se faz somente por se fazer. Desde que o irmão mais novo Ignacio – ou Iñaki, no idioma – havia partido para um convento em San Sebastián, a responsabilidade pela velha casa e a velha mãe tinha recaído totalmente sobre si. Suri Arantza, aos oitenta e quatro anos de idade, já não enxergava com a mesma eficiência com que alguns anos antes conseguia identificar grãos de milho fugidios nos interstícios das lajotas do assoalho; da mesma forma, seus movimentos, outrora tesos e certeiros, tinham definhado até os simples atos humanos de falar e respirar. Caminhar ainda lhe era possível, uns poucos passos, assim como conduzir a colher de sopa até a boca. Todos os dias, a velha dirigia-se até a latrina sozinha e, pacienciosamente, respeitava o imperativo de suas necessidades corporais. O pouco de autonomia que ainda possuía frente ao filho era celebrada diariamente neste ritual sem mais significações. Praticamente fundido às necessidades da mãe e da lida na etxalde, Fermín Arantza não tinha tempo algum para mulheres, jogar pelota, distribuir insultos etílicos na taverna e todas as atividades mundanas que consumiam o tempo dos varões ilhados pela guerra civil. Bonito e forte, não eram poucas as moças que viam nele um casamento promissor; belos e robustos filhos como Fermín e toda a estirpe dos Arantza, cuja presença naquele úmido vale do Cantábrico remontava ao tempo dos romanos ou dos visigodos. Os Arantza, assim como seus vizinhos Iturbide e os irascíveis Oyarzábal da outra margem do riacho (com os quais os Arantza sempre possuíram disputas demarcatórias), eram o que de mais antigo – depois das pedras – poderia ser encontrado entre aqueles montes tristes.<br />
<br />
A velha passava os dias deitada numa cama antiga, que havia assistido ao parto de seus filhos, além de júbilos e infernos da vida conjugal. Da grande janela à sua frente, conseguia ter uma visão bastante ampla das terras da etxalde, embora não conseguisse mais distinguir dos vultos as suas formas essenciais. Fermín, após a lide no campo, passava longas horas velando a mãe, sentado em uma poltrona puída, como que antecipando um funeral. <br />
<br />
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. – ordenou Suri Arantza – o que está acontecendo lá embaixo, lá no rio? Olha com atenção.<br />
<br />
- É uma ovelha, mamãe. – respondeu Fermín – Há tempos que está afogada.<br />
<br />
Já se contavam três dias desde que a carcaça do animal havia sido trazida, pela correnteza, à margem do pequeno riacho lindeiro à etxalde dos Arantza. Nem Fermín nem os empregados da propriedade haviam tomado qualquer providência em relação àquilo. Pensaram, primeiramente, que os cachorros tratariam de fazer o trabalho sujo, deglutindo os restos da pobre ovelha como bendiria seu instinto ferino. Os ossos, posteriormente, poderiam ser guardados pelos homens para usufruto próprio. Em tempos de penúria como aqueles, a utilidade de todas coisas – até mesmo as mais absurdas e prescindíveis, em outras épocas – era ponderada com seriedade. “É quando o mundo parece se dilacerar”, pontificava Xabier Iturbide, velho amigo e vizinho dos Arantza, “que as coisas se revestem de mais dignidade”. <br />
<br />
Os dias iam se seguindo e o sol se punha cada vez mais triste atrás dos dentes do Cantábrico; o fim de tarde vinha sempre acompanhado do monstruoso rufar das hélices alemãs. Fermín Arantza mal e mal comia, importunado como estava não só pelo problema da missa e da subseqüente confissão, mas também pela intermitente ladainha que se ouvia desde o dormitório da sua mãe. Por alguns momentos esquecia daquilo e era como se a fraquejada voz de Suri Arantza ditasse o ritmo do mundo; de fato, aquelas cantigas eram declamadas na língua do nome verdadeiro de todas as coisas, e nada mais adequado ao mundo e à vida do que o nome que cada coisa tem. No entanto, toda vez que se afastava um pouco da velha casa e podia desfrutar de um silêncio mais profundo, era como se outra voz, ainda mais verdadeira, independente dos homens e das suas guerras civis, falasse ao seu ouvido. Longe da mãe, longe de tudo, apenas na companhia dos grilos e dos imprevisíveis sons do vale e do riacho, era como se ouvisse um idioma mais autêntico que o idioma autêntico: o som das palavras sem boca, diretamente coladas nas coisas que definem.<br />
<br />
Toda vez que retornava à casa e ao tecido sonoro produzido por Suri Arantza, Fermín sentia-se novamente jogado sobre a realidade. Aquela língua há pouco ouvida como que se dissipava novamente dentro do espectro das palavras corriqueiras, dentro do universo de nomes e verbos produzidos pelo idioma, a língua falada pela sua estirpe desde eras ancestrais. Volta e meia a mãe interrompia os cânticos e, mirando Fermín, fundo nos olhos, lhe perguntava:<br />
<br />
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que está acontecendo ali? Olha com atenção.<br />
<br />
Não era mais a carcaça da ovelha que atraía seu olhar cansado. Ela já havia sido retirada. A persiana da janela mais próxima é que se mexia freneticamente, por causa do vento, dando secos murros na parede. Como era noite de lua cheia, portanto bastante clara, uma tímida luz vinha de fora. Esta luminosidade parca, acoplada ao vai-e-vem da persiana, produzia sombras fantasmagóricas no dormitório da devota. <br />
<br />
- É o vento, mamãe. Tua janela está aberta. <br />
<br />
Desde que Suri Arantza havia perdido boa parte da visão, Fermín também fazia as vezes de olhos para sua mãe. Aos vultos que ela via aqui e acolá – sobretudo aqueles do lado de fora da janela – ele dava a digna e honesta interpretação. “Vejo agora através das tuas palavras, Fermín”, dizia ela, sempre agradecida, nos momentos de lucidez em que cessava a cantoria. Eles eram diários e repetiam a mesma forma, como se um demônio meridiano tivesse implantado uma loucura sã, ou uma demência matemática no juízo da pobre velha. <br />
<br />
Podia ser às cinco horas da tarde ou às sete horas da manhã. Variava. Fermín chegava ao quarto minutos antes e, silenciosamente, acomodava-se na poltrona de feltro, colocada ao lado do leito de sua mãe. A ladainha religiosa arrefecia lentamente e, de repente, após alguns segundos de calado suspense, ela dizia: <br />
<br />
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. Diz-me o que lá se vê. Diz-me com atenção.<br />
<br />
Para a mulher do vizinho Iturbide, o ritual diário não passava de mais uma manifestação do sagrado coração de Cristo, indício de que Suri Arantza necessitava o quanto antes se confessar para sua redenção. Tais coisas oprimiam o coração de Fermín como um cruel torniquete. Antes que achasse uma solução viável para o problema, temia enlouquecer de vez. O vento que sopra do Mar Cantábrico em direção à península, assim que bate nas encostas de Navarra, retorna sobre Euskadi com a úmida força de uma resignação abatida. Em todas as direções que olhava, Fermín Arantza via indícios de seu mundo acabando. A ovelha que encontrara em seu riacho, tomara ciência posteriormente, havia sido abatida por fogo humano, impiedoso. Da guerra das pessoas, também os bichos estavam padecendo. A guerra chegara naquele ponto do mundo que quase ninguém havia conseguido transpor. A língua de Fermín e das ladainhas da sua mãe só havia resistido por força destas contingências, meio naturais, meio humanas, que preservam resquícios da fundação do mundo aqui e acolá. Assim que terminasse a guerra, temia Fermín, também terminaria a sorte de sua gente. <br />
<br />
A ininterrupta corrente das efemérides era cada vez mais permeada pela angústia de Fermín e ritmados pela cantilena a São Tiago Apóstolo, às Virgens de Covadonga e Begoña, Santo Antônio e São Sebastião. Os Iturbide, comovidos com a situação do rapaz, trataram então de emprestar-lhe um bem valioso, para que pudesse ouvir, de quando em quando, outras melodias que não aquelas da sua mãe. O enorme rádio de botões circulares foi posicionado ao lado da cama de Suri Arantza, para que também ela pudesse variar um pouco a monotonia dos pensamentos. Naquela altura dos acontecimentos, qualquer mudança de tom representaria um temporário alívio.<br />
<br />
