quarta-feira, 29 de julho de 2009

O diário do Doutor Newmann (Guilherme Behs)

20/01
Hoje fui acometido por outro desses ataques de pânico. Comentando o assunto por alto com um colega, este me sugeriu que escrevesse tais experiências em um diário. Gostei da idéia, mas antes que pudesse fazer um comentário técnico sobre o mesmo, ele me expulsou de seu consultório sob o pretexto de que precisava terminar a consulta com seu paciente, me convidando para um café mais tarde. Um café. Mal sabe ele o mal que me faz a cafeína. No caminho de volta para o trabalho o trânsito estava terrível, lembrava uma artéria com obstrução quase total, e ainda que eu tenha controlado com algum sucesso a taquicardia que se instaurou em meu peito, decidi por deixar um bilhete para meus pacientes na porta consultório e fui para casa. Após o jantar tomei um banho quente para dilatar as veias e vim me deitar. Sinto-me melhor agora que apenas relato tais acontecimentos.


23/01
Hoje evitei utilizar meu carro, fazendo uso de ônibus para ir trabalhar. Péssima decisão! Aquela gente toda amontoada no corredor do veículo lembrava uma artéria com obstrução total. E como tossem e espirram, parecem animais! Me segurei firme e tentei desviar meus pensamentos, já que seria quase impossível passar por aquela parede humana em caso de mal súbito. Enquanto eu tentava formar em minha cabeça a imagem de macieiras ao vento, minha glote foi se estreitando, o coração acelerou e à medida que eu buscava um pouco de ar para oxigenar meus pulmões e reestabelecer meus batimentos cardíacos a um nível abaixo dos de um maratonista, terminei por inalar as hordas de bactérias que impregnavam o ar do maldito coletivo.
Ao chegar ao consultório atendi a Sra. Ana, e evoluímos menos do que eu esperava e menos ainda do que a infecção que progredia sensivelmente em meus tecidos moles superiores.
Mais tarde, já debilitado, atendi o Sr. Ricardo. A amigdalite e leves pontadas no córtex frontal não me permitiram concentrar na terapia. Que enigma este paciente! Há algumas sessões fracasso na tentativa de tirar algo dele, e hoje, não fossem as péssimas condições em que eu me encontrava, acredito que poderia ter conseguido. Ainda assim, saí com a sutil suspeita de que possa estar doente, uma vez que passou a consulta toda conversando comigo e com sua esposa, sendo que apenas eu e ele encontrávamos-nos na sala. Investigar. Sinto-me febril. Medir temperatura ao chegar em casa.


27/01
As consultas de hoje foram reveladoras. Retornando ao consultório após um rápido lanche para combater a hipoglicemia, flagrei o Sr. Ricardo mediando um debate entre um hindu e uma bispa na minha sala de espera. Agora preciso investigar o quanto do que me contou sobre sua vida é real e o quanto é doença. Na volta pra casa senti um desconforto nas costas e me veio a divertida idéia de eu sofrer do mesmo mal que o paciente, o que faria com que o Sr. Ricardo, a exemplo de sua esposa imaginária, não existisse. Apenas a título de diversão pedi a meu vizinho que telefonasse para ele, certificando-me, enquanto a conversa se desenrolava, de que ambos eram reais, exceto se os dois fossem alucinações. Investigar. Aproveitei o ensejo do telefonema e perguntei se havia tomado a medicação, o que me respondeu afirmativamente.


28/02
Hoje o dia foi duro. Descobri que dona Ana chama-se, de fato, Cláudia, e devia ter recebido alta fazem seis meses. Devo ter trocado as fichas ano passado. Aquelas malditas pedras nos rins não me deixavam fazer nada direito. O Sr. Ricardo por sua vez invadiu o consultório desesperado com o sumiço de sua esposa. A medicação está funcionando! Tentei explicar sutilmente o que se passa com ele, mas agora desconfia que sua mulher alugou um quarto em minha casa.


07/03
Hoje atendi o Sr. Cauduro. Ele está tendo enorme dificuldade para superar sua claustrofobia e relata tardes de verdadeiro pavor enquanto desempenha sua função de ascensorista. Contou, às lágrimas, que por vezes implora que alguns passageiros fiquem com ele por mais uns andares, o que está quase custando seu emprego. Desconfortável com seu relato, vesti meu casaco e fui pra casa, acometido de uma tosse terrível.
Nos últimos dias tenho vivenciado a sensação de estar sendo observado. Eu poderia jurar que ontem, enquanto preparava compressas para aliviar o estranho inchaço que se instalou nas minhas pernas, vi uma mulher passando pela sala. Resolvi começar a fazer caminhadas para aliviar as tensões e o estresse a que ando me submetendo.


