terça-feira, 5 de maio de 2009

Poema de amor sem ninguém e Procuram José Gonçalves (Ana Mariano)

Poema do amor sem ninguém

Este poema de amor
é bilhete sem destino
Não sei a quem entregá-lo
Não há nome no envelope
nem rua, nem direção
Ternura jogada fora
saudade apenas, sem fatos
que se possam recordar
este poema de amor
reincidente e insano
joga sal no oceano
transpira lençóis de insônia
esboça os traços de um rosto
traceja a forma de um corpo
apaga, torna a fazer
Vento vago que levanta
e logo depois deposita
palavras soltas, papel
este poema,
eu mesma,
este poema é ninguém.


Procuram José Gonçalves

Procuram José Gonçalves.
Homem simples,
brasileiro,
vivia
em Montevidéu.
Vendia flores na esquina
da avenida San Jose.
Além do nome, mais nada.
Medroso bicho pequeno
camuflado no prosaico,
não alcançava os negócios,
que, ao redor, se fechavam
desdobrando-se em camadas,
gravatas, lagos de gelo, uísques e amendoim.
Nada sabia do inferno.
Por que foi inesperado,
homem levando um outro
homem que não se vê ?
Talvez tivesse uma dor que um dia desesperou.
Ou seu olhar incendiado
de impossíveis passados
tivesse visto uma Rosa
a qual ninguém mais não viu.
E, nessa Rosa, outra rosa,
algum chamego, um requebro,
fez dele menino novo,
o sexo arregaçado
as mãos nos bolsos dobradas,
guardando fundo um segredo,
como quem guarda um real.
Procuram José Gonçalves,
menino, homem secreto,
que ao badalar de uma hora,
pisoteou as margaridas,
dobrou, agudo, uma esquina,
virou nota de jornal.

12 comentários:

  1. Os dois poemas são construídos com ritmo e imagem que tocam profundamente.Já os conhecia,mas o meu preferido é Poema Do Amor Sem Ninguém,acho-o belíssimo!
    A Ana Mariano tem esse dom de usar as palavras não apenas para enfeitar,mas para dizer.Sua poesia é inesgotável e sempre nova.
    Parabéns pela escolha de inaugurar o blog com estes dois poemas desta nossa Grande Poeta!!!
    Um Beijo,angela

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  2. O primeiro poema pede um divã para contextualizar: será uma perda ou dor da ausência? Deixa Freud analisar. O segundo merece um olhar em nós mesmos, será um autoretrato caricatural? Os dois nos remetem a um pensamento só: não estamos sós, mas a solidão está. Guto Moisés

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  3. Na correria, não disse uma palavra aqui, depois de postar os 2 poemas da Ana Mariano. Digo agora. Eu a escolhi para inaugurar este espaço, que contará com contos, poemas, crônicas, minicontos e outras narrativas, produzidos pelos participantes de minhas oficinas literárias.

    A Ana publicou um grande livro de poesia, "Olhos de cadela", editado pela L&PM. E ela prepara outro livro, cujos poemas tem sido o deleite dos colegas da turma de sábado de manhã. E do professor, que sente um enorme prazer quando vê seus companheiros de ofício produzindo arte de qualidade.

    Charles Kiefer

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  4. Uma das poucas coisas que aprendi nesses tempos de poesia é que não existe pocket poet, ou seja, o poeta não vai junto com o poema para explicá-lo. Um poema não se explica, precisa sobreviver sozinho. Será ou não conforme cada leitor der a ele a sua emoção ou a sua indiferença. No entanto, como este blog é de alunos ou ex alunos do Kiefer, achei que talvez uma conversa fosse interessante. Sempre me peguntam, quando faço um sarau, de onde tiro a inspiração. De dentro, a inspiração não vem da bonita paisagem da minha janela onde todos dizem:ah! com uma vista assim eu também faria poesia. Eu fecho a janela para escrever, a paisagem tem que ser interna. As idéias, porém, podem vir de fora.O poema do amor sem ninguém, como diz o Guto, Freud explica. Nele, acho que falo da solidão do amor, o amor é sempre solitário, o outro é construído,desenhado por nós com nossos desejos. O do José Gonçalves, fiz quando li no El País, aqui do Uruguai, uma notinha onde a família procurava José Gonçalves, um brasileiro, vendedor de flores numa dessas barraquinha de esquina. O que o fizera desaparecer?,me perguntei, o que o fizera dobrar a esquina e não mais voltar. Um desespero , uma mulher? Igual a todos, não sei, por isso, invento. Obrigada, Charles, pelo convite.

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  5. Sou grande fã da Ana Mariano... seu livro "Olhos de Cadela" está sempre à mão, para um deleite... minhas amigas, a quem dei um exemplar de presente, também o aclamam como ótimo... e viva o Charles, esse incrível escritor que abre mais um espaço para seus alunos, na sua imensa generosidade... Luiza

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  6. Gostei muito do blog e dos poemas que são maravilhosos. Nada entendo de poesia ( por enquanto ), mas sei apreciar o que é bom e estes, com certeza, são excelentes. Charles, estás de parabéns pela iniciativa. Que bom se todas ou, pelo menos, muitas pessoas pudessem se utilizar desta ferramenta para o deleite da cultura. denise barros

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  7. Ana, que coisa linda. Parabéns, sempre. beijos, Monique

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  8. Ana, a tua poesia emociona pela exatidão da palavra e pela força subterrânea que o encadeamento delas trás à quase-superfície, respeitando o leitor. Tens o sorriso amargo dos excelentes poetas. sou teu fã sincero.
    Pena Cabreira.

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  9. Ana! Gostei dos poemas. Ao acessar o blog pela primeira vez, fui direto neles, Charles fala tão bem do teu trabalho que não poderia deixar de compartilhar este momento. Procuram José Gonçalves está perfeito! Parabéns a você pelos poemas e ao seu CK pela ótima iniciativa. Um beijo. Carina Luft

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  10. Ana!
    Só hoje consegui vir aqui no Gostei Muito, do Charles. Fiquei orgulhosa por teres inaugurado o espaço. Lembrei dos nossos tantos encontros, os ensaios de 5 in verso, as risadas, o próprio José Gonçalves, lembrei da tua doçura declamando-o na Feira. Saudade, querida. Teus poemas? Nossa, precisa dizer? Recebe minha admiração. Sempre!

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  11. O primeiro poema trata sobre um amor mal sucedido e como todos já passaram por isso os leitores se identificam.

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  12. Ana Mariano é assim, sabe transformar bilhetes sem destino em ótima poesia. Já leram o seu "Olhos de Cadela"? Então sabem do que estou falando.

    Christian

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