Chora, mano. Pode chorar. Eu sei a dor que tu sente.
E não vou dizer pra ninguém.
O medo é assim; a dor é assim: ninguém entende antes de sentir na própria carne. Essa miséria de tá amarrado sem poder fazer nada. Foi assim que eu me senti todos esses anos, apodrecendo no inferno, sem ninguém pra me consolar. E por tanto tempo, tanto tempo, que eu queria ver se tu era macho de agüentar. Mas tu já chora.
Desde pequeno a vida foi padrasta pra mim. Tu, pelo menos, tinha pai vivo pra te defender se alguém quisesse te ferrar. O Laurindo sempre ali, passando a mão na tua cabeça enquanto eu tinha que me virar do jeito que podia. Quando eu voltava do colégio, ele mal deixava eu almoçar e já me enxotava de casa. Dizia que se ele e a mãe trabalhavam, eu também tinha que fazer a minha parte. Só tu que ficava aqui dentro, na boa: vendo televisão, jogando videogame.
A mãe também tava sempre do teu lado. Era como se tu fosse o único filho que ela tinha botado no mundo, porque tu parecia com ela e eu não. Da mãe, eu não tinha nem os olhos, nem o formato do rosto, nem o cheiro, nem a cor da pele. Então ela olhava pra mim e lembrava dele, aproveitava pra dar o troco. Acho que ela sabia o que o Laurindo fazia comigo, mas tava cagando. Deixava ele me esfolar de tanto bater, depois olhava pra mim e dizia: tu é bem como o traste do Dione. Merece cada uma dessas biaba que o teu padrasto te deu. Então eu chorava, como tu tá chorando agora.
Chorava quando ele aproveitava que a mãe tinha saído e te levado junto com ela. Aí ele me chamava na cama e me amarrava bem apertado, o teu pai. Ele fazia isso comigo. Um dia eu falei tudo pra mãe, mas ela não acreditou e ainda me deu um tapa na cara. Disse que eu só tava inventando aquilo porque o Laurindo tinha me dado uma sova. Depois ainda contou tudo pra ele, que negou e me surrou ainda mais. Ameaçou de me expulsar e falou pra eu não inventar história, pra não usar aquele palavreado na casa dele – ele tava falando desse barraco aqui, que o meu pai construiu com os próprios braços e que foi onde eu nasci. A mãe, do lado dele, só perguntava onde eu tinha aprendido tudo aquilo, se tinha sido com os capangas do Tonho. Mas eu tinha aprendido tudo aquilo era com o Laurindo, mesmo.
Só quem acreditou em mim foi o Tonho. Também foi ele quem me deu trabalho quando eu precisei, porque tinha sido amigo do meu pai. E me deu a faca do Rambo, quando eu contei o que o Laurindo tinha feito comigo. Primeiro me ofