quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O Cadáver (Ricardo de Albuquerque Müller)

Não sei se devo ou não acreditar nos meus olhos, se tenho a mente perturbada pela mais terrível solidão que um homem pode suportar. Esse cheiro de morte com o qual tenho convivido dia após dia tem me levado a um desespero que beira à loucura, onde não vejo saída nem na própria morte. Escrevo com a intenção de, ao relembrar os fatos, tentar encontrar uma lógica que me explique tudo por que venho passando, apesar de achar que estarei condenado a um lento e interminável martírio.

Havíamos passado ao largo das ilhas Cayman num dia de mar calmo e praticamente sem vento. Os turistas já haviam almoçado e a maioria estava no convés apreciando a paisagem. Devido ao cansaço, eu preferi ficar na cabine e tirar uma sesta. Foi com um duro golpe na cabeça que acordei e percebi que o navio afundava. Demorei alguns instantes para entender o que se passava, mas logo compreendi que a embarcação adernava para bombordo. Ouvi muitos gritos e um barulho infernal que deduzi ser o casco se partindo. Pela escotilha, vi homens ao mar e vários corpos boiando. Dois botes haviam sido lançados, mas com o desespero os passageiros foram subindo neles em número excessivo e desordenadamente, acabando por emborcá-los. Tentei abrir a porta da cabine, mas ela estava trancada. A escotilha também estava emperrada, e não consegui abri-la. Não achei nenhum objeto de metal ou de algum outro material resistente que pudesse servir para arrombar a porta. Fui tomado de um desespero sobre-humano e comecei a gritar e a chorar, dava socos e pontapés na porta e rezava. O navio continuou virando de lado até a porta da cabine ficar para baixo e a escotilha para cima. Depois, começou a afundar rapidamente e vi a água encobrir totalmente a pequena abertura circular, porém a cabine continuava totalmente seca, sem infiltração de água. Foram poucos minutos até o navio se chocar contra o fundo e estabilizar. Então, do barulho infernal sobreveio um silêncio ensurdecedor.

Recomposto, percebi que não estava sozinho. Havia um homem inerte e com a face completamente desfigurada dentro da cabine. Provavelmente tinha sofrido o traumatismo no momento em que o barco havia virado bruscamente. Palpei o pulso e logo vi que ele estava morto. Em seguida, tive náuseas e mal-estar, e precisei me virar de costas para o cadáver e respirar fundo. Permaneci nessa posição por alguns instantes e não conseguia imaginar como ele tinha surgido ao meu lado. Eu certamente havia entrado sozinho na cabine e a porta estava fechada. Então, criei coragem e me virei. Estendi o corpo e passei a examiná-lo mais detidamente. Havia um afundamento de face e múltiplos ferimentos que não permitiam reconhecê-lo. O lado direito do crânio apresentava uma grande contusão, com laceração no couro cabeludo que deixava entrever parte da massa encefálica entre os fragmentos ósseos. Procurei nos bolsos algum documento que pudesse identificá-lo, mas nada encontrei.

Fazia uma hora que o navio havia afundado. Continuava tudo no mais absoluto silêncio. A única iluminação provinha da luz natural que iluminava o oceano e entrava pela pequena escotilha, num tremular inconstante e fantasmagórico. Deduzi que não poderíamos estar muito longe da superfície, pois a intensidade da luz era razoável. Contudo, não percebia nenhuma movimentação junto ao navio, nenhum sinal que indicasse que o naufrágio tivesse sido avistado por alguém. Tentei outras vezes sair desse local pequeno e oprimente, mas não tive sucesso. Enfim, desisti. Restava apenas aguardar um possível resgate.

Após seis horas o ar estava insuportavelmente quente e irrespirável, com uma emanação pestilenta proveniente do cadáver que já começava a se decompor. Não conseguia me afastar dele devido ao espaço exíguo. A noite já começava a despontar e as trevas invadiam pouco a pouco o cubículo, deixando-me extremamente aflito. Durante a longa espera até o amanhecer, eu permaneci acordado e com os olhos abertos, rodeado pelo mais profundo breu, sem me mexer, com medo de tropeçar no cadáver.

No dia seguinte e nos outros foi a mesma tortura, o mesmo sacrifício pelo qual deve passar o condenado ao fogo eterno. Mas seria o demônio tão sádico e cruel? Teria isso a ver com a minha vida um tanto quanto desregrada? Estaria sendo eu punido pela bebida e outros vícios? Confesso que pensei seriamente no suicídio, mas não tinha como cometê-lo. Não pela falta de coragem, mas pela falta de meios materiais. Não comia e não bebia, mas o meu corpo nada pedia. E os dias e as noites se sucediam numa massacrante e interminável rotina. O que mudava era apenas a progressiva putrefação do cadáver, que inicialmente havia inchado e adquirido uma coloração esverdeada, para depois começar a liberar uma secreção escura e fétida, com formação de bolhas e perda de partes da pele e demais tecidos. Eu não tinha onde ficar a não ser sobre aqueles restos de matéria putrefata, com o meu corpo cheirando a morte, mas sem conseguir morrer.

Faz um ano que ocorreu o naufrágio. Ninguém ainda apareceu para resgatar o navio. O cadáver que me acompanha — eu o batizei de Polinice — está praticamente reduzido a uma ossada. A luz fraca e tremulante e o escuro profundo e absoluto se intercalam numa sucessão infinita e torturante. Sinto que esta cabine é o meu túmulo onde jamais conseguirei descansar. E ninguém neste mundo poderá me responder a uma dúvida que me afligirá por toda a eternidade — poderia ser eu o cadáver?

2 comentários:

  1. "O Cadáver" é um bom exemplo de como o exercício de pasticho para jovens autores como Ricardo pode ser produtivo.

    Charles Kiefer

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  2. Ótimo texto!

    Sentimos com o protagonista a agústia do momento.

    Apesar de sabermos que é uma estória póstuma lemos até o final para confirmar.

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