domingo, 7 de junho de 2009

Em que coincidentemente se reincide (Leila de Souza Teixeira)

você está coberta por um lençol verde encolhida no canto da sacada de um apartamento que não lembra de quem é mas sabe ser no sétimo andar de um edifício com a fachada feita de pastilhas azul-piscina. enquanto de olhos fechados passa a mão vagarosamente sobre as pastilhas imagina a piscina da casa da sua mãe onde você nada todo sábado de manhã chapada. e chapada agora sai do canto para sentir melhor o vento quente que sacode a grade da sacada do apartamento que você tenta tenta tenta lembrar de quem é mas não consegue pois lhe vem na memória apenas (porém nítido) o sete vermelho pintado na parede branca nítido ali “7” quando a porta do elevador abriu. aliás na memória também nítida a recordação de que no exato momento em que viu o sete pensou no filme em as pessoas trabalham no sétimo e meio andar porque antes do momento exato em que viu o sete você já se sentia como as pessoas do filme sufocadas por um meio pé direito e naquele exato momento riu como ri agora da nítida coincidência.

você resolve chegar bem perto da grade para sentir melhor o vento denso quente forte que de tão denso parece água e que espanta o sufocamento trazido por todas as lembranças do momento exato em que viu o sete vermelho. enquanto de olhos fechados encosta cintura para baixo na grade cintura para cima no vento imagina a água quente da piscina da casa de sua mãe onde você nada todo sábado de manhã bêbada. e bêbada agora desenrola desenrola desenrola o lençol verde que envolvia seu corpo pois não vê mais necessidade de estar enrolada em um lençol verde (ou a cor que fosse) já que essa coisa do vento mentindo ser água quente acabou com o frio que há bem pouco você sentia. aliás há bem pouco nesta manhã morna de verão você estranhamente pediu algo para se cobrir ao dono do apartamento que você mais estranhamente ainda não consegue identificar quem é nem na sua lembrança de ele parecendo não estranhar nada lhe dar um lençol verde antes de sair pela porta dizendo que iria comprar mais água e cigarro.

você cogita entrar na sala para ligar o rádio que há bem pouco enxergou através do vidro da porta da sacada porque neste exato momento qualquer voz mesmo que a voz de alguém que não esteja onde você está seria uma boa companhia. enquanto de olhos fechados gira o corpo em direção a porta de vidro imagina o silêncio embaixo da água da piscina da casa de sua mãe onde você nada todo sábado de manhã calada. e calada agora caminha até a porta de vidro mas a visão do sétimo andar e meio lhe oprime lhe oprime lhe oprime e você decide continuar em silêncio do lado de fora ouvindo só o som das coisas que o vento quente denso forte carrega para algum lugar que você não sabe qual. aliás saber para onde vão todas as coisas (e todas as pessoas) no sábado de manhã sempre mergulhou você em pensamentos porque você nunca conseguiu enxergar o motivo de ser convidada a visitar uma pessoa que vai embora quando você chega como se apesar do convite que ela própria fez não quisesse estar em sua companhia.

você escuta o barulho do que talvez seja uma sacola de plástico fundir-se com o barulho do que certamente é o sacolejo violento do lençol verde que segura com a mão desde que o vento quente denso forte tirou de você também o frio. enquanto de olhos fechados caminha para trás até encostar o corpo de novo na grade imagina os sons das coisas voando que se fundem violentamente quebrando o silêncio de vozes na piscina da casa de sua mãe onde você nada todo sábado de manhã confusa. e confusa agora observa na porta de vidro o reflexo das coisas que voam passando por trás de você como o reflexo ondulado da bandeja que sua mãe segura com as mãos passando por trás de você sentada no trampolim. aliás o único lugar no qual você encontra sua mãe em um sábado de manhã quando a visita é no reflexo ondulado da água da piscina quando ela larga larga larga a bandeja amarga do suco ao seu lado antes de sair (e voltar talvez quando você não esteja mais lá) pelo portão dizendo que vai comprar mais suco e cigarro.

você contempla a dança do lençol verde por cima da coreografia de folhas de árvores trazidas da rua para cirandar freneticamente ao lado dos seus pés descalços no chão da sacada. enquanto de olhos fechados permite que o lençol verde denso forte gire de volta para a rua o seu corpo encostado na grade imagina seu pequeno corpinho girando na água quente da piscina da casa de sua mãe onde você nada todo sábado de manhã sedenta. e sedenta agora entre os vãos dos galhos frenéticos das árvores que dançam por cima da rua procura o dono do apartamento que talvez assim de cima você consiga identificar e que seria melhor que chegasse logo porque esta espera parece impacientar seu pé esquerdo que você encara ele pé esquerdo batendo freneticamente no chão da sacada. aliás você perdeu perdeu perdeu as contas de quantas vezes ficou encarando seu pequeno impaciente pezinho esquerdo batendo no trampolim durante o tempo em que chamava platéia (que dizia que ia logo mas nunca ia) para suas cambalhotas.