Pois que os resultados de tal empresa não foram os melhores, tendo em vista os planos ainda vivos na cabeça de Fermín de cruzar o cerco dos soldados e chegar ao Padre Xabier a tempo de operar a salvação da alma materna. Após um estafante dia de trabalho na plantação contígua à casa da etxalde, Fermín Arantza levou à mãe, como de costume, uma pequena ração de leite, biscoitos e café. Ao entrar no quarto, deparou-se não com as costumeiras cantorias religiosas, mas algo muito pior; muito mais difícil de ser aceito e passar imperceptível pelos aquilinos ouvidos da soldadesca. Com força surpreendente para uma velha entrevada, Suri Arantza, um tom acima da sua voz normal, cantarolava as malditas palavras:<br />
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<em>Eusko gudariak gara</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Euskadi askatzego</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Gerturi daukagu odola</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Bere aldez emateko...</em><br />
<br />
Fermín Arantza conhecia muito bem aquela melodia. Quando a sua mãe ainda freqüentava o baile dos humanos sãos, ele volta e meia se dirigia, após as lides na propriedade, para a única cantina do povoado, tendo como objetivo consumir uns tragos. De quando em quando, gente de Bilbao aparecia propalando, numa ridícula versão pomposa do idioma, idéias tão absurdas quanto imaginar um morto insepulto feliz. Era um fato, conhecido e acreditado, que Fermín Arantza nunca gostara muito de gastar sua língua com castelhano e com a gente que o falava naturalmente. Todavia, reconhecia como sacrossanta a união das foralidades de sua gente e Reis Católicos. Questionar tais coisas parecia, para sua mente aldeã, tão sacrílegas quanto jogar aos porcos o sangue eucarístico. Uma das grandes irritações suas com o mundo daqueles dias era justamente o fato dele parecer estar se dilacerando através da suspensão destes liames sagrados; a fidelidade a certos princípios estava impressa em sua alma. “Quando ovelhas mortas aparecem boiando em riachos e pobres velhas são impedidas de se confessar, é porque tudo, absolutamente tudo está perdendo lentamente o seu sentido” – assim dissera Fermín Arantza para o amigo Iturbide, um pouco antes de regressar à casa depois de se aconselhar sobre a novidade da mãe.<br />
<br />
O fato preocupante não era agora o idioma em si: era o conteúdo das novas ladainhas da sua mãe. Fermín conseguia imaginar com perfeição a sua carroça avançando pela estrada, sua mãe escondida como podia, nada conseguindo abafar a cantilena que vem da sua boca. O primeiro soldado os aborda. Do fundo da carroça se escuta:<br />
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<em>Eusko gudariak gara</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Euskadi askatzeko...</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Nós somos os soldados bascos</em><br />
<em><br />
</em><br />
<em>Que a Euskadi libertaremos...</em><br />
<br />
Os soldados entendem rudimentos do idioma. Em todo caso, mesmo não o entendendo, saberiam identificar a melodia republicana. Maldito dia em que os Iturbide haviam lhe emprestado aquele rádio. Melhor seria que os franquistas escutassem Done Jakue e “santo santo santo é o Senhor” do que aquelas palavras que ele mesmo não via razão de serem. A própria palavra gudariak não existia na sua língua normal, herdada dos avós e bisavós. Como bem lhe informaram alguns, tratava-se de mais um dos verbetes criados pela gente de Bilbao para falar de coisas que no mundo de antanho não existiam, mas que como a pólvora, a espingarda, a metralhadora de repetição e a bomba de fósforo, passaram a habitar o mundo das coisas conhecidas e demandavam nomes para si.<br />
<br />
Em meio a tudo isso, chegara o frio, e Suri Arantza fora acometida de uma violenta gripe que a colocou por algumas semanas mais próxima da morte do que da vida. Paradoxalmente, a doença acabou dando a Fermín Arantza uns dias de paz, uma vez que a cantoria - agora política - e não religiosa, havia trazido para a etxalde novamente o calar-se das coisas inertes. Temia, no entanto, que a mãe retornasse do silêncio proferindo outras verborragias, quem sabe insultos e palavrões. O medo acabou não se concretizando, mas assim que retornara ao pouco de lucidez que lhe restava, Suri Arantza apenas lhe perguntou:<br />
<br />
- Levanta-te menino, põe-te de pé. O que é esta claridade lá fora? <br />
<br />
- É a neve, mamãe. O inverno chegou. <br />
<br />
Fermín apreciava muito o brancor gelado que cobria os campos naquela época do ano, mas em tempos difíceis, nada pior do que a chegada do frio. O racionamento de víveres tinha se tornado ainda mais cruel. Os nacionalistas que bloqueavam a Estrada Grande haviam organizado, na semana anterior, uma campanha de recolhimento de todo tipo de tecido e peles, nas etxalde dos arredores, para o esforço de guerra. A propriedade dos Arantza não havia ficado de fora. Fermín e os empregados conseguiram esconder apenas uns casacos seus e umas mantas puídas de velhos tempos, de modo que patrão e empregados – os homens – faziam um rodízio semanal de agasalhos para organizar a penúria de modo mais ou menos decente. Na visita dos soldados, Fermín escondera a mãe no galinheiro, para que os castelhanos não ouvissem seus cantares revolucionários. Por vezes sentia toda aquela situação como ridícula, mas há muito as coisas perdiam sua seriedade e modo grave de ser.<br />
<br />
Assim que foram embora, percebera que um dos soldados deixara um enorme pala vermelho com as insíginias dos Reis Católicos sobre as almofadas do sofá. “Bem feito, filho da puta”, pensara de si para si em foro íntimo, e ajuntou a nova coberta ao leito da doente mãe. A gente do povoado tornara-se, naquele inverno, uma pequena população de inventores. A miséria fizera com que os objetos ainda não consumidos pelos esforço de guerra se tornassem polivalentes, servindo em todos os lares para muito mais funções do que aquelas em vista das quais vieram ao mundo. Esta situação derivou numa mudança de mentalidade por parte do vizinho Iturbide, que abandonara sua doutrina da dignidade ampliada dos objetos em tempos difíceis e adotara a máxima de que, por força da matança sem sentido, “os objetos haviam todos se prostituído”. <br />
<br />
Assim que a primavera deu os primeiros indícios da sua chegada, colorindo pouco a pouco o campo da etxalde com pequeninas flores branco-e-amarelas, Suri Arantza pareceu um pouco mais disposta e aventurou-se para além da cama em passos tímidos e contidos, debruçando-se sobre o parapeito da janela. Fazia tempo que não via o mundo desde aquela perspectiva. Embora conseguisse mirar o exterior desde a sua cama, daquele ponto de vista o mundo de fora ocupava todo espectro do visível, por pior que fossem suas capacidades de distinguir a realidade dos borrões que via aqui e ali. Fermín Arantza a observava desde a poltrona com uma pequena alegria estampada na alma; freqüente nos momentos em que a mãe cessava o torpor melódico e retornava ao mundo das conversações normais.<br />
<br />
- Levanta-te, menino, põe-te de pé. O que é isto que se move lá?<br />
<br />
Fermín levantou-se um tanto abruptamente. Da poltrona, via uma figura humana crescendo em direção à casa desde o exterior. Cambaleava. E parecia estender a mão. Da janela, pode enxergar melhor. Antes de correr para fora, respondera:<br />
<br />
- Mamãe, é um rapaz que chega à nossa casa. Parece exausto!<br />
<br />
- Dê ao moço água e pão. Casa com visita, casa com Deus.<br />
<br />
Fermín não parecia tão disposto a seguir à risca o ancestral preceito da sua mãe. Naqueles dias, uma visita também poderia significar o inferno de uma casa. Saiu para encontrá-lo, portanto, bastante receoso. Sempre tinha um revólver no coldre por precaução. Ao dar-se de cara com o visitante, percebeu que não se tratava nem de um galego, nem de um castelhano, cântabro ou basco; o surrado uniforme denunciava ser ele um membro das brigadas, inimigo dos nacionalistas e possivelmente estrangeiro. De fato, seus louros cabelos de visigodo e os profundos olhos azuis denunciavam qualquer coisa nórdica; para efeito de satisfação identitária, Fermín decidiu considerá-lo um alemão.<br />
<br />
- Que queres aqui? – perguntou em castelhano.<br />
<br />
