quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Infância (Amilcar Bettega)

Nós éramos crianças e orgulhosos das nossas arminhas de chumbinho. Cada feliz brincadeira de nossos dias longos era, sem que soubéssemos, intensa e definitiva como um passo iniciático. Caçávamos passarinhos. Joões-de-barro, sabiás, bem-te-vis e tico-ticos abundavam naqueles lados de laranjeiras enormes, pereiras magníficas, macieiras, pessegueiros, e eucalipto e campo, um campo interminável, que nos isolava e protegia, como a cândidos reis infantis.

Foi um passarinho de estrutura doce e frágil, cujo nome nunca nos foi dado saber. Depois a chamamos de pombinha, talvez pelo branco incomum, quase um milagre naquele mundo de telúricos pássaros marrons; talvez pela brandura dos movimentos, que nos pareceram inequivocamente femininos; chamamos de pombinha porque nunca soubemos, de fato, que espécie de ave era aquela, tão pequena e tão diferente e que depois de tudo, e por muito tempo, ainda nos fez cogitar, na solidão escura de nossos quartos de dormir, que nem ave era, algum espírito disfarçado, uma coisa sagrada, e que nos vigiava o sono. Mas chamamos de pombinha, sobretudo, porque precisávamos de um nome, precisávamos contar, aos outros e a nós mesmos, nas histórias que sempre voltavam quando nos reuníamos, a experiência que foi caçar a pombinha.

Foi vista num relance por um de nós, e antes que todos a víssemos, vimos os galhos secos do pessegueiro que se agitaram num tremor repentino, como se uma pedra pelo meio deles caísse. E ainda assim, e já ela vista em seu vôo branco de alegres asas lépidas, algum de nós insistiu que se tratava de uma borboleta, esses fúteis pássaros de papel que saem do sonho de sestas indolentes, pulando no ar como se vivessem um desenho animado. Não era borboleta, era a pombinha, com corpo e vôo bem mais exato, feita de sangue e carne, o que a tornava, de pronto, coisa viva e real, maior e mais grave do que mil borboletas desabaladas. “Borboleta nada”, dissemos nós, meninos com sedes de aventura, ou realidade, ou o nome que se dê a essa gana de ser crescido.

Os primeiros três ou quatro tiros dissiparam-se em ecos aflitos, no infinito: não éramos tão bons quanto pensávamos. Costumávamos treinar em alvos fixos: as latas e tampinhas de garrafa. Ou então em sanhaços gordos e sonolentos da fartura das laranjeiras. Mas nada, nada como ouvir o rude bater de uma asa, o remexer frenético nas folhas, descobrir na placidez monótona da árvore o lugar exato de onde vem aquele movimento; essas coisas todas nos aproximavam de uma verdade quase táctil, sentíamo-nos vertiginosos, o sangue correndo mais ligeiro no corpo, o coração gritando na axila, no ombro que sujeita o cabo da espingarda, que pula, como se ela própria, a tirana, quisesse sozinha fazer o serviço.

E o pior, o terrível, foi que a pombinha não fugiu. No mais das vezes era só uma chance que tínhamos, ou, como atiradores infalíveis: uma só chance que dávamos. Raro era o passarinho que nos desafiava assim, pulando para uma árvore vizinha após errarmos o primeiro tiro. Raríssimo. Impossível. Nunca, jamais um passarinho ficou zanzando de cá para lá entre as árvores, depois de quatro disparos vergonhosamente perdidos.

No quinto ela desandou.

Estava num galho alto e desceu flagrantemente viva, não como uma bergamota madura e abatida como tantos joões-de-barro, sabiás, bem-te-vis, tico-ticos, tantos que assim caíam; mas desceu com as asas semiabertas, se debatendo numa espalhafatosa resistência. Tanto que não foi ao solo. Ficou meio que agarrada num galho mais baixo, quieta, num silêncio em que a surpresa, o medo, talvez a dor e a consciência de estar viva juntaram-se, imóveis. Foram grandes minutos, foram anos, até que um de nós a viu de novo: uma flor branca, se na árvore houvesse flores brancas. Imediatamente, como que dotada de percepções estranhas, ela se moveu, já desassossegada por aquele incômodo pedaço de metal incrustado sob a asa, e procurou escalar um galho mais acima, pondo nas garras a força que lhe faltava em uma das asas. Era já um alvo fácil, e essa facilidade intimamente nos irritou. Tivemos que atirar três vezes. Três vezes atiramos, três vezes, para que então sim ela viesse ao chão, com barulho e, pensávamos, ferida de morte.

Foi sim.

*

Foi sim. E não poderia ser diferente disto: uma sensação de que o mundo some, de que num repente desaparecem todas as forças que nos sustentam e de que algo terrível nos puxa para o nada. Sentir que um frio repentino nos chupa a vida. Sentir que se cai sem tempo de saber que se cai, ou de ao menos preparar o corpo para queda: talvez abrir uma asa, aprumar a pata, girar o torso no ar para que o peito amorteça o baque. Não. Ao contrário, sentir que tudo é pior e que não há força capaz de evitar o pior. Sentir com inequívoca certeza que se vai morrer, e que se queria tanto continuar vivo. A queda é feia e de bico, o pescoço entorta, e só depois as costas contra a grama, como um tambor que se rompe, chocho. E ali ficar, passado o susto, quase feliz naquela estranha convalescência de capins. O peito arfa de medo e cansaço, e há como que um sutil relaxamento dos membros, rapidíssimo, porque então vem o inevitável momento em que a dor se acomoda no corpo como quem chega de mudança.