você evita fazer qualquer resistência quando o vento forte denso leva também o lençol verde que lhe cobria entre donos de apartamento sacolas de supermercado sensações de frio e folhas de árvores pois “ir embora” parece ser a ordem natural das coisas que lhe cercam aos sábados de manhã. enquanto de olhos fechados sente o pano suavemente se desprender dos seus dedos imagina as folhas verdes que desprendem das árvores plantadas ao redor da piscina da casa de sua mãe onde você nada todo sábado de manhã sozinha. e sozinha agora observa as nuvens mentindo que o prédio em frente se mexe e percebe que tudo se move se move se move ao seu redor como tudo se movia em torno de você (criança plantada de costas no trampolim) durante o tempo em que esperava sua mãe chegar para ver a cambalhota. aliás se movem mesmo o lençol verde que voa longe mais sacolas de supermercado as nuvens mentirosas mais folhas de árvores tudo salvo você nesta sacada esperando por suco água e cigarro.

você percebe que se as nuvens mentem que o prédio em frente se mexe devem mentir que o edifício com a fachada feita de pastilhas azul-piscina que tem um apartamento sabe-se lá de quem no qual você está se move também. enquanto com os olhos abertos senta na grade de costas para a rua imagina todas as coisas que giravam ao redor do trampolim da piscina da casa da sua mãe onde você esperava por horas todo sábado de manhã cansada. e cansada agora inclina inclina inclina bem o corpo para trás para ver se realmente as nuvens mentem que o edifício em que está se move mas logo pondera que talvez em um sábado de manhã como este as nuvens não mintam e o edifício realmente se mova. aliás em um sábado de manhã como este (como todos os outros) talvez ninguém minta nada e as pastilhas azuis da piscina a água quente densa forte o sétimo andar vermelho de meio pé direito tudo se mova em torno de você parada de costas no trampolim durante o tempo em que espera a platéia chegar para ver a cambalhota.

você percebe que se as nuvens mentem que o prédio em frente se mexe devem mentir que o vento forte denso leva também a dança do lençol verde por cima da coreografia de folhas de árvores trazidas da rua com o barulho do que certamente é o sacolejo violento do rádio que há bem pouco enxergou através do vidro forte que de tão denso parece água e que espanta o sufocamento trazido por todas as lembranças que não lembra de quem é mas sabe ser no sétimo andar de um edifício com a fachada feita de pastilhas azul-piscina.

11 comentários:

  1. O que torna um escritor diferente, em meio a tantos escritores que tanto escrevem, é o manejo linguístico, sintático e semântico. Contar uma história todos contamos, desde Homero. Contá-la causando estranhamento, era o que nos exigiam os formalistas russos para merecermos o epíteto de artistas. Leila faz isso, e só por isso já é diferente. Leila, como poucos, sabe manejar o idioma para causar estranhos efeitos artísticos.

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  2. Leila,
    Teu texto dá vertigem, mas quem disse que a literatura deve estar sempre no prumo?
    Gostei muito do conto e do título, perfeito pro texto que ele nomeia.
    beijos e parabéns

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  3. Leila,
    O teu texto me causa uma ânsia, uma angústia, um desejo de oxigênio. Uma eletrocussão frase a frase. É uma sequência de efeitos especiais.
    Muito bom!

    Parabéns!
    César Azevedo

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  4. Leila,
    teu texto nos deixa, leitores maravilhados e na vertigem, nessa situação do sete e meio andar: realidade? fantasia? vai se matar? está chapada? não aparece alguém para conversar com ela? quem é ela?
    Parabéns pela sensibilidade e competência em colocar tudo isso em palavras. Maravilhoso texto.
    Leila? Lê-la!!!
    Um abraço do Juarez.

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  5. roda viva e babel, tudo contado do jeito leiliana de dizer as coisas.

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Segundo Laurinha Nassif, em seu "e TIQUETA - regras de etiqueta eletrônica", você pode responder os posts carinhosos que recebe pessoalmente, ou por escrito no próprio blog. Prefiro por escrito no próprio blog, para registrar publicamente como fiquei feliz com as palavras de todos vocês.
    Agora falo sério: Charles, foi você quem me ensinou a trabalhar e retrabalhar a palavra, e, portanto, a característica minha que ressalta no post acima é um resultado da Oficina (escrevi esse conto em 2005, mas só ficou pronto em 2008; nesses 3 anos, houve seis meses nos quais fiquei apenas trabalhando ele).

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  8. Muito bom. Super interessante a forma peculiar da Leila. Há um estilo próprio no narrar, inconfundível.
    Parabéns e nem precisa agradecer, pois quem deve ficar grato são os leitores pelo texto trabalhado e retrabalhado como tu própria referes.

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  9. Leila, além de ser uma ótima amiga, tu és uma grande escritora. Teu trabalho de formiguinha, de mudar aos poucos, moldar as palavras uma a uma, é admirável.

    E o texto, belíssimo!

    Beijo

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  10. Esse foi o primeiro texto da Leila que eu li, ou melhor, ouvi pois foi ela quem leu... não desmerecendo os outros contos dela, esse é o que eu mais gosto... pereço entrar em um universo paralelo de sensações, quase como num sonho, porém mais forte.
    Muito bom, Leilinha!
    Bjocas.

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