domingo, 18 de outubro de 2009

O retorno (Eni Allgayer)

Mofo! O cheiro de mofo e poeira está em todos os lugares. Pelo jeito, o sol não entra no quarto há muito tempo. Estranho isso! Ele sempre gostou de luz. Detestava penumbra e poeira. Lembrei então de sua renite. Como estaria? Senti vontade de abrir as cortinas e janelas, deixando o ar puro e o sol entrar, mas me contive. Não seria prudente. Onde estavam as empregadas? Suzi e Verona sempre foram caprichosas, mantendo a casa limpa e perfumada. Será que ele as despediu? Homens são tão insensíveis! Ora, onde já se viu despedir duas empregadas que já estavam conosco há pelo menos vinte anos. Quem estará cuidando dele agora? Ninguém vive sem cozinhar, lavar, passar e limpar. E, ele nunca teve jeito para essas coisas. Lembro-me de como era desajeitado quando tentava me ajudar, nas folgas das empregadas. Chegava a ser engraçado, aquilo: pratos, copos e travessas não resistiam às suas mãos, e a toalha acabava cheia de manchas. Isso sem falar na comida queimada. Bom, vou deixá-lo dormir mais um pouco. Passei a mão em seu rosto áspero, estranhando a barba de dias, mas ele não se moveu. Acomodei-me ao seu lado, resgatando anos de silenciosa vigília. Depois de algum tempo, deixei-o na inconsciência do sono e fui revisar os outros aposentos. Que horror! A sala também tem as cortinas cerradas. Isso não está certo. Nunca pensei que ele pudesse mudar tanto. Antes, era ele quem abria portas e janelas pela manhã, para que o perfume do jardim invadisse todos os recantos. Era a sua maneira de demonstrar amor, pois sabia o quanto eu gostava das flores e árvores que havíamos plantado. Não raro, surpreendia-me com um botão de rosa, resultado de suas investidas furtivas ao roseiral. Chegando à cozinha, pensei preparar um café da manhã no capricho, lembrando que não havia nada que o agradasse mais do que um farto desjejum. No armário, pão dormido; na fruteira, uma banana passada, de casca escurecida; na geladeira, uma caixa de leite desnatado pela metade. O que está acontecendo com ele? Como pode deixar isso acontecer? Inconformada, retornei para o quarto. Encontrei-o encostado na cabeceira, com os cabelos revoltos e os olhos fechados. Sentei na cama, recostando-me ao seu lado, como nos velhos tempos, entrelaçando meus dedos nos seus. Ele permaneceu quieto, num silêncio sofrido. Acariciei-lhe as mãos, como costumava fazer, quando as coisas ficavam difíceis. Pensei ver um sorriso fugaz bailar em seus lábios. Depois de alguns minutos, ele levantou, começando a se vestir, com a calma costumeira. Esperei que fizesse sua higiene, e fomos para a sala. Finalmente ele descerrou as cortinas e, o meu coração se confrangeu ao ver que não existia jardim, nem roseiras, mas apenas plantas daninhas se enredando nas árvores. Por que isso?, perguntei, desgostosa. Num encolher de ombros, ele sentou em frente à escrivaninha. Na sala, pilhas de livros e jornais ocupavam mesas, cadeiras e sofás. Naquele momento, arrependi-me, sinceramente, por não ter adotado uma criança, como chegamos a cogitar, quando os médicos finalmente concluíram que ele era estéril. Voltei a questioná-lo sobre o que estava acontecendo, mas ele me ignorou, continuando a examinar os papéis que tirara de uma gaveta. Algum tempo depois, levantou para acender o abajur. Então me aproximei, tomando-o nos braços. Minha cabeça ainda estava recostada em seu peito, quando fixei o olhar na imagem solitária refletida no espelho. Só então compreendi a tristeza que havia em nossa casa.

3 comentários:

  1. muito bom, nota 10! instigante até o final.

    ResponderExcluir
  2. Esse conto me pegou... É bem interessante. Gostei muito.

    ResponderExcluir
  3. surpreendente. A gente umagina uma coisa e sai outra, completamente diferente. Legal

    ResponderExcluir