segunda-feira, 15 de junho de 2009

A civilização ocidental (Ricardo Silveira)

De início pensei em não ir, mas no horário e local marcado eu estava lá. Ele chegou antes de mim. Na sua frente um campari e uma garrafinha de água mineral. Tinha um olhar muito sério. Não parecia irritado. Eu estaria se fosse ele.

— Boa tarde, senhor Campelo.

— Boa tarde. Sente-se.

Ele me ofereceu a cadeira e esperou eu me acomodar para sentar-se. Vestia-se com classe. Calça de lã, camisa salmão, um colete xadrez e uma parca. Eu vinha do meu trabalho e vestia calça jeans, camisa e um casaco de couro marrom cujos bolsos internos estavam rasgados.

— O senhor pediu que eu viesse. Aqui estou eu, seu Campelo.

— É... Eu pedi sim. Bebe alguma coisa?

— Um carioca.

— Pensei que estivesse com vontade de beber uma bebida mais forte.

— O senhor tem razão. Eu quero um café expresso.

O comentário a respeito da bebida já era algum tipo de alfinetada? Ele estava surpreendentemente calmo.

— Pedi que viesse, pois acho que devemos conversar, senhor... Como é mesmo seu nome?

— Heitor.

— Heitor, tu és o amante de minha esposa, não?

— O que o senhor quer, seu Campelo? Não me chamou para este tipo de conversa. Eu não sou nenhum idiota e sei que o senhor tem mais o que fazer a esta hora.

— Claro que sabe. É neste horário que vocês se encontram, não? A propósito, vocês usam camisinha?

— Por favor, seu Campelo. Se a conversa continuar neste tom...

— Tudo bem. Mudemos o tom. Eu lhe pedi que viesse, pois quero conhecê-lo e fazer algumas perguntas.

— Antes do senhor perguntar, gostaria de lhe dizer... Bem, eu e a Camila... Nós nos amamos.

— Sim, ela me disse a mesma coisa.

— E quando a conheci eu não sabia que era casada. Ela não usa aliança.

— Ela não usa quando está sozinha. Comigo, ela sempre usou aliança.

Ele pegou o anel que estava em um dos bolsos do casaco e me estendeu.

— Veja, dê uma olhada.

Olhei de forma rápida e logo lhe entreguei.

— Não, observe com mais calma. Na parte interna da aliança está meu nome e a data de nosso casamento.

Olhei novamente e coloquei-a sobre a mesa. O garçom trouxe meu café.

— Isto aconteceu há sete anos. Eu sabia que não iria durar muito, mas na minha idade, um casamento com uma mulher vinte e oito anos mais nova é como renascer...

— Olha, seu Campelo. Eu vim até aqui afirmar para o senhor que eu amo muito a Camila. Não tinha a intenção de constrangê-lo e quando fiquei sabendo que ela era casada eu já estava apaixonado. Vim para dizer também que tomei uma decisão: ficarei com Camila apenas se houver separação. Não serei mais o amante. Se ela não me quiser e preferir ficar com o senhor não a verei nunca mais.

Seu Campelo deu um sorriso amarelo e bateu palmas com ironia.

— Muito bem, senhor Heitor. Belo discurso! E decidiu isto só agora, quando recebeu meu telefonema? Vocês estão juntos há oito meses!

— Bem, seu Campelo. O que eu tinha pra dizer está dito. A decisão agora é da Camila. Eu aceitarei o que ela decidir.

— E o que tu achas que ela irá decidir?

— Pergunte a ela.

— Eu já perguntei a ela. O que tu achas que ela decidiu?

— Bem... Não sei...

— Vamos, diga. Tu achas que ela vai pedir a separação? Hein?

— Eu realmente não sei. Não chegamos a conversar sobre isso. Eu fui surpreendido com seu telefonema e decidi sobre o que lhe falei no caminho para cá, mas é a minha decisão. E é definitiva.

— Tens idéia de como eu fiquei sabendo do caso de vocês?

Comecei a achar aquela conversa estranha. Seu Campelo agora tinha o rosto vermelho. Demonstrava visível irritação. Alguém neste mundo realmente me odiava.

— Olha, não estou mais interessado nesta conversa, seu Campelo. O senhor está se alterando e não vejo motivos para continuarmos.

— Eu não precisei contratar detetives. Tenho pessoas de minha confiança que fazem este tipo de serviço.

— O senhor andou me espionando?

— Não, eu não diria isso. Eu apenas estava cuidando do que é meu. Sei de cada passo de vocês dois nas últimas duas semanas, e sabe por que tu ainda caminhas e atende ao telefone? Por que eu queria ter esta conversa contigo.

— Quem o senhor pensa que é? Deus?

Ele deu uma gargalhada que foi ouvida por quase toda a cafeteria. Olhei para as mesas e, ao fundo, havia um homem de terno preto e óculos escuros que aparentava ler um jornal. Seu Campelo lentamente foi se restabelecendo da risada histriônica para então assumir uma carranca. Passou a falar cuspindo um pouco da saliva que juntou no canto dos lábios, como pequeníssimas porções de merengue.

