domingo, 20 de setembro de 2009

Dia de fechar negócio (Paulo Tedesco)

Desliguei o telefone. O Festugatto ia ficar puto com as novidades.

– Era o Vicente – eu disse. – O Albumir fechou o negócio dos Scaparo.

– O que tu falou?!

– Isso mesmo que tu ouviu, o Albumir fechou o negócio com os Scaparo.

– Não pode ser! O negócio era meu! Tava se arrastando há mais de um ano para fechar! É cliente antigo!

– Acho que tu vai ter que falar com o Osni. Liga para ele, antes que seja tarde.

O Festugatto começou a andar de um lado para outro, no meio da calçada.

– Me faltava essa, ter que implorar para um gerente de merda por uma venda que era minha. Minha, tá ouvindo? Eu que arranquei esse negócio do nada, eu que encontrei o cliente, eu que mostrei a mercadoria. Porra, até no aniversário da filha do cara eu fui! Aquele bando de chato ouvindo música de corno e tomando água, e eu seco por uma cerveja gelada, só querendo uma nega para eu dormir.

– Festugatto, tu sabe como são as coisas na imobiliária, a regra é a do cada um por si. No teu lugar eu já teria ligado e chorado alguma coisa. Sou teu amigo e tô querendo te ajudar, se falar com o Osni ele ao menos vai saber do que tá acontecendo. Gerente é para essas coisas.

– O Albumir nunca respeitou o besta do Osni. Não te lembra do caso do Morro da Pedreira? Quando o Osni conseguiu todo o loteamento para vender e, no fim, quem levou a comissão foi o Albumir? Chega a dar pena do Osni, é gerente mas não sabe vender e, quando se alia com alguém, ainda toma rasteira.

– Por que não liga para o Giacomin? Ele é o dono do negócio. Liga e pede uma reunião. Sei lá, inventa uma desculpa, diz que ficou sabendo de alguma negociação grande, e por isso precisa falar pessoalmente...

– E aí digo que o Albumir me passou a perna porque confiei no cliente e não assinei um pré-contrato de venda? Que a minha amante tava me aporrinhando para passar um fim-de-semana em Gramado e o cliente foi me procurar justo no plantão do sábado em que eu não estava e o Albumir tava lá e fez a parte dele? Porra, Vander, o cara é dono de meia cidade, tem amigo até no governo federal, tu acha que ele tem tempo para resolver briguinha de corretor? E se ele resolve confrontar a história com a do Albumir? Tu acha que o Albumir já não esquentou o próprio lado? Deve ter pré-contrato assinado, que pode ser falso, mas que ele tem, tem!

– Bom, Festugatto, tu é grande e sabe te virar – eu disse, enquanto procurava nos bolsos a chave do carro. – Eu tô indo para a imobiliária, mas antes vou passar no cartório para pegar umas autenticações. Aonde tu fica?

– Vou contigo. Não sei o que pensar.

Estacionei na frente do cartório e ele não me deixou desligar o motor, por causa do ar condicionado:

– Deixa de ser mão de vaca, Vander, não vou ficar derretendo nesse calor.

Quando voltei, ele dormia, havia recostado a poltrona e ressonava. Não sei como alguém consegue dormir numa hora dessas. Se um colega de imobiliária tivesse me derrubado num negócio de 200 mil, eu estaria indo matá-lo, nesse momento. Perder comissão não faz a minha cabeça, aliás, me tira o sono por dias. O próprio Festugatto, certa vez, me levantou uma venda, se fez de louco e passou a mão num cliente meu. Depois pediu desculpas, disse que tava apertado de grana, que ia ter que devolver para a concessionária a BMW, que tinha se precipitado, eu era um cara legal e não merecia. Fiquei com pena e não fiz nada.

Pus o automóvel em movimento. Ele abriu os olhos. Libertou um pigarro da garganta e retomou o sono. Nos meus primeiros tempos de imobiliária, ele emendara um peteleco dolorido na minha orelha sem nem saber o meu nome direito. Quando virei na cadeira giratória, vi um gigante; eu, sentado diante daquele homem de cento e cinqüenta quilos e quase dois metros de altura, sentia-me pequenininho. O peteleco tinha sido uma carícia, algo gentil, vindo daquele monstro.

Um dia me convidou para almoçar e disse que deveríamos fazer uma dupla. Eu era novo, tinha sangue jovem e era inteligente, unidos faríamos fortuna. A única condição que impunha é que o ajudasse nas brigas com o gerente, que abrisse o jogo dos negócios e o mantivesse informado de cada movimento do Albumir et caterva.

– Gente perigosa, Vander. Eles vendem a mãe e não entregam. Matam e vão chorar no velório. Confia em mim, vamos dar um nó nesses otários.

Nó, eles deram nele, e quase fui junto. Naquele negócio do Morro da Pedreira, quem deu início a tudo fui eu. Mas estava inseguro porque a coisa era grande demais, e dividi com ele. Em poucos dias o Osni também ficou sabendo e, quando o Albumir entrou na parada e começou a fechar a negociação, tive que ouvir do Seu Giacomin “da próxima vez que tiveres acesso à informação de coisas daquele tamanho, tens que te reportar ao teu gerente, ao Osni, e a mais ninguém. Para o teu amigo, o Festugatto, vou dar umas férias para repensar. Espero que ele aprenda a não fazer intriga nem esconder notícia que interessa à empresa, e tu, volta ao trabalho, que deve ter gente te esperando. Vamos, rapaz, te mexe”.

Se eu também tivesse ganhado férias naquela ocasião, teria quebrado, eram meus primeiros meses de corretagem e estava para perder meu carro em leilão de dívida. O engraçado é que quando a coisa apertou foi o Albumir quem apareceu para me ajudar. Ele tinha emprestado um cheque, e, no almoço do mês – todo mês o Giacomin pagava um churrasco para integrar o grupo dos corretores e comemorar as vendas –, um Albumir excitado disse que estava disposto a perdoar a minha dívida se eu entregasse ali, naquela hora e para o mundo, quanto que o Festugatto havia ganhado no negócio do condomínio Lazule, afinal, segundo ele, não era sempre que alguém ganhava comissão em quarenta apartamentos sem ter vendido nenhum: “Porra, Vander, vocês almoçam junto, vão em puteiro juntos. Entre nós, para o amigão aqui, abre o jogo, o pessoal tá curioso para saber quanto o Festu fez naquele rolo...”, e caiu numa estridente gargalhada, derramando cerveja sobre as carnes que iam saindo do fogo.

Estacionamos. O Festugatto ressonava, imóvel.

– Festu, acorda, porra. Vamos, homem, não posso esperar o dia aqui.

Ele esticou o braço e agarrou-me pela manga. Não conseguia falar, algo parecia ter travado na garganta. Estava ofegante, os olhos arregalados e o cabelo revolto.

– Faltava essa, tá passando mal? Vai morrer? Quer que te leve para o hospital?

Ele apertou minha manga cada vez mais e repentinamente soltou-a. Virou a cabeça para o lado. Não tinha pulso. Liguei o carro e puxei o freio de mão.

– Descansa um pouco, Festu, vou apresentar a proposta para a velha e depois nós te levamos para o hospital ou para o necrotério, onde tu quiser. Deixo até o carro funcionando e o rádio ligado para ti, fica ouvindo uma musiquinha, para distrair.

Subi pela escada que dava no alpendre da sede da imobiliária, um outro carro estacionava do lado oposto da rua. Eu batalhei muito por esse negócio, o Festugatto iria entender, eu não demoraria nada. Era a Dona Alberta Zandonai que chegava, e aquele era dia de fechar negócio...

10 comentários:

  1. Escritores brasileiros, em geral, têm ojeriza ao mundo do trabalho. Ou urticária. Gostam de falar do amor, das flores do campo, do sol e das estrelas, gostam de viajar ao redor do próprio umbigo, de escrever sobre coisas absolutamente sem importância, gostam de deitar sapiência sobre o óbvio, sobre o insignificante, sobre aquilo que não tem nenhum expressão social. E quando alguém se encoraja a escrever sobre sem-terra, sobre pequenos e miseráveis camponeses ou sobre o proletariado urbano, é imediatamente taxado de panfletário.

    Paulo Tedesco, meu aluno, aceitou o desafio que lhe impus: escrever um livro de contos sobre o mundo do trabalho, já que ele próprio é um trabalhador e conhece bem a dura vida do "tripalium".

    O resultado sairá em breve, no livro "Contos da mais valia @ outras taxas".

    "Dia de fechar negócio", este conto magnífico que agora publico aqui, é só uma palhinha da grande obra que virá.

    Charles Kiefer

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  2. Paulo,
    é muito bom reeencontrar esse conto, que eu já conhecia da leitura no nosso grupo dos sábados. Parece que te ouço lendo e, sem dúvida, tem marca registrada. Para escrever sobre o mundo do trabalho, o sujeito tem que ter competência e vivência nesse meio que descreves tão bem. Parabéns.
    Juarez.

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  3. Nunca escondi do Paulo a admiração que tenho pelos seus contos. Há neles uma espécie de "verdade irresistível", característica de toda literatura que resiste ao tempo. Tenho certeza de que o livro de contos que em breve ele lançará conquistará os leitores mais exigentes.

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  4. Grande Paulo!
    Como sempre, provocando os leitores.
    Parabéns pelo texto, quero ver o livro!
    abração!

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  5. Mano! Intrigante hein?! A realidade em olhos de comedia...

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  6. Boa conto narrado com ótimo ritmo, diálogos ágeis que levam a história e nos apresentam os personagens de forma tão precisa a ponto de construirmos suas fisionomias a partir dos estereótipos sugeridos. Parabéns, Paulo.

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  7. Pablito, excelente conto! Me manteve preso do começo ao fim, acompanhando o passo-a-passo dessa picaretagem toda!

    Abraços, Rodrigo

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  8. Agradeço a todos os colegas, ao mestre Charles pela oportunidade e aos amigos leitores pelos gentis comentários. Escrever é duro, quando o resultado aparece é que fica compensador.

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  9. Paulo, ótimo conto! Mais um enquadramento perfeito da tua lente de alta resolução.
    Parabéns!

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  10. Belo conto. Li no Jornal da Capital e achei super interessante.
    Fiquei positivamente admirado com a capacidade do Paulo em descrever as relações de trabalho e os seus conflitos. Muito bom. Aguardo a publicação da Mais valia e outras taxas, vai ser um sucesso.

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