09/03
Estava me sentindo bem com as caminhadas dos últimos dois dias. Hoje tive a impressão de que passei pela mesma mulher que vira em minha sala outro dia e quando fui me virar para abordá-la, torci o pé, o que me obrigou a voltar pra casa. À noite, vi nitidamente a tal mulher passando pelo quarto e me fazendo sinal de positivo. Estou apavorado, devo estar muito doente.


20/03
A maldita assombração não me deixa mais em paz. Estou até me acostumando com ela. Ontem perguntou se eu queria chá. Hoje chamei ao consultório o Sr. Ricardo. Está inconsolável. Aceita, com reservas, que sua esposa é fruto do seu distúrbio. Ainda assim, diz que a ama profundamente e ameaça parar com a medicação para tê-la de volta. Aproveitando o assunto pedi a ele que a descrevesse. Minhas suspeitas se confirmaram. Trata-se da alucinação que anda perturbando minha vida. Chama-se, segundo ele, Letícia. Certamente um caso sem precedentes. Investigar.


27/03
Cancelei todas as consultas e passei o dia estudando, mas não encontrei nos registros históricos nenhum caso de contratransferência como esse. Li livros e mais livros, busquei em artigos, pesquisei na internet e nada. Letícia anotava tudo ao meu lado e até fazia sugestões de pesquisa. Como é prestativa! Ainda que eu anseie pela cura para este estranho problema, devo confessar que é muito bom ter alguém como ela por perto.


05/04
Hoje o Sr. Ricardo permaneceu comigo por mais de uma hora. Mal sabia ele que eu podia enxergar Letícia dentro da sala. Tentei ignorá-la mas, astuta que é, passou a dar petelecos em minhas orelhas e fazer caretas e poses na mesa de centro. Como é brincalhona! Perguntei a ele sobre suas lembranças, e enquanto ele me relatava histórias que viveram juntos, o ciúme corroía minhas veias. Ainda sabendo que tal sentimento é uma completa loucura, não pude controlá-lo. Acabei por confessar que andava vendo Letícia e estava perdidamente apaixonado por ela. Furioso, o Sr. Ricardo me empurrou no chão, pegou de minha mesa uma escultura da torre Eiffel e veio em minha direção. Calafrios correram pelo meu corpo, eu sei bem do que gente doida é capaz. Antevi a peça encravada em meus miolos, mas para minha surpresa, o Sr. Ricardo ergueu o braço, atirando a escultura contra o armário de remédios. Que idiota!- pensei. Mal sabia eu que segundos depois ele iria enfiar em minha boca, à força, os mesmos compridos que eu lhe prescrevera semanas atrás. Estou arrasado!


06/04
Fazendo uma profunda reflexão decidi dar voz ao bom senso. Retirei todas esculturas da sala e novamente chamei o Sr. Ricardo ao consultório. Argumentei que a medicação é fundamental para seu tratamento. Envergonhado, ele concordou em buscar a cura, sob a exigência de que eu também me trate. Não quer que eu fique com Letícia definitivamente. Rindo, lhe respondi que já o estava fazendo, mas ele não acreditou. Por fim, combinamos de nos encontrar diariamente para que ambos tomemos a medicação um na frente do outro, podendo conferir também embaixo da língua três vezes por semana.


15/05
Ricardo é um sujeito legal, e apesar da fossa em que estamos por ter perdido Letícia, nossos almoços têm sido bem agradáveis e o tratamento é um sucesso para ambos. Hoje convidei-o para ir a um bar. O local estava cheio, o balcão parecia uma artéria com obstrução total. Aquela gente fumava, ria e tossia, impregnando o ambiente como animais! Escolhemos uma mesa mais ao fundo e a noite foi bastante tranqüila, exceto pelo ataque de pânico que tive de controlar com respiração cachorrinho e por um garçom que falava e ria o tempo todo sozinho. Corroídos pelo ciúme o levamos para o banheiro, e após uma breve luta, conseguimos enfiar-lhe os comprimidos goela abaixo.


Guilherme Behs.

6 comentários:

  1. A loucura, os estados alterados, as alucinações, as esquizofrenias e outros sintomas dos distúrbios mentais sempre foram tema da literatura, desde os gregos a Dyonélio Machado, Erico Verissimo, Moacyr Scliar e outros autores.

    Guilherme Behs acrescenta ao tema um impágavel humor.

    Charles Kiefer

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  2. Achei muito interessante. Outro conto excelente. Possui um estilo próprio de narrar e com um muito bom, como destacou o Charles. A questão é que cada conto lido, faz crescer a curiosidade e a vontade de ler mais.

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  3. Guilherme, achei ótimo o teu conto. Dei boas risadas, e este foi o primeiro conto teu que li... Espero poder curtir (ler ou escutar em aula) mais alguns.... Luiza

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  4. OI, Gui. Acabei de ler o teu conto. Gostei muito. Cômico e trágico. Ótima leitura. Parabéns. Maria Helena Ohlson

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  5. Até que enfim te li num blog! Agora só falta o livro, um beijo, ana

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