- Água. Comida. – respondeu o visitante, possivelmente dando voz à metade do seu vocabulário em espanhol.<br />
<br />
- Me acompanhe. <br />
<br />
Fermín sentiu que o gesto para segui-lo havia sido mais eficiente que as palavras ditas.<br />
<br />
Conduziu-o até a cozinha. Lá, preparou café forte e deu-lhe duas fatias de pão branco; um punhado de manteiga, o pote de açúcar. “Presunto?”, “Agradecido”. “Geléia?”, “Deus lhe pague”. Para si, Fermín serviu-se de café com um bocado de leite. Percebeu que fazia três anos que não dividia a ampla mesa de madeira com alguém de fora da etxalde. <br />
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- Brigadas?<br />
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- Sim – assentiu o outro.<br />
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- Como você veio parar aqui? Não há um bloqueio dos nacionalistas logo aqui a frente?<br />
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- Amorebieta caiu. Divisão italiana matou tudo nacionalista, pá, pá, pá! – esclareceu o visitante, gesticulando, com forte sotaque germânico – Eu perdi meu Kommandant. Escondido na floresta... dois dias caminhando até casa de bom homem.<br />
<br />
Enquanto o estrangeiro comia, Fermín Arantza reparava nas cicatrizes que seu corpo de normando sustentava, talvez como troféus. O sujeito comia como se nunca tivesse visto um prato de sopa em toda a sua vida. Tristes tempos, em que um mísero pedaço de pão provoca as mesmas reações que uma barra de ouro.<br />
<br />
- O caminho agora está livre? Daqui até Amorebieta não há nacionalistas?<br />
<br />
- Não. Amorebieta caiu. Kaputt. Wir haben es geschafft.<br />
<br />
- Amigo – disse Arantza após respirar fundo – se você é grato pela minha solidariedade, gostaria de lhe pedir um favor. De gente honesta para gente honesta.<br />
<br />
- Por favor.<br />
<br />
- Escolte a mim e à minha mãe até a Igreja de São Tiago Apóstolo em Amorebieta. É questão de vida ou morte.<br />
<br />
O outro não estava em condições de recusar qualquer pedido. Ao final da tarde já estavam com tudo pronto para a viagem. O coração de Fermín Arantza, pela primeira vez em anos, desde o início daquele cerco sem sentido, via-se pleno de alguma esperança. Cumpriria com orgulho sua função de bom filho: encomendaria de modo justo e decente a boa-morte de sua mãe. Viajariam durante a noite, por ser mais seguro. Embora os franquistas tivessem sido vergonhosamente abatidos por uma força tarefa de voluntários alemães, franceses, argentinos e italianos, era bem possível que alguns deles ainda perambulassem pela mata, humilhados e ansiosos por tomar o sangue de qualquer coisa que viesse a cruzar o seu caminho. <br />
<br />
A carroça avançava lentamente pelo curso da Estrada Grande. Cada vez mais longe da etxalde, Fermín Arantza conseguia compreender melhor o estrago sobre o mundo que o fratricídio ibérico estava causando. Não havia árvore, não havia bicho, não havia casa arruinada ao longo do caminho que não gritasse: “salvem-me, pois também sou vítima desta barbárie”. Fermín pensou então em Cristo e o sagrado mistério do sacrifício. Se um homem morre pela humanidade inteira, por que em alguns casos a humanidade inteira parece morrer por força de uns poucos homens?<br />
<br />
Os raios de sol já surgiam desde os cumes cantábricos quando sua diligência adentrara às portas da cidade recém tomada. Amorebieta ainda cheirava à peste; o fedor de pólvora, misturado com sangue e madeira queimada impregnava suas vias nasais. O estrangeiro, feliz pela retribuição paga, deixou-se ser levado mais uns metros pela carroça da família Arantza. Simpatizara com aquela velha louca, porém bondosa, que cantara a viagem inteira o hino da Internacional. Antes de se alistar em seu país natal, havia ouvido que não há lugar na península mais pitoresco e verdadeiro que aquelas terras do norte, espremidas entre o mar e a montanha, entre Deus e o Diabo, entre a Espada e a Cruz. Tal raça não parecia habitar a face da terra. Não, pelo menos, no mesmo registro que os demais povos ao redor. A viagem de escolta ao lado dos Arantza havia apenas confirmado esta impressão.<br />
<br />
Das poucas ruas de Amorebieta não tomadas pela ocre lama da destruição, a praça central pareceu a Fermín Arantza a mais apropriada para estacionar a carroça e fazer descer, com segurança, sua pobre mãe. Dali até a igreja do Apóstolo eram uns poucos passos. Nada que as pernas de Suri Arantza, num sacrifício final, não estivessem aptas a fazer. Apesar do lento apagamento do mundo, o céu estava, naquele dia, assustadoramente azul. Traços brancos da aeronáutica alemã cruzavam sua imensidão lembrando aos mortais que o terror ainda persistia. Pelo menos para Suri Arantza, as coisas pareciam se encaminhar para um desfecho mais feliz.<br />
<br />
Subitamente, mãe e filho escutaram zumbidos de todos os lados. Vozes, muitas vozes, gritavam ordens em duas, três, quatro, infinitas línguas, de infinitas partes do mundo; de todas as partes da Terra, ao menos, que haviam enviado um pouco da sua gente para ter suas vísceras expostas naquela guerra de horrores. “Viva a República!”, ouvia-se à esquerda; “Es lebt die spanischen Republik!”, assoprava o vento à direita; “Por Franco, por España!”, de todos os lados; até mesmo um familiar “Gora Euskal Herria! Gora Euskal Herria askatuta!” conseguiram captar. Os zumbidos das balas eram cada vez mais próximos. Sem poder apressar o passo, Fermín Arantza tentou cobrir a mãe como pôde, puxando-a de um lado para o outro, de porta em porta, janela em janela, procurando defender a ambos da rajada de chuva prateada que os atinge e desperta: ou bem enfrentam o trovejar da guerra, ou bem Suri Arantza morre sem se confessar.<br />
<br />
De pronto, avistaram a Igreja de São Tiago Apóstolo cercada de anarquistas. Também ela havia sido tocada pelas balas. Do alto de um buraco na parede, outrora ocupado por um vitral, um soldado atirava na estátua de Cristo Rei. Rapidamente ele os avista, mãe e filho, Fermín coberto por um pala vermelho com a efígie dos Reis Católicos. Cumpridor de ordens, o soldado não titubeia. “Franquista!”, grita, e Suri Arantza suspende a respiração. Seus olhos não conseguem identificar nada mais que movimentos incertos, apenas a imagem de Fermín, jogado ao chão, destaca-se, visível, na tessitura do seu olhar. <br />
<br />
- Levanta-te, menino. Põe-te de pé. O que está acontecendo aí frente? Que vozes são estas e que línguas são estas que eu não compreendo?<br />
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- É o mundo, mamãe. São as palavras novas, mamãe. Nem elas, nem o mundo, nos pertencem mais. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-26621638638130921862010-05-11T14:09:00.000-07:002010-05-11T14:09:56.491-07:00CORPO FECHADO, de Isabelle FontrinDeitado de olhos abertos no escuro do quarto, Doca recheia a noite insone com desespero. O sofrimento se esparrama e se aprofunda há dois dias. O medo resseca-lhe a boca. O coração dispara ao ritmo da angústia. Leva a mão à barriga e constata que o ferimento continua sangrando; e a dor, insuportável. Gostaria de sair porta afora espantando o impossível. Imagina-se correndo ladeira abaixo, a descer o morro, pegar o asfalto e fazer a única coisa na qual é bom. <br />
<br />
“Tocaiar um otário voltando num carrão da balada. Estraçalhar o vidro, fincar o berro na cara.”<br />
<br />
Doca gostava mesmo era do poder que sentia ao ver o terror nos olhos de suas vítimas sem saber o que viria. <br />
<br />
“Na paz, irmão! Leva tudo, mas me deixa.” <br />
<br />
Quantas vezes ele ouviu estas palavras? Em vozes trêmulas, contraste com a firmeza de sua mão empunhando a arma que lhe dava coragem.<br />
<br />
“E aí, caralho, quem pode mais? Hein? Hein?<br />
<br />
E gritava:<br />
<br />
“Passa tudo, passa tudo, porra!.” <br />
<br />
Quanto mais se encolhiam mais aumentavam as ofensas de Doca. <br />
<br />
“Irmão é o escambau, mané, quem é mermão aqui? Sou filho do demo, não tenho parceiro, faço meus trampo na proteção do Poderoso.”<br />
<br />
E ele acreditava no que dizia. <br />
<br />
