quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Ouvindo a chuva (Paulo de Tarso Riccordi)

Dia ainda claro, do horizonte avançava uma barra escura de nuvens carregadas, quase sólidas de tanta água.

Vó Neca falou:

- Aí vem temporal.

Luizinho confirmou e logo se surpreendeu. Voltou-se para observar a bisavó. Teria recuperado a visão?! Não. Ela continuava com os olhos pregados no vazio, tão cegos como sempre.

- Como é que tu sabe que vai chover, vozinha?

Ela riu. - Pelo ar. Não sentes os sinais?

- Eu tô vendo o tempo fechar.

- Os sinais da chuva que vem vindo estão no ar. É como um mensageiro que nos traz notícias de longe. A Natureza também fala.

Estendeu a mão e tocou na cabeça do bisneto.

- Fecha os olhos.

Ele fechou.

- O que estás ouvindo?

- Um automóvel.

- Te concentra mais. Não escutas os passarinhos?

- Passarinhos?

- É. Ouve: eles pressentiram o temporal e estão buscando as árvores para não serem pegos pela chuva durante o vôo.

Luizinho, agora concentrado na audição, ouvia, sim, o rebuliço da passarada no arvoredo em torno. Era a mesma algaravia de sempre, mas agora parecia amplificado por sua atenção.

- Agora te concentra com o corpo. O que estás sentindo?

Luizinho sentiu a leve, ainda levíssima, brisa chegar até eles.

- Tá ficando mais fresquinho.

- É, na frente da chuva vem o vento frio. Está correndo para onde o ar é mais quente para ocupar seu lugar.

Ele agora o percebia nos braços e nas pernas, arrepiadas.

- Agora respira fundo. E então?

Ele concentrou-se, nariz erguido.

- Cheiro de capim. E de barro.

- É, já está chovendo nos campos fora da cidade. A chuva vem vindo de lá para cá.

Luizinho entreabriu os olhos e viu a bisavó apontar com o queixo exatamente o rumo de onde vinham as nuvens.

- Agora as plantas estão felizes. A terra está molhada. Elas precisam de sol, mas também de muita água para crescer. Ficam mais fortes, crescem mais rápido. E o gado também fica mais feliz, porque tem o que comer. Não estás sentindo um cheiro de bosta de vaca?

Não, ele não sentia. Era sutileza demais para ele.

- Eu tô sentindo é cheiro de eucalipto.

- É, naquela direção. - A avozinha apontou adiante. - Deve haver uma grande plantação de eucaliptos lá.

Luizinho mais uma vez surpreendeu-se. Avistava a meio caminho da linha do horizonte um mato de eucaliptos. Fechou os olhos e aspirou profundamente o ar impregnado desse perfume familiar. Era costume naquela família ter sempre uma lata com folhas de eucalipto a ferver à beira do fogão a lenha “para desinfetar o ambiente”.

- Ainda estás com os olhos fechados?

- Tô.

- Sentes que o ar está mais pesado?

- Não. Eu tô sentindo é cheiro dágua.

- É, já tem cheiro de umidade no ar. Eu sinto no corpo e nas juntas dos ossos que a umidade já aumentou bastante. Logo isso vai se condensar e formar gotas.

- E aí vai pingar e começar a chuva.

- É, por isso vai chover.

O lençol escuro de nuvens os alcançou, cobrindo o que restava de céu.

- Pronto, o sol se foi. Agora ficou frio mesmo. Vamos entrar para não nos gripar.

A avozinha levantou e arrastou consigo a cadeira, subindo as escadas e avançando pela casa, sabendo onde cada coisa se encontrava, melhor do que se enxergasse. Nunca precisava de auxílio para nada ali dentro.

- Vou preparar um chá de cascas de laranja.

Da janela da cozinha Luizinho ficou olhando a chuva chegar. Era a velha chuva de sempre, e ao mesmo tempo uma completa novidade. Primeiro o vento sacudiu as folhas das árvores do pátio, agitando-as desordenadamente em todas as direções. Depois as grossas gotas iniciais vieram tamborilar nos vidros. Quando a chuva chegou total, veio como uma cortina, avançando rua a rua, casa a casa.

- Luís, tem um pano velho aqui debaixo do fogão. Enrola ele e põe junto à porta, que está entrando água por aí.

Outra surpresa. De fato, a água começava a entrar na cozinha por baixo da porta.

- Como sabias disso, vozinha?

- As gotas estão batendo contra a porta. É sinal de que o vento as está empurrando também por baixo dela. E depois, pelo barulho, o ralo do pátio deve estar entupido.

Ela não confessou, mas isso ela não ouvira, não. Fora a empregada quem, de manhã, dissera que a calha estava entupida de folhas secas e que “amanhã” iria limpá-la.

Ele deixou-se ficar diante da janela, mas com os olhos fechados, deixando que os demais sentidos continuassem a perceber temperaturas, sons.

A lembrança dessa tarde lhe voltaria ao longo da vida, trazida pelo ruído de chuva, pelo perfume de terra molhada e eucalipto, pelo sabor do chá de laranjeira e pelo abraço de um corpo mirradinho de carnes. Nunca mais as chuvas deixaram de trazer notícias das cercanias e do passado.

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