Não houve tempo para nada. Para um grito ou uma expressão de espanto. Quando se deu conta, já estava no chão, a todo o comprimento, os cabelos libertos da touca que os domava, a roupa amarfanhada, um chinelo escada acima, outro se equilibrando na ponta do pé. Entre surpresa e aturdida. E na boca aquele gosto invasivo de saliva alheia. Não sabia ao certo se batera com a cabeça e tinha ficado meio inconsciente. O fato é que não havia mais ninguém ali. Somente latões de lixo, balde , esfregão. O que desabara sobre ela tinha a força de um vento de verão tardio, morno e intenso, um desses ventos capazes de soprar desatinos na cabeça dos viventes. Envolveu-a num inesperado misto de violência e delicadeza, buscando-lhe a boca com a boca, enquanto as mãos faziam o seu trabalho de busca e sujeição.
Foi com esforço que se recompôs, o corpo não lhe obedecia, as pernas desenhavam círculos no chão, recusando a postura vertical, a cabeça parecia esvaziada e poderia até pensar ter sofrido uma alucinação devido ao calor, não fosse aquele gosto persistente de saliva. Inúmeras vezes lavara a boca; em vão. O gosto era interminável; nem bom nem mau, estrangeiro. Era sábado, no prédio havia um mínimo de funcionários, como de costume em finais de semana; ninguém aparecera durante o seu período de atordoamento. Melhor assim. Sabia que nenhum daqueles empregados seria capaz de ato semelhante. Viviam todos no mesmo código. Se um deles a quisesse, por Deus, já lhe teria dito e a coisa teria rolado ou não, como tudo na vida. Não era dada a muitas conjeturas; quedava-se, por isso, estupefata. “Quem, nesse prédio de gente rica, podia me querer, logo eu tão diferente de todos eles? Só se fosse..., mas não, bobagem,será possível?, um senhor tão distinto.” O fato é que era objeto do desejo secreto de alguém, um desejo violento porque ansioso e tímido, deliciosamente desajeitado. O corpo não lhe doía, além daquele mínimo que se confunde com prazer. Sofrera um atentado à mesmice da sua vida. Como se num surrado baralho de cartas marcadas, surgisse, inexplicavelmente, uma carta extra: um coringa que talvez pudesse mudar a sua vida.
Para o doutor Nogueira e Silva,nada saíra como o que tinha sido planejado, aliás como costuma acontecer. A ideia era somente pegá-la de surpresa e dar-lhe um beijo na boca, e depois safar-se. Fugir para sempre ou por bastante tempo. Viver daquela lembrança tanto quanto fosse possível. Mudar de cidade, ir morar na praia, ficar uns tempos na casa do irmão. Algo assim meio infantil meio maroto; esconder-se depois de uma travessura e só voltar quando as coisas estão sossegadas. Mas ela, desafortunadamente, pelo inesperado da situação,escorregara no chão úmido e rolara abraçada por ele no piso gelado, desencadeando um desejo irrenunciável. Fato inconteste é que há muito sonhava com ela, dormindo e acordado. Para dizer a verdade, desde que a vira pela primeira vez, limpando as escadas do prédio. Ele, a quem jamais interessou saber quem eram os funcionários do edifício ou o que faziam ou deixavam de fazer, viu-se oscilar, corpo e mente, ante aquela visão. Como era possível uma criatura exercer sobre ele semelhante tirania, era-lhe um mistério. Talvez por ser leve e graciosa ao executar atividades tão servis. No seu entender até brutais para um físico tão delicado. Devia ser nova no ofício, logo percebera, o corpo flutuava dentro do uniforme, os gestos ainda não eram bruscos e automáticos como fatalmente se tornariam com o passar do tempo.Como entendido em arte, logo a classificara: era uma bailarina que dançava em inusitado palco para ninguém, ou melhor, somente para ele que havia descoberto o segredo. Sabia que já a conhecia de algum lugar e isto o intrigou por um bom tempo. Aquela sensação de “déjà vu” o invadia continuamente, logo ele que execrava esse tipo de percepção por achá-la própria de mentes fantasiosas . Certo dia , folheando ao acaso um livro da biblioteca , localizou-a. O sobressalto do reconhecimento, como se uma cortina deslizasse para a entrada da luz.Era ela, sem dúvida, a figura mais impressionante pintada por Degas, “A primeira bailarina”, do famoso quadro do pintor francês. Essa tela sempre o fascinara pela mobilidade, era um quadro vivo, a bailarina parece que voa como se quisesse escapar para a vida, atirar-se nos braços do público. E lograra mesmo fazê-lo, pensava ele um tanto assombrado,pagando o alto preço do anonimato e da servidão. As roupas grosseiras, os chinelos de borracha e a odiosa touca nada lhe roubavam, ao contrário, acentuavam ainda mais a beleza por conta do violento contraste. Fechou o livro com cuidado, antes arrancando a página que retratava a bailarina. Pensou em colocar moldura, pendurá-la na parede ; estaria assim sempre à vista. Mudou de idéia, não a queria para os olhos de qualquer um, resolveu carregá-la junto ao corpo: algo assim como um talismã, um porta-fortuna contra a insipidez em que se transformara a vida. Para tanto, executou elaborado plano: localizou um tatuador artista, de outra cidade bem distante naturalmente, que reproduziu a bailarina com maestria na região abaixo do mamilo esquerdo,onde o coração a fazia balançar.Pensava, entre divertido e maravilhado, que ela jamais poderia escapulir, estava nele para sempre, ainda que não pudesse suspeitar.
Nos primeiros tempos em que se conheceram , fingira ignorá-la,não mais que uma peça na engrenagem de limpeza do prédio, espiando-a, no entanto, freneticamente, pelo canto dos olhos. Ela, humilde, face abaixada, inclinava-se ainda mais à sua passagem para esconder os olhos e o embaraço. Tempos depois, um aceno comedido, de cabeça. E, mais tarde, um “Bom dia” , mais resmungado que dito. E,finalmente, um “ Bom dia, Teresa”.” Bom dia, doutor ”. Era o máximo de intimidade que se permitia.Descobrira na folha de pagamento do edifício que ela se chamava Teresinha, o que lhe causou contrariedade.Uma beleza maiúscula não admitia tal designação. Passou a nomeá-la Teresa, o que lhe garantiu a atenção da moça, surpresa duplamente: era nomeada e rebatizada. O dia só começava para ele quando, saindo para a caminhada matinal, a encontrava, sempre entregue à sua humilhante ocupação. Era o seu momento mais alto, um calor prazeroso se irradiava por todo o corpo e o mantinha assim, acima de todas as pequenas misérias da rotina e da idade. O respeitoso e esperado “bom dia, doutor” ficava dançando nos seus ouvidos, letra e melodia, indo e voltando.
Mas agora,sem querer, estragara tudo. Perdera o controle, logo ele, exemplo de cidadão, homem de bem, curador da Escola de Belas Artes. Chegara perto demais, era isso, aquele perto que não admite retirada. Caíra no torvelinho. E assim, perdera o que não queria perder. Não sabia o que a moça sabia; ou do que desconfiava. Desabara sobre ela sem dizer palavra. E se estivesse rindo dele, da sua pretensão, do seu desatino? E se todos no edifício já soubessem do ocorrido e estivessem planejando uma ação contra ele, atentado ao pudor, abuso, quem sabe até suspeita de senilidade? Que horror! E ainda mais, se sabendo que tinha sido ele, tendo certeza disso, ela já tivesse contado para o marido, amante, companheiro ou sei lá o quê? Poderia ser alvo de vingança, e bem merecida no seu entender. Sim, pois era inimaginável que ela não tivesse alguém; essa era situação para gente como ele, fruto ressequido à espera da queda. Sentia que adentrava terreno movediço, novidade na sua vida. Como agir para manter-se na superfície? Como passar por ela, novamente, e colher aquele mínimo de atenção , “Bom dia, doutor!”, sem ser paralisado pelo medo ou pela vergonha ou até, quem sabe, sem poder reprimir o desejo todo novo de repetir a loucura que tinha vivido com ela. Surpreendia em si mesmo o emergir de um desconhecido, de um outro que estivera sempre à espera.
Naquele dia, só voltou tarde da noite para casa, não queria correr o risco de revê-la ou de ouvir conversas de outros empregados ou moradores.Sabe-se lá o que realmente tinha acontecido a Teresa e o que ela dissera; ou calara. Por dois dias inteiros, não saiu do apartamento.Reclusão. Compasso de espera.Apenas escutava, ouvido rente à porta. Distinguia os sons habituais, risadas dos vizinhos, cumprimentos e até eventuais xingações entre marido e mulher. Isso, em outra situação, poderia ser puro divertimento para ele: um mundo se abria nesse seu novo posto de escuta. Mas um mundo que não o interessava mais,um mundo passivo; queria ser ator, ator principal, nunca é tarde. Conseguia inclusive apreender , ao longe, o roçar da vassoura no chão, a abertura dos sacos de lixo, o ritmado baque do esfregão contra o piso. Todavia não podia saber se era ela, a sua bailarina, a agente de tais ruídos. Teresa trabalhava somente na área de serviço, separada do prédio principal por pesada porta de vaivém, a porta corta-fogo: os sons chegavam, por essa razão, abafados, quase indistintos.
Aqueles dois dias de exílio voluntário, privado das caminhadas e do encontro com Teresa, lhe oprimiam o peito. Diariamente saía do apartamento à mesma hora, sem se desviar jamais do caminho habitual, aliás o menos provável para um morador. Utilizava sempre a área de serviço, onde se localizavam as escadas, os latões de lixo... e Teresa. Era uma doce disciplina que se impunha . Mas devia justificar-se continuamente perante vizinhos e funcionários, surpresos com a recusa ao conforto dos elevadores, logo ele um senhor de certa idade,dizendo que o fazia somente pelo exercício físico. “Doutor, espere um minutinho que já chamo o elevador, oito andares não é brincadeira.“ Ao que ele sempre respondia: “Não se preocupem comigo, sigo conselho médico, devo caminhar o máximo possível. Subir e descer escadas é um exercício completo. ” Sem dúvida, o fazia pelo exercício, porém totalmente desligado de qualquer recomendação médica; seguia , isso sim, a sua recomendação interior, aquela que está gravada a fogo em cada um de nós. Sabia que fatalmente a encontraria em um dos andares, entregue ao seu inconsciente bailado. Era um exercício de encantamento, surpreendê-la, vê-la e ser visto por ela.
No terceiro dia, após o desvario, não aguentou mais: ressurgiu.Com capricho, preparou-se para a caminhada, abriu a porta corta-fogo que dava para as escadas e, nada mais fixo que hora de empregado humilde, lá estava ela, precisamente no seu andar. Imobilizou-se, corpo e pensamento bloqueados. O coração solto,batendo como um martelo contra a tatuagem da bailarina; suor frio, boca seca. Excepcionalmente, ela não empunhava vassoura nem arrumava saco de lixo; estava imóvel, encostada na parede, mão na cintura, olhando para a porta, como se esperasse por ele. Pela primeira vez, um olhar direto, chama e labareda. O cabelo, entre preso e solto, estava liberto da touca. As mãos, sem as luvas grosseiras .O uniforme de brim cáqui, displicentemente aberto nos primeiros e nos dois últimos botões, assemelhava-se a um casulo de onde brotasse uma borboleta.E,no pé, a prova definitiva de que ele não se enganara a seu respeito, era mesmo a bailarina do quadro, a que trazia há tanto tempo gravada no peito: no lugar do indefectível chinelo , uma sapatilha branca, diáfana, de tela finíssima, que a deixava descalça e calçada a um só tempo, pronta para a dança do amor e do desejo.
quarta-feira, 16 de dezembro de 2009
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Parabéns Zélia.
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