Na dolorosa madrugada leva a mão ao peito em busca da proteção que traz pendurada ao pescoço desde menino, presente de Mãe Vânia, poderosa na magia negra, temida no morro. Doca nunca se esqueceu da noite em que ela o pegou pela mão e o levou onde ninguém entrava sozinho ou sem permissão. Ele sempre fora curioso do lugar, mas tinha medo do poder da mulher que a todos na comunidade impunha limites. Aos olhos infantis-de-menino-que-já-viu-de-tudo o lugar parecia aterrador. <br />
<br />
Dezenas de estátuas bizarras abarrotavam o minúsculo quartinho nos fundos do barraco da batuqueira. Lugar sem janelas, repleto de sombras subindo pelas paredes de madeira podre, desenhadas pelas chamas das velas que faziam o ambiente sufocante. Cheiro de morte. Sua protetora, com hálito de cachaça, avisou-lhe:<br />
<br />
“Desde hoje, meu fio, tu não precisa mais tê medo de nada nem de ninguém. Tô te dando a proteção de um Pai muito melhor do que o teu verdadeiro”.<br />
<br />
Ela bebeu e deu de beber a ele, rodaram dentro do círculo pintado em carvão no piso, contornado pelas velas acesas, evocando palavras incompreensíveis ao menino. O ritual terminou com o sacrifício de um galo preto, retirado de um saco de estopa. O bicho teve o peito aberto em segundos pelos dedos de Mãe Vânia; o coração arrancado e colocado na pequena mão espalmada, ainda pulsante, quente, banhado em sangue. Doca lembra-se da sensação do músculo apertado, fechado entre seus dedos, o galo esperneando, como por magia, ainda conectado à vida que já não tinha. No final, recebeu um colar acompanhado da promessa-ameaça de nunca tirá-lo, um quadrado de couro preso a uma tira do mesmo material, recheado com misterioso conteúdo jamais conhecido. <br />
<br />
“Tu tá protegido, guri. Ninguém mais mete a mão contigo. Chega de abusarem de ti porque é sozinho. Teu pai agora é o Poderoso. Fala pra todo mundo que eu disse isso. Nada de mal vai te acontecer, nem agora, nem no resto dos teus dias”.<br />
<br />
E a partir daquele dia, a vida de Doca mudou mesmo. Ele se sentiu mais seguro, ninguém o incomodava, deixou de obedecer aos maiorais, como se seus donos fossem e passou a viver e ganhar a vida por ele.<br />
<br />
“Um dia faço a mala e aí vou ter o que mereço.”<br />
<br />
Era o que sempre esperava. <br />
<br />
Agora, colada ao corpo suado do rapaz, a encardida guia permanecia como a finada Mãe Vânia ordenara. Na quente e sofrida noite havia inferno dentro do barraco e nas estranhas de Doca. Tinha 25 anos e nunca havia sido pego apesar das dezenas de mortes nas costas. Antes era parte do serviço, já há algum tempo lhe dava prazer. <br />
<br />
“Passa os troféu aí e vaza filha da puta, vaza, senão te encho de pipoca”. <br />
<br />
Esta oportunidade ele dava apenas aos que não se metiam a valentes. Colocava a grana, relógio, celular, tudo que pudesse virar pó, nos bolsos e se preparava para o próximo. Mudava de local, tinha os pontos perfeitos. Fazia como rotina.<br />
<br />
“A fita é cabulosa. Ô, meu pai, me tira dessa!” <br />
<br />
Há horas não conseguia mais se mexer, sem beber água, sem nada no estômago. Alternava momentos de lucidez e delírio. A febre e o vício consumindo dizimada energia. O calor, o calafrio, o ferimento podre, sangue se sobrepondo ao anterior, negro, seco.<br />
<br />
“Passa tudo, passa tudo, passa tudo, puta do cão”<br />
<br />
“Calma, calma, meu filho, estou indo para o trabalho, sou freira, que o Senhor esteja contigo”.<br />
<br />
Como Doca adivinharia que a mulher de meia idade, miúda à sua frente era uma religiosa? Sem hábito, dirigindo sozinha na madrugada, em zona tão perigosa?<br />
<br />
“Cala a boca, barata do caralho.”Tô na maior fissura passa tudo ou te colo o brinco. Não pensa que tu é outra.”<br />
<br />
Doca falou que ela não era diferente dos demais, mas, achou que sim. Entrou no carro, tinha pressa, e cometeu o erro que cria de bandido nenhuma faria: baixou a guarda. Sentou-se no banco do carona; tentou arrancar das mãos da mulher a pasta que ela mantinha agarrada ao peito.<br />
<br />
Um movimento brusco, e junto com ele, veio também uma inesperada mão, forte, ágil e na ponta desta, a bicuda que afundou na barriga de Doca com força descomunal. Uma só mortal estocada.<br />
<br />
“Mas o que é isso, barata da porra, tu pirou?”<br />
<br />
Na surpresa, foi só o que disse. <br />
<br />
Pela porta aberta e com um empurrão certeiro foi atirado na calçada, caindo ao lado do carro que arrancou rápido, sem que ele tivesse tempo de reagir.<br />
<br />
“Fica com Deus, meu filho. Que o Senhor te acompanhe.” Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-27701846368280846102010-01-15T04:48:00.000-08:002010-01-15T04:48:58.066-08:00Mamãe trabalhava à noite (Emir Ross)Mamãe trabalhava à noite. “Cuide da maninha até eu voltar.” Sempre que faço sombras de lua, lembro-me dela. Ela só voltava na madrugada. Maninha chorava, maninha brincava. Mas eu nunca dormia.<br />
<br />
Nossa vida era pacata e quase normal. Só agora sei que mamãe dormia nas manhãs, depois que eu saía para o colégio. “Pegou a merenda?” Eu não gostava muito dos sanduíches. Porém ela sempre preparava as fatias de pão com recheio antes de me acordar. Sinto o sabor até hoje, sabor de estômago cheio, temperado com saliva. Ela tinha, às vezes, marcas pelo corpo. Eram marcas de feijão para o almoço, de repolho com vinagre. Quando ela se distraía eu podia ver outras marcas; de remédios pra gripe, de tênis novo. Algumas custavam a sair. Outras sumiam no mesmo instante que eu as via. Pareciam as mais doídas.<br />
<br />
Não lembro dela ter amigas. As visitas que recebia nalgumas tardes eram da tia, que gritava. “Quer matar a mãe do coração?”. A mãe que a tia falava era a vovó, que só foi lá em casa uma vez. Complicado identificar o rosto dela, mas posso perceber que ela usava roupas de avó, largas, balançando.<br />
<br />
Difícil explicar porque essa rua lembra mamãe. Nunca caminhei por aqui com ela. Mas a calçada tem seu cheiro. Aparência de garoa, eis o que mamãe tinha. Garoa que chora, chora, chora. Mas nada molha. Talvez por isso sua maquilagem estivesse sempre impecável. E seus olhos tristes irradiavam brilho.<br />
<br />
“Já pra dentro.” Dizia quando os meninos me chamavam de nomes estranhos. Eram nomes que usavam botas de cano alto. Casacos compridos de cores vistosas. Mamãe me abraçava. Maninha me olhava, a chupar o dedão, pois sempre deixava cair a chupeta e não sabia pedir que a ajuntássemos.<br />
<br />
Mamãe era alta. Naquele tempo todos eram altos. Tinha o cabelo negro liso. Escorrido em direção ao queixo. E só usava brincos à noite; os colocava pouco antes de sair. Basta levantar os olhos e vejo seus brincos. Eles brilhavam aos raios da luz que vem dos poucos postes. Não é raro eu passar aqui. Mas sinto esses mistérios a cada piscar. Os carros que passam levam mamãe; e trazem de volta.<br />
<br />
“Vamos menino, come logo que tenho de sair.” Porém nem sempre eu tinha vontade de jantar. Vez em quando, respirava fundo e saía. Me deixava lá. Então eu jantava uma sopa de ausência.<br />
<br />
Primeira noite de mamãe em casa foi no meu aniversário. Meu primeiro aniversário foi aos sete anos. Mas não foram os colegas de classe. Nem a tia que eu não gostava. Nem a vó que eu não conhecia. Mas foi diferente ver a mãe em casa a noite inteira. Maninha encheu o nariz de merengue. Eu apaguei uma vela e ganhei um presente. Só depois fui ver que meu presente era uma marca inchada na coxa de mamãe.<br />
<br />
“Agora vamos dormir.” E foi a única vez que maninha deixou o berço e eu deixei o sofá-cama para dormirmos os três juntos no colchão esticado no chão.<br />
<br />
É sem sentido um homem parar à uma rua sozinho. Sentir garoa e olhar brincos e casacos largos. Mas vejo sentido em reparar mamãe e abrir os braços. E, de repente, faz sentido eu ver outra mamãe a acenar. E outra mamãe com sorriso largo. E também faz sentido aparecerem mais três mamães a mandarem-me entrar. E quando eu digo “Sim, mamãe.”, faz sentido apenas uma aproximar-se. Andar firme, andar ausente.<br />
<br />
Mamãe sempre teve marcas pelo corpo. Eu não gostava delas. Eram marcas de tudo. E um dia haviam tantas marcas de tantas coisas que não havia mais pele original de mãe. “O que é isso, mãe?”. Ela me olhou demorado, virou o rosto pra maninha, depois voltou-se a mim e sacudiu meu corpo de menino já grande. “É a vida, filho.”<br />
