domingo, 10 de maio de 2009

Nem a pergunta quando parares de rir (Juarez Guedes Cruz)

Considerando que o meu computador (e o de todo mundo) tem uma memória quase absoluta, eu o chamo de Funes. Pois bem, eu anoto no Funes algumas coisas que penso sobre o que me acontece durante o dia e, numa certa hora, eu escrevo um conto como esse que vocês vão ler e que, aviso para os desmemoriados, começa com a frase Considerando que o meu computador (e o de todo mundo) tem uma memória quase absoluta, eu o chamo de Funes, e termina (já vou avisando para os mais apressados, que vão direto para a última linha) com a frase Deixando em quem escreve a sensação muito dolorosa de que não precisava ter lembrado nada disso.

E o anotado ontem, já na madrugada, foi que o correto, em bom português, seria perguntar quando parares de rir queres dançar comigo? Porém o que ele, tímido e gaguejando, perguntou foi quando tu parar de rir vamos dançar? Mas o melhor foi a resposta dela — mulher tão linda, que ele, quando falou com ela, já achava que não a merecia e que ela iria virar a cara — o que ela disse (tão linda que era) foi então vamos dançar agora, porque eu não vou parar de rir tão cedo. E, desse momento até o cartório, à igreja, o nascimento dos filhos, são coisas de anos, mas o que interessa é esse instante, esse primeiro minuto em que ele perguntou desajeitado se ela queria dançar com ele depois que parasse de rir e ela respondeu que deveriam começar a dançar logo porque ela não pararia de rir tão cedo. O que interessa é esse primeiro minuto, esse primeiro dia e, até, as horas que antecederam essa pouco gramatical pergunta e tal encantadora e já citada resposta, então vamos dançar agora. Interessam as horas que antecederam esse encontro que, eles não sabiam, seria um encontro pelo resto da vida, com filhos e netos, mas isso fica pra depois, porque interessam as horas que antecederam o encontro, horas nas quais ele passara por outras três festas em outras faculdades. Festas que, nos anos sessenta, eram chamadas de reuniões dançantes. Ele havia passado por três outras reuniões dançantes, como se dizia na época, e nada de bom a não ser a cuba libre, mas nenhuma mulher que lhe chamasse a atenção. Ia embora para casa, e teria ido embora para casa se não fosse o amigo chamado Mauro, que depois se tornou pediatra mas, na época, era apenas um adolescente que jogava futebol de salão e quando jogava brigava com todo o time adversário, com o juiz e, até com os próprios companheiros quando erravam passe. Mas esse amigo Mauro insistiu (ele devia estar iluminado por Deus), insistiu que fossem a uma quarta festa, instalando, em plena Porto Alegre, uma movida quando, em Porto Alegre, nem havia movida. E tendo ido, para felicidade sua, a esta quarta festa, aconteceu a visão da mulher linda e vestida de azul e a súbita e desajeitada pergunta e a resposta encantadora, ou seja, aconteceu o decisivo episódio que está relatado nas primeiras linhas desse que se pretende conto. Aliás, esse amigo, Mauro, jamais teve conhecimento da importância do gesto. Nem soube que casaram e tiveram filhos aqueles dois que ele, sem saber, uniu. E também sem saber ficou que, passados alguns anos, nem a pergunta quando parares de rir queres dançar comigo, porque nem riso mais havia, havia era a alma despedaçada e nem havia mais música para dançar e nem mesmo a disposição de fazer a pergunta e, se fizesse a pergunta, por mais gramatical que fosse, a resposta não seria então vamos dançar agora, porque as lágrimas não deixariam falar e tudo conspiraria para instalar entre os dois a mesma sensação que invade, agora, este que se pretendia conto, ou seja, de que deveria ter parado na página anterior e não poderia de modo algum ter prosseguido até esse tempo onde a alma já está despedaçada, deixando em quem escreve a sensação muito dolorosa de que não precisava ter lembrado nada disso.

13 comentários:

  1. No cenário da literatura brasileira e rio-grandense, Juarez Guedes Cruz destaca-se pela criação de um tipo de conto diferente. Ele não cede à identificação imediata, à mimese realista. Seus contos propõem enigmas, dialogam com a alta literatura ocidental, constroem sutis e sofisticadas metaficções. Ao Juarez, não basta ler. É preciso reler, e tresler. Borgianamente, faz das formas literárias o próprio tema, o próprio assunto de sua ficção. De poucos leitores possíveis, é verdade, mas de qualidade extraordinária. Confira o grande talento e a maestria de Juarez Guedes Cruz em A cronologia dos gestos e em Procedimentos para ocultar feridas, livros de contos já publicados.

    “Nem a pergunta quando parares de rir” faz parte de um novo livro, ainda sem título e sem data para publicação.

    Charles Kiefer

    ResponderExcluir
  2. Juarez, sou tua fã, já te falei isso, certa vez, mas não canso de repetir. Gosto muito dos teus textos, teu segundo livro devorei em duas tardes, recomendo-o aos colegas, enfim, parabéns por este maravilhoso conto. Carina Luft

    ResponderExcluir
  3. "Nem a pergunta..." é um conto excelente que me deu vontade de ler outros contos seus. Vou atrás de" A cronologia dos gestos..."
    Carlos Stein

    ResponderExcluir
  4. Muito prazer, senhor Juarez. O Charles já tinha mencionado uma ou duas vezes o teu nome na oficina (estou fazendo o primeiro nível), mas só agora tive o prazer de lê-lo. Este e o da tarântula foram os que eu encontrei na internet. Já me junto à Carina no teu fã-clube. Quero ler mais, assim como o Carlos. Abraços.

    ResponderExcluir
  5. Gostar do Juarez é pleonasmo, ele é unanimidade nacional. Um beijo, ana

    ResponderExcluir
  6. Um conto elegante e surpreendente, parabéns Juarez!

    ResponderExcluir
  7. Espirituoso e tocante o conto, Juarez. Não há como deixar de perceber matéria cotidiana nas tuas histórias.
    Parabéns e um forte abraço,
    Marco

    ResponderExcluir
  8. Apresentar um conto, nesse espaço inaugurado pela Ana Mariano e pela Monique Revillion, já é um compromisso!! Grato a todos pelos comentários carinhosos e pelo incentivo. Um abraço especial ao Charles Kiefer por nos proporcionar mais um espaço de convívio e troca de idéias.
    Abraços do Juarez.

    ResponderExcluir
  9. Adorei o comentário da Ana Mariano, 'gostar do Juarez é pleonasmo... ele é unanimidade ... '
    Concordo c/ ela quanto aos textos e também quanto à pessoa maravilhosa que ele é...
    Isso daria até um samba, "quem não gosta do Juarez bom sujeito não é..."
    Bjos.
    Vivi.

    ResponderExcluir
  10. Mais um grande conto do Juarez. Esse autor talentoso, diferenciado, absolutamente maduro é um exemplo de que o nosso tempo dará, sim, sua contribuição à literatura.

    ResponderExcluir
  11. É tão engraçado, isso! Comecei a ler o conto e uma sensação de reconhecimento imediato ocorreu. Parei antes do fim. Queria adivinhar. Pensei: é o Juarez! Bingo. Só podia, né? Maravilhoso, como sempre. Abraços,

    ResponderExcluir
  12. Juarez
    E um Funes agora é presidente de El Salvador! Aquele país que os americanos diziam que poderiam mandar, junto com os nicaraguenses, forças para invadir a América! Essa nossa memória...

    ResponderExcluir