Estirada assim, olhando o céu e as nuvens, os galhos que filtravam o sol como uma cortina puída, a pombinha pensou. Aguardou, imóvel e sem esperança, que alguma coisa viesse salvá-la. Mas aguardar não era mais do que pretexto para se dar o tempo de juntar forças, porque sabia — e talvez soubesse tanto isso — que estava sozinha. Trazia já uma asa inerte, pedaço morto de si, e o sangue vazava do corpo com uma lentidão de sono. Talvez sonhasse e talvez o sonho fosse bom: o céu azul, uma árvore baixa, uma quase comovente liberdade. Mas qualquer coisa, qualquer coisa que certamente era dentro de si, despertava e a trazia para um mundo de nuvens cruzando o céu e raios de sol furando a copa das árvores, um mundo onde alguma coisa lhe fustigava o flanco com crescente energia. E assim, ainda deitada em sua cama verde, ouviu ruídos que se propagaram perigosamente pelo solo, um tropel de pés muito maiores — sempre tudo muito maior e perigoso — e num só e brevíssimo instante teve de aprender a não ser pássaro e correr terrenamente por entre os ramos de capim, como criança começando a andar. O outro tiro entrou pelas costas, uma furiosa pedra quente que lhe lambeu a espinha e ergueu no ar inúmeras penas como na explosão de um travesseiro. E inúmeras carícias lhe caíram lentas sobre a cabeça, numa improvável tarde de neve. Uma ardência, uma crescente ardência. Eram já cinco os nacos de chumbo que dormiam no seu corpo, e a partir daí decidiu não mais contar. Simplesmente correu. Correu muito, sem saber como nem para onde, os flancos inchados, num esforço supremo para vencer os gigantescos tocos de capim que lhe arrebentavam as patas e se enterravam na carne das coxas. Intimamente sabia que os ramos altos e duros consumiam com velocidade assustadora as suas últimas energias, mas agradecia, a isto que lhe matava, por ser também a selva que a protegia do tiro fatal.

E não foi um, mas vários, a julgar pela quantidade de ecos que se multiplicaram nos ouvidos. Caiu, por fim, exausta, irrevogavelmente derrotada, mas com uma dignidade que não julgava ter. A asa morta, amarrotada sob o corpo como uma folha de papel inútil. Ficou assim estática por dois magros segundos, até que a outra asa, sem menos nem mais, como que atiçada por uma corrente elétrica, abriu-se num leque — e as penas todas, do lombo à nuca, arrepiaram-se num estertor de morte. Era a morte, não havia dúvida, e havia naquilo qualquer coisa de divino. Uma profunda dor no lado e o bico se abriu para puxar um ar que não vinha. O esforço de comprimir-se inteira em busca do nada rendeu-lhe apenas um vômito lento e incolor, pouco mais que um soluço. O bico se fechou num difícil gole em seco, a garganta ardia. Espichou o pescoço para facilitar a entrada do ar e, muito devagar, como quem teme que alguma coisa rebente, abriu outra vez o bico para que surgisse, retesada, a minúscula língua cor-de-rosa. Depois foi se encolhendo, a cabeça baixando no peito, como quem cai no sono.

Quando já não se pode imaginar mais nada, quando o ser parece esgotado de tudo o que nele vive, quando já se é uma massa alquebrada e inerte, quando já se está para sempre vencido e destroçado e batido e morto, é só nesse instante que se é o que de fato se é. A pombinha, nesse instante, como que tomada por forças sabe-se lá de que lugar de si, fez bruscos movimentos com a asa num arranco raivoso, abrindo espaço sôfrega e desabaladamente entre a grama, uma asa arrastando no chão, a outra tentando alçar um vôo absurdo, caindo e levantando e voltando a cair. E assim continuou por uns três, talvez quatro metros, que são vinte, mil, milhões de metros de uma trilha bêbada, caindo e levantando e voltando a cair — e nesse momento ela foi assustadoramente humana.

Então caiu, de uma vez por todas.

Finalmente podia relaxar, deitada sobre o amontoado dormente que lhe pendia de um lado, e acreditou que dormia. A outra asa permaneceu aberta, tal qual um veleiro abatido, com sua vela espalmada e balouçante sobre a superfície do mar. Alguma coisa ainda se agitou por um tempo dentro de si, mas o sono acalmou tudo. O olho, voltado para o alto, ficou aberto e com a sensação de ser a última coisa a morrer.

*

E foi ali.

Foi exatamente ali naquele olho aberto e lustroso, que nos vimos todos refletidos, todos à volta daquela mancha branca — e agora manchada de vermelho — sobre a grama, todos nós, meninos se aprontando, orgulhosos das nossas arminhas de pressão. Nós éramos crianças. E repetimos: nós éramos crianças. Repetimos muitas vezes, éramos crianças. E ainda seguimos repetindo, repetindo sempre.

Um comentário:

  1. Conto maravilhoso. Um tiro seco, uma tortura silenciosa e lenta. Inventamos e matamos ilusões durante a vida inteira. São os tipos de ilusão que mudam com o tempo. Que bom reler Amilcar. Parabéns!

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