<br />
Nunca mais a vi. Em mim, também há uma marca. Que só eu posso ver. Uma marca que também cresce e refugia-se nesta rua. Por isso venho aqui. Para ver seus brincos, suas botas de cano alto, seu casaco de cor vistosa. Mas também vejo o que não quero ver. Marcas; muitas. Então visto-me apressado, para não ouvir as frases que fazem minha marca crescer. “Ande logo, tenho dois filhos para sustentar.” Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-78103473186255612332010-01-12T04:56:00.000-08:002010-01-12T04:56:36.851-08:00Dois graus centígrados (Rubem Mauro Machado)Até domingo, tenho de matar 37 mil pessoas. <br />
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Está abafado, o suor brota na raiz dos cabelos, me inunda a testa, a nuca, o pescoço, não há como se habituar a esse maldito calor. Alguma dúvida? Nenhuma. Procedimento? O de sempre: chegada ao alvorecer, vias de fuga cercadas, não se deve deixar testemunha nem ter pena de ninguém, há sempre que vencer o impulso natural de querer se poupar as crianças. Certo? Certo.<br />
<br />
– E o moral de seus homens, como está?<br />
<br />
Hesito. O major Camilo curva-se um pouco para a frente, estreita os olhos, na leitura implacável de minhas reações. Estamos sempre sob avaliação.<br />
<br />
– Em geral é bom, mas oscila – digo a verdade – O senhor sabe como é.<br />
<br />
– Sei. Vou mandar um novo carregamento de Transformid.<br />
<br />
Balanço a cabeça, em concordância. As malditas pílulas viciam, deixam os homens fora de si, enlouquecidos.<br />
<br />
Passeio os olhos pela parede do QG forrado de mapas, num deles está circulado em vermelho o campo de refugiados a ser “apagado”, na nossa gíria. Noutros, estão assinalados alvos das demais unidades, em geral a média é de quatro incursões por mês para cada uma delas. A consumação de cada trabalho, mesmo com o nosso armamento moderno, exige horas e uma energia absurda. Armas bacteriológicas seriam mais discretas, mas seus efeitos poderiam se voltar contra nós. Bato continência, peço licença para me retirar. Quando estou saindo, o major grita:<br />
<br />
– Ah sim, capitão, nem preciso dizer, a tropa vai ganhar uma remuneração extra por esse trabalho.<br />
<br />
– Obrigado, major.<br />
<br />
Pego o jipe elétrico, dirijo-me para o aquartelamento da UL Zeta, que comando. Todas as Unidades de Limpeza foram batizadas com uma letra do alfabeto grego, como Beta, Alfa, Gama, Delta e por aí vai. Alguns homens limpam armas no alpendre, outros jogam basquete na quadra de esportes, outros mais levantam pesos à sombra de uma árvore, são maneiras que têm de descarregar o estresse; eles detêm-se um momento ao me ver chegar, sabem que fui receber ordens, o que significa ação imediata. Matar, destruir, vira uma cachaça, uma necessidade, tem um componente quase orgástico; quando você arranca sangue, quer ver mais, sempre mais, alguns parecem não poder mais viver sem isso, o componente sádico muito forte dentro de nós. O problema é que a maioria, passada a orgia, entra em depressão, tem pesadelos à noite, todas as unidades registram elevado índice de suicídios.<br />
<br />
Vou direto para o meu PC, desabo na poltrona, abro a blusa de brim, ligo o ventilador. Pego na caixa um lenço de papel, me ponho a limpar os óculos rayban. Mundo filho da puta. A culpa de tudo é a insaciável voracidade de nossa espécie: o leão, uma vez alimentado, deixa os restos da presa para o chacal; o homem não, quer mais, mais e mais, nunca se sacia. Sempre foi assim. Os políticos, que tanto desprezamos, sempre fizeram o jogo que no fundo queremos, daí vem a força que têm. E foi por isso que as tentativas, há pouco mais de trinta anos, de um acordo para deter o aquecimento global fracassaram. Ninguém, países desenvolvidos, em desenvolvimento, subdesenvolvidos, queria abrir mão de nada. Para fazer pasto para o gado, derrubaram-se florestas; e alguém desistiu de seus automóveis? Do consumo sem limites, como se as matérias primas fossem inesgotáveis? Como se a terra espoliada pudesse se renovar eternamente? Chaminés significam empregos, alegava-se; e quem não quer progresso? E mudar uma economia baseada em combustíveis fósseis seria contrariar poderosos interesses estabelecidos, seria mudar o eixo do poder. E assim, toneladas de CO2 continuaram a ser jogadas na atmosfera, resultando em mais aquecimento, num processo já quase irreversível. Vozes alertavam contra a insensatez, aqui, acolá; mas um bloco de gelo se desprendendo no Ártico, a milhares de quilômetros, parece um acontecimento remoto demais para perturbar o nosso cotidiano, para nos fazer crer em sua realidade, para nos obrigar a levantar da cadeira e tomar uma atitude. Verdade, os cientistas sempre souberam, o aquecimento da Terra é um acontecimento natural, cíclico, ao qual se sucede um resfriamento, alguns calculam que aconteça a cada vinte mil, 25 mil anos: a contribuição deletéria do homem na verdade não significa mais do que dois ou três graus no aumento da temperatura média do globo. Mas esses dois graus foram exatamente a gota que fez o copo transbordar, com a elevação dos mares e as catástrofes que daí decorreram. Pobre Havaí, pobre Holanda, pobre Indonésia.<br />
<br />
Passo um lenço pela cara, pelo pescoço, bebo um copo de água gelada. Não estou com pressa de convocar os tenentes e sargentos, essa gente toda tão bem treinada e na expectativa aguda das novas ordens, homens escolhidos a dedo. Primeiro, preciso me recuperar desse cansaço que me esmaga. Quando chamá-los, preciso estar feroz e determinado, o maior erro de um comandante é demonstrar qualquer hesitação.<br />
<br />
A verdade é que tudo foi previsto. O que não se esperava é que acontecesse tão depressa. Hoje aquele primeiro grande massacre, o de setembro de 2042, já foi assimilado, tornou-se um mero fato histórico, como a batalha de Salamina, a bomba de Hiroshima, o atentado a Nova York de setembro de 2001, poucos se lembram agora da comoção mundial que provocou, embora a grande maioria tratasse logo de buscar os argumentos que o justificavam. Desesperados pela fome e a sede, centenas de milhares de africanos, que haviam visto seus rios secarem, seus animais e colheitas morrerem na savana esturricada, como se à voz de um comando invisível, embarcaram num enxame de embarcações de todos os tamanhos e feitios em direção à Europa, encheram com elas o Mediterrâneo, que alguns órgãos de comunicação, com humor macabro, chamariam depois de Mar Vermelho. Cientes da catástrofe que se abateria sobre si, impotentes para impedir a enxurrada de miséria que se aproximava, as marinhas da França, Espanha, Itália e Portugal, numa ação conjunta, mandaram suas corvetas e fragatas varrerem para longe, para o fundo, para o inferno, aquela turba escura e esquálida, abafando seus gritos e seu espanto com a voz forte dos canhões e metralhadoras. E apenas podíamos então pressentir que aquela seria a primeira mortandade na série que se seguiria. Àquela altura, o nível dos oceanos não cessava de subir, engolindo em pouco tempo boa parte do Rio, Nova York, Xangai, Hong Kong, Marselha, Liverpool e outras centenas de metrópoles litorâneas, fazendo de Veneza um mito comparável ao da Atlântida. O Ártico encolheu na forma de um pequeno solidéu branco, países ilhéus do Pacífico sumiram do mapa, o Ceilão virou uma ilhota. Enquanto grandes porções do planeta convertiam-se num braseiro, outras, como a Inglaterra, congelavam por causa do desvio das correntes marítimas que amenizavam o clima. Com a produção agrícola e toda a economia mundial em colapso, multidões de refugiados climáticos vagavam de um lado para o outro, buscando uma quase impossível sobrevivência em meio à grande fome. Foi então que os países maiores fizeram aquele grande pacto secreto e foram criadas as unidades militares de extermínio. Não havia alternativa. A esterilização em massa não resolvia o problema da superpopulação, seus efeitos, muito demorados, serviam quando muito para travar o índice de crescimento populacional, nada mais que isso; e havia gente demais no planeta e comida de menos; chegou-se então à decisão fatal: para que um núcleo humano, afinal de contas, sejamos francos, a elite da humanidade, sobrevivesse, era preciso acabar o quanto antes com os excedentes, com aquelas multidões subnutridas empilhadas em acampamentos da periferia, que geravam doenças de toda espécie e eram uma ameaça o tempo todo de distúrbios, saques e invasões. E a escolha era uma só, lógica, imperativa até: o extermínio dos mais fracos, mais ignorantes, mais desprotegidos – os menos aptos.<br />