— Deus? Não, eu não sou Deus. Eu sou corrupto! Entendeu? Corrupto! Iguais a mim está cheio por aí, mas eu sou um dos melhores, ou um dos piores. Fica a teu critério.

— Eu já ouvi falar de tua fama.

— Então por que se envolveu com minha esposa?

— Era isto que o senhor queria saber? Foi para isto que me chamou?

— Sinceramente? Sim. Queria conhecer o estúpido que teve a pretensão de me enfiar um par de guampas e ainda por cima não recuar diante de um convite para uma conversa comigo.

— Não tinha pensado por este ponto de vista. Achei que teríamos uma conversa civilizada e...

— Civilizada? Meu Deus! Tu és mais burro do que eu imaginava. A que tipo de civilização tu te referes?

— A civilização ocidental — falei meio gaguejando, sem muita convicção.

— Civilização ocidental?

Seu Campelo pegou com força um dos meus braços e o sacudiu.

— Olhe para os lados, seu idiota! Veja!

Olhei para a praça de alimentação e não notei nada de muito suspeito além do homem de preto. O shopping estava vazio àquela hora.

— Estás vendo? Não? Claro que não estás vendo. Tu não enxergas. Não percebes que te espreitam. Que o pouco que te resta de civilização é este cafezinho... E não tiveste nem a coragem de pedir uma bebida decente.

— Eu achei que...

— Cagalhão!

Ficamos em silêncio por alguns instantes. Tempo suficiente de eu terminar meu café e ele seu campari.

— O senhor quer me dizer mais alguma coisa?

— Não, pode cair fora. Anda! Some da minha frente!

Levantei-me, mas ao girar sobre a cadeira lembrei de Camila.

— Onde ela está, seu Campelo?

Ele desfez a face rubra de ódio e empalideceu.

— Ela está em um lugar confortável.

— O senhor jura pra mim que ela vai ficar bem?

Juramentos não valem nada, os do seu Campelo menos ainda, mas ele não me disse coisa alguma, apenas estendeu um braço e chamou a garçonete.

No caminho para o estacionamento tentei diversas vezes contatar Camila pelo celular. Inútil. Decidi ficar mais um tempo. No shopping há um guichê da rodoviária e comprei uma passagem para Montevidéu. Tinha pouco tempo e preferi não sair do shopping até a hora da partida do ônibus. Pensei em Camila. Tudo está acabado pra nós, infelizmente. Retornei à cafeteria. Seu Campelo não estava mais lá, tampouco o homem vestido de preto. Pedi uma dose de vinho do Porto. Tive dificuldade para beber, pois minhas mãos trêmulas não me obedeciam. Acho que vou ter tempo pra me recuperar no Uruguai... Meu Deus! Como eu estou cansado...

12 comentários:

  1. O jeito e a ginga narrativa de Ricardo Silveira lembram Rubem Fonseca. Mas o mundo construído por Silveira é, aparentemente, menos violento. Ou, linguisticamente menos violento.

    Gosto muito dessa realidade melancólica e não completamente alienada do ficcionista gaúcho.

    Não costumo errar das minhas previsões literárias: Ricardo Silveira ainda será um grande nome da literatura brasileira. Basta que ele publique seu primeiro livro para que isso aconteça.

    Charles Kiefer

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  2. "Não costumo errar nas minhas previsões literárias".

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  3. Um livro com contos nesse nível é o que de certa forma sempre busco para ler. Baita conto, Ricardo.

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  4. Estou para ir a Montevidéo, bom seria encontrar o Heitor por lá. Deve ainda estar bem amarelado...
    Do fã.

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  5. Este comentário foi removido pelo autor.

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  6. Diálogos típicos dos textos do Ricardo. São tão bons e interessantes que às vezes dá vontade da gente se meter na conversa dos personagens.
    Parabéns!
    César Azevedo

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  7. É verossímil, trágico, irônico, cômico. Excelente. Também gostei muito. Não conhecia o texto do Ricardo e fiquei com ótima impressão e com vontade de ler mais coisas. Que venha o livro para saciar a curiosidade.
    Parábens ao Ricardo e ao Charles por mais uma escolha na mosca.

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  8. Muito bom ler um conto teu novamente, Ricardo, o diálogo no ponto, excelente como todos os outros.

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  9. Tenho a mesma sensação do César: vontade de me meter na conversa, de tão vivo que é o diálogo construído pelo Ricardo. Foi muito bom reencontrar esse conto.
    Um abraço, Ricardo, e parabéns.

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  10. Lembro quando o Ricardo leu esse conto em aula e, como em outros, fiquei com aquela vontade de continuar a leitura. Os diálogos são muito bem feitos, a leitura flui.
    Parabéns!

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