<br />
Olho o relógio, depositado sobre o tampo da mesa. Um militar bem formado não discute ordens, cumpre-as. Vou chamar meu pessoal, repassar as instruções. É preciso não amolecer, não sentir pena, ressaltou o major. O novo alvo está estabelecido, a data também: o próximo ataque ocorrerá dentro de 48 horas, num réveillon em que fogos e gritos não serão de deleite. O pior são os gritos: atravessam as bolas de cera que entopem nossos ouvidos, continuam a ecoar depois de tudo terminado; por causa deles, muitos soldados preferem ouvir rock pesado enquanto trabalham. Depois, escavadeiras abrirão covas coletivas, tratores empurrarão os resíduos para dentro delas. Extenuados, embarcaremos em nossos helicópteros, regressaremos em silêncio para o quartel como zumbis, sacudidos por tremores, cada qual dono de suas próprias visões, à espera da próxima missão. Não fui eu que moldei este mundo. Ele não é o mundo que desejei para meus filhos. Mas que alternativa tenho eu? Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-25166705882432141242009-12-24T06:59:00.000-08:002009-12-24T12:18:14.824-08:00Um mundo melhor (Sergio Faraco)Para Jacob Klintowitz<br />
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<span style="font-size: x-small;">"Na tragédia, não agem as personagens para imitar caracteres, mas assumem caracteres para afetuar certas ações." ARISTÓTELES, <em>Poética</em>, VI, 145-32</span><br />
<span style="font-size: x-small;"><br />
</span><br />
<br />
– Amanhã venho te buscar para o ensaio – disse Russo.<br />
<br />
Partiu o amigo, deixando-o no pórtico da galeria que ia dar no saguão do hotel. Absorto, não notou que o lugar, mal-iluminado, estaria deserto, não fosse um grupo de jovens, cinco ou seis rapazes e uma garota, em suspeito silêncio no recuo de uma vitrine.<br />
<br />
Ao perceber que o olhavam, era tarde.<br />
<br />
O bando o cercou.<br />
<br />
Enquanto uns o imobilizavam, outros lhe vasculhavam os bolsos. Quis reagir, e a garota, uma loura sardenta de olhos claros que até então mantivera-se à parte, saltou à sua frente com uma faca. Cessou de se debater, mas isso não evitou que um dos rapazes o esmurrasse no nariz, que começou a sangrar.<br />
<br />
– Não deixa melar o casaco – gritou a garota, e suas pupilas faiscavam na contraluz da vitrine.<br />
<br />
Também roubaram os sapatos e a carteira. Antes da fuga, um safanão o derrubou. Ouviu vagamente a correria na direção da rua, mas não se moveu de imediato, menos por cautela do que por pasmo. Quando pôde levantar-se, algumas pessoas acorriam e o ajudaram a andar até a portaria do hotel. O nariz ainda sangrava, e o gerente, após certificar-se de que não estava tão mal, ofereceu-lhe um copo d'água e um lenço de papel. <br />
<br />
– Quer que chame a polícia?<br />
<br />
Não, não valia a pena.<br />
<br />
– Não levaram cheques, cartões?<br />
<br />
Tinham levado.<br />
<br />
– Convém fazer a ocorrência e avisar seu banco.<br />
<br />
Sem casaco, descalço, sem dinheiro e documentos, tomou o elevador com participantes de um seminário de lojistas, cidadãos de próspera aparência, com ternos alinhados e impecáveis colarinhos, que o relancearam como a uma parede, como se o não vissem.<br />
<br />
À noite, quase não dormiu.<br />
<br />
Ler era impossível.<br />
<br />
Se fechava os olhos, via os jovens se acercando, a disposição deles, o olhar de aço da garota, o lampejo da faca, e ressentia o murro no nariz. Figurava a garota com ódio, depois se compadecia e ódio outra vez a estremecê-lo, então acendia a luz de cabeceira e sentava-se na cama, ofegante e a transbordar rancores. Quanta ironia, quanto escarmento em seu papel de vítima. Logo ele, um dramaturgo cujas obras a crítica iconizara como fotografias sem retoques das tumultuosas noites urbanas, a brutalidade tão crua quanto aberrantes os processos que a deflagravam. Contra esse conspícuo arauto da violência rebelavam-se seus arquétipos – uma cena burlesca em que os infantes de Cronos cometessem parricídio.<br />
<br />
À lembrança do trabalho seguiu-se um conforto: não perdera a vida, como tantos, tampouco se ferira com gravidade e – um truísmo – continuava bem-parado em degrau muito acima daqueles sebentos que, mais dia, menos dia, acabariam na prisão ou a estertorar em periféricas sarjetas. Admitiu que a noite fora menos perversa do que poderia ter sido. Descontados o pequeno inchaço no nariz e o prejuízo material, uma bagatela, nada mudara. Era um autor bem-sucedido, o que lhe facultava, com um pouco mais de prudência, conservar-se distante daquele universo ignóbil, cuja utilidade em sua vida era tão-só a de papel-carbono. Não era assim que produzia suas exitosas peças, estereotipias do noticiário policial? A arte copiando a vida, como queria Sêneca? A vida como ela era, sim, trocando apenas de cenário: no lugar da rua escura, o palco enfumaçado à meia-luz.<br />
<br />
E começou a se tranqüilizar.<br />
<br />
E apagou a luz.<br />
<br />
Pelas frestas da veneziana viu que clareava o dia, uma nova manhã após o árduo combate, e lembrou-se de Homero: Quando a aurora de róseos dedos, filha da manhã... E sem saber que a lembrança já era um sonho, dormiu até perto do meio-dia.<br />
<br />
Almoçou no restaurante do hotel.<br />
<br />
Dormiu novamente e, à meia-tarde, despertou indisposto. Ou não era bem isso, antes algo que o inquietava, que o estranhava. Como se mal se reconhecesse ou recém começasse verdadeiramente a se reconhecer, como se o incidente na galeria – que outra coisa haveria de ser? – lhe tivesse aberto um portal misterioso cujo limiar receasse atravessar, e surpreendeu-se murmurando algo que lhe vinha à lembrança nas horas de incerteza: Eu, o verme, reconhecendo este tecido de alma ausente...* E foi com um princípio de náusea que viu seu rosto no espelho da pia. <br />
<br />
À noitinha, Russo veio buscá-lo. Cogitou de desistir do programa, fazer a mala e antecipar a passagem de volta, mas como poderia, se viera à cidade a convite, para ver o ensaio da peça de que era autor?<br />
<br />
E foi e logo se aborreceu, a esgrimir com a absurda sensação de que o texto não lhe pertencia ou, se pertencesse, era produto de aquoso e insípido crisol que agora se esvaziara para dar lugar a outras e ainda ignotas misturas. Molestava-se também com as intervenções de Russo e as repetições de cada cena. Russo queria verossimilhança, e o protesto concernia, mas queria também que a representação ultrapassasse sua própria essência, ou seu limite. Chegou a gritar com um ator:<br />
<br />
– Não quero representação, quero vida!<br />
<br />
Mais vida? E ele ouviu aquilo como a um desaire, como se alguém, por certo ele mesmo em outra dimensão, com outro rosto e redescoberta alma presente, estivesse a lhe apontar o dedo acusador.<br />
<br />
Após o ensaio, foram jantar no hotel.<br />
<br />
Conversaram sobre a peça, sobre os atores e o que Russo deles exigia, e em dado momento o escritor, quase sem querer e com ligeira impaciência, viu-se observando que a arte obedecia a certas leis que se desavinham com a vida real: cada elemento precisava ter sua existência justificada e esta era a harmonia. A vida não era assim.<br />
<br />
E acrescentou:<br />
<br />
– Quando pedes menos representação e mais vida estás pedindo uma arte menor.<br />
<br />
O outro abriu os braços.<br />
<br />
– Que é isso? Crítica ou autocrítica? Agora descartas teu bem-amado Sêneca? Como podes pensar que um texto ou uma representação se aproximem da arte na mesma medida em que se afastem do que é real?<br />
<br />
– Não foi o que eu quis dizer, ou foi, mas de outro modo. Não é uma questão de distâncias. A arte tem de ouvir, como Bilac disse a João do Rio, tem de ouvir e registrar todos os gritos, todas as queixas, todas as lamentações do rebanho humano. Mas é um registro como representação, não um fac-símile. Não te parece que essa enunciação de nosso príncipe, considerada isoladamente, está incompleta?<br />
<br />
Então o que dissera, ou ao menos pensara, era que a vida, afinal, era o que era ou o que já tinha sido, um caótico enjambement de acasos, “uma história repleta de som e fúria, contada por um idiota” – como não lembrar essa clássica dedução? –, não um organismo ou um sistema que se provasse por ambicionar determinado fim. Ela não buscava o belo ideal, não buscava, como a arte, o mundo melhor. Quisera dizer, então, que a arte tinha de ser basicamente transformadora, e que seu desígnio não era se parecer com a realidade e sim corrigi-la. E acabava sendo – a verdadeira arte – uma imprescindível, primorosa e verossímil mentira. Ou não propriamente uma mentira, mas o que a realidade poderia ou deveria ser...<br />
<br />
– ...se viver fosse uma arte. <br />
<br />
Russo o olhou por um instante.<br />
<br />
– Balzac?<br />
<br />
– O belo ideal? Sim e não. Foi o que ele ouviu e acatou, dito pela mãe de Madame de Staël.<br />
<br />
– Acho que entendo. Me serves uma sopa canônica, de Balzac a Schopenhauer, com pitadas quânticas e colherinhas de Shakespeare e Voltaire... não te faltou uma receita grega? Não era para tanto. Ou muito me engano ou, se me permites, sem que a comparação te ofenda, estás dando voltas como burro de olaria só para dizer que minha direção não te satisfaz.<br />
<br />
– Só estamos discutindo, meu diretor. Nunca te contaram que a dialética da controvérsia favorece a digestão? – e tratou de mudar de assunto, relatando o que lhe ocorrera na véspera.<br />
<br />
– O teu nariz... – observou Russo, sinceramente pesaroso. – E numa hora dessas, eu aqui a tagarelar sobre arte.<br />
<br />
– Foi um incidente comum.<br />
<br />
– E não terminou tão mal.<br />
<br />
– Melhor foi o que veio depois.<br />
<br />
– Como? Tem mais?<br />
<br />
– Hoje à tarde saí, dei uma caminhada. Adivinha quem encontrei num trailer de cachorro-quente.<br />
<br />
– Os ladrões!<br />
<br />
– A loura.<br />
<br />
– A loura!<br />
<br />
– A loura sardenta, a da faca. Ela e um menino.<br />
<br />
– Nossa, não sei o que eu faria.<br />
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Ele se aproximara e a agarrara pelos cabelos. E agora, sua putinha? O menino fugira, continuou, e imagina o espanto das pessoas ao redor, tentando compreender. E diante dele, aqueles olhos não mais implacáveis, olhos de medo e lágrimas de uma pobre menina assustada. E vira também naquele olhar uma saga de miséria e desespero – a versão dos derrotados, como o eram aqueles meninos. Que dos vencedores, como os engravatados do elevador, não obtinham sequer um átimo de reflexão, que dirá um gesto de compreensão, solidariedade e respeito humano.<br />
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– Vi nesse reencontro o teatro.<br />
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– Viste a vida, meu amigo. A vida como ela é.<br />
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– Não, o teatro. Acreditas se te disser que a soltei e fui embora?<br />
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Russo ergueu o cálice:<br />
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– Aos teus novos e indistintos conceitos não vou brindar, mas gostaria de fazê-lo à tua atitude. Um perfeito epílogo.<br />
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O outro brindou, com um ligeiro sorriso.<br />
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Mais tarde, quando se despediram à porta do hotel, ele ficou parado, vendo o amigo afastar-se pela galeria.<br />
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Um brinde impróprio, claro.<br />
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Perfeito epílogo? Ora...<br />
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Russo desprezara seus argumentos e acreditara piamente no reencontro com a garota – pensava ver nele a plausível harmonia, a absoluta comunhão entre arte e vida. Seus postulados se engrenavam, coerentes. Mas que pena essa coerência! Russo nem ao menos suspeitara de que aquele reencontro no trailer jamais acontecera e era tão-só uma correção literária do incidente – o mundo melhor –, isto é, a peça que um dia talvez pudesse escrever, desde que ele mesmo também se corrigisse, convertendo-se no autor que agora desejava ser. <br />
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* Início do romance <em>À beira do corpo</em>, de Walmir Ayala (N. do E.) Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com11tag:blogger.com,1999:blog-4105578041200592449.post-66770547877021979642009-12-16T10:25:00.001-08:002009-12-25T12:19:47.417-08:00Iluminação do cotidiano (Zélia Delacroix Farina)Não houve tempo para nada. Para um grito ou uma expressão de espanto. Quando se deu conta, já estava no chão, a todo o comprimento, os cabelos libertos da touca que os domava, a roupa amarfanhada, um chinelo escada acima, outro se equilibrando na ponta do pé. Entre surpresa e aturdida. E na boca aquele gosto invasivo de saliva alheia. Não sabia ao certo se batera com a cabeça e tinha ficado meio inconsciente. O fato é que não havia mais ninguém ali. Somente latões de lixo, balde , esfregão. O que desabara sobre ela tinha a força de um vento de verão tardio, morno e intenso, um desses ventos capazes de soprar desatinos na cabeça dos viventes. Envolveu-a num inesperado misto de violência e delicadeza, buscando-lhe a boca com a boca, enquanto as mãos faziam o seu trabalho de busca e sujeição.<br />
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Foi com esforço que se recompôs, o corpo não lhe obedecia, as pernas desenhavam círculos no chão, recusando a postura vertical, a cabeça parecia esvaziada e poderia até pensar ter sofrido uma alucinação devido ao calor, não fosse aquele gosto persistente de saliva. Inúmeras vezes lavara a boca; em vão. O gosto era interminável; nem bom nem mau, estrangeiro. Era sábado, no prédio havia um mínimo de funcionários, como de costume em finais de semana; ninguém aparecera durante o seu período de atordoamento. Melhor assim. Sabia que nenhum daqueles empregados seria capaz de ato semelhante. Viviam todos no mesmo código. Se um deles a quisesse, por Deus, já lhe teria dito e a coisa teria rolado ou não, como tudo na vida. Não era dada a muitas conjeturas; quedava-se, por isso, estupefata. “Quem, nesse prédio de gente rica, podia me querer, logo eu tão diferente de todos eles? Só se fosse..., mas não, bobagem,será possível?, um senhor tão distinto.” O fato é que era objeto do desejo secreto de alguém, um desejo violento porque ansioso e tímido, deliciosamente desajeitado. O corpo não lhe doía, além daquele mínimo que se confunde com prazer. Sofrera um atentado à mesmice da sua vida. Como se num surrado baralho de cartas marcadas, surgisse, inexplicavelmente, uma carta extra: um coringa que talvez pudesse mudar a sua vida. <br />
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Para o doutor Nogueira e Silva,nada saíra como o que tinha sido planejado, aliás como costuma acontecer. A ideia era somente pegá-la de surpresa e dar-lhe um beijo na boca, e depois safar-se. Fugir para sempre ou por bastante tempo. Viver daquela lembrança tanto quanto fosse possível. Mudar de cidade, ir morar na praia, ficar uns tempos na casa do irmão. Algo assim meio infantil meio maroto; esconder-se depois de uma travessura e só voltar quando as coisas estão sossegadas. Mas ela, desafortunadamente, pelo inesperado da situação,escorregara no chão úmido e rolara abraçada por ele no piso gelado, desencadeando um desejo irrenunciável. Fato inconteste é que há muito sonhava com ela, dormindo e acordado. Para dizer a verdade, desde que a vira pela primeira vez, limpando as escadas do prédio. Ele, a quem jamais interessou saber quem eram os funcionários do edifício ou o que faziam ou deixavam de fazer, viu-se oscilar, corpo e mente, ante aquela visão. Como era possível uma criatura exercer sobre ele semelhante tirania, era-lhe um mistério. Talvez por ser leve e graciosa ao executar atividades tão servis. No seu entender até brutais para um físico tão delicado. Devia ser nova no ofício, logo percebera, o corpo flutuava dentro do uniforme, os gestos ainda não eram bruscos e automáticos como fatalmente se tornariam com o passar do tempo.Como entendido em arte, logo a classificara: era uma bailarina que dançava em inusitado palco para ninguém, ou melhor, somente para ele que havia descoberto o segredo. Sabia que já a conhecia de algum lugar e isto o intrigou por um bom tempo. Aquela sensação de “déjà vu” o invadia continuamente, logo ele que execrava esse tipo de percepção por achá-la própria de mentes fantasiosas . Certo dia , folheando ao acaso um livro da biblioteca , localizou-a. O sobressalto do reconhecimento, como se uma cortina deslizasse para a entrada da luz.Era ela, sem dúvida, a figura mais impressionante pintada por Degas, “A primeira bailarina”, do famoso quadro do pintor francês. Essa tela sempre o fascinara pela mobilidade, era um quadro vivo, a bailarina parece que voa como se quisesse escapar para a vida, atirar-se nos braços do público. E lograra mesmo fazê-lo, pensava ele um tanto assombrado,pagando o alto preço do anonimato e da servidão. As roupas grosseiras, os chinelos de borracha e a odiosa touca nada lhe roubavam, ao contrário, acentuavam ainda mais a beleza por conta do violento contraste. Fechou o livro com cuidado, antes arrancando a página que retratava a bailarina. Pensou em colocar moldura, pendurá-la na parede ; estaria assim sempre à vista. Mudou de idéia, não a queria para os olhos de qualquer um, resolveu carregá-la junto ao corpo: algo assim como um talismã, um porta-fortuna contra a insipidez em que se transformara a vida. Para tanto, executou elaborado plano: localizou um tatuador artista, de outra cidade bem distante naturalmente, que reproduziu a bailarina com maestria na região abaixo do mamilo esquerdo,onde o coração a fazia balançar.Pensava, entre divertido e maravilhado, que ela jamais poderia escapulir, estava nele para sempre, ainda que não pudesse suspeitar. <br />
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Nos primeiros tempos em que se conheceram , fingira ignorá-la,não mais que uma peça na engrenagem de limpeza do prédio, espiando-a, no entanto, freneticamente, pelo canto dos olhos. Ela, humilde, face abaixada, inclinava-se ainda mais à sua passagem para esconder os olhos e o embaraço. Tempos depois, um aceno comedido, de cabeça. E, mais tarde, um “Bom dia” , mais resmungado que dito. E,finalmente, um “ Bom dia, Teresa”.” Bom dia, doutor ”. Era o máximo de intimidade que se permitia.Descobrira na folha de pagamento do edifício que ela se chamava Teresinha, o que lhe causou contrariedade.Uma beleza maiúscula não admitia tal designação. Passou a nomeá-la Teresa, o que lhe garantiu a atenção da moça, surpresa duplamente: era nomeada e rebatizada. O dia só começava para ele quando, saindo para a caminhada matinal, a encontrava, sempre entregue à sua humilhante ocupação. Era o seu momento mais alto, um calor prazeroso se irradiava por todo o corpo e o mantinha assim, acima de todas as pequenas misérias da rotina e da idade. O respeitoso e esperado “bom dia, doutor” ficava dançando nos seus ouvidos, letra e melodia, indo e voltando.<br />
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Mas agora,sem querer, estragara tudo. Perdera o controle, logo ele, exemplo de cidadão, homem de bem, curador da Escola de Belas Artes. Chegara perto demais, era isso, aquele perto que não admite retirada. Caíra no torvelinho. E assim, perdera o que não queria perder. Não sabia o que a moça sabia; ou do que desconfiava. Desabara sobre ela sem dizer palavra. E se estivesse rindo dele, da sua pretensão, do seu desatino? E se todos no edifício já soubessem do ocorrido e estivessem planejando uma ação contra ele, atentado ao pudor, abuso, quem sabe até suspeita de senilidade? Que horror! E ainda mais, se sabendo que tinha sido ele, tendo certeza disso, ela já tivesse contado para o marido, amante, companheiro ou sei lá o quê? Poderia ser alvo de vingança, e bem merecida no seu entender. Sim, pois era inimaginável que ela não tivesse alguém; essa era situação para gente como ele, fruto ressequido à espera da queda. Sentia que adentrava terreno movediço, novidade na sua vida. Como agir para manter-se na superfície? Como passar por ela, novamente, e colher aquele mínimo de atenção , “Bom dia, doutor!”, sem ser paralisado pelo medo ou pela vergonha ou até, quem sabe, sem poder reprimir o desejo todo novo de repetir a loucura que tinha vivido com ela. Surpreendia em si mesmo o emergir de um desconhecido, de um outro que estivera sempre à espera. <br />
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Naquele dia, só voltou tarde da noite para casa, não queria correr o risco de revê-la ou de ouvir conversas de outros empregados ou moradores.Sabe-se lá o que realmente tinha acontecido a Teresa e o que ela dissera; ou calara. Por dois dias inteiros, não saiu do apartamento.Reclusão. Compasso de espera.Apenas escutava, ouvido rente à porta. Distinguia os sons habituais, risadas dos vizinhos, cumprimentos e até eventuais xingações entre marido e mulher. Isso, em outra situação, poderia ser puro divertimento para ele: um mundo se abria nesse seu novo posto de escuta. Mas um mundo que não o interessava mais,um mundo passivo; queria ser ator, ator principal, nunca é tarde. Conseguia inclusive apreender , ao longe, o roçar da vassoura no chão, a abertura dos sacos de lixo, o ritmado baque do esfregão contra o piso. Todavia não podia saber se era ela, a sua bailarina, a agente de tais ruídos. Teresa trabalhava somente na área de serviço, separada do prédio principal por pesada porta de vaivém, a porta corta-fogo: os sons chegavam, por essa razão, abafados, quase indistintos. <br />
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Aqueles dois dias de exílio voluntário, privado das caminhadas e do encontro com Teresa, lhe oprimiam o peito. Diariamente saía do apartamento à mesma hora, sem se desviar jamais do caminho habitual, aliás o menos provável para um morador. Utilizava sempre a área de serviço, onde se localizavam as escadas, os latões de lixo... e Teresa. Era uma doce disciplina que se impunha . Mas devia justificar-se continuamente perante vizinhos e funcionários, surpresos com a recusa ao conforto dos elevadores, logo ele um senhor de certa idade,dizendo que o fazia somente pelo exercício físico. “Doutor, espere um minutinho que já chamo o elevador, oito andares não é brincadeira.“ Ao que ele sempre respondia: “Não se preocupem comigo, sigo conselho médico, devo caminhar o máximo possível. Subir e descer escadas é um exercício completo. ” Sem dúvida, o fazia pelo exercício, porém totalmente desligado de qualquer recomendação médica; seguia , isso sim, a sua recomendação interior, aquela que está gravada a fogo em cada um de nós. Sabia que fatalmente a encontraria em um dos andares, entregue ao seu inconsciente bailado. Era um exercício de encantamento, surpreendê-la, vê-la e ser visto por ela.<br />
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No terceiro dia, após o desvario, não aguentou mais: ressurgiu.Com capricho, preparou-se para a caminhada, abriu a porta corta-fogo que dava para as escadas e, nada mais fixo que hora de empregado humilde, lá estava ela, precisamente no seu andar. Imobilizou-se, corpo e pensamento bloqueados. O coração solto,batendo como um martelo contra a tatuagem da bailarina; suor frio, boca seca. Excepcionalmente, ela não empunhava vassoura nem arrumava saco de lixo; estava imóvel, encostada na parede, mão na cintura, olhando para a porta, como se esperasse por ele. Pela primeira vez, um olhar direto, chama e labareda. O cabelo, entre preso e solto, estava liberto da touca. As mãos, sem as luvas grosseiras .O uniforme de brim cáqui, displicentemente aberto nos primeiros e nos dois últimos botões, assemelhava-se a um casulo de onde brotasse uma borboleta.E,no pé, a prova definitiva de que ele não se enganara a seu respeito, era mesmo a bailarina do quadro, a que trazia há tanto tempo gravada no peito: no lugar do indefectível chinelo , uma sapatilha branca, diáfana, de tela finíssima, que a deixava descalça e calçada a um só tempo, pronta para a dança do amor e do desejo. Charles Kieferhttp://www.blogger.com/profile/06682922862834611416noreply@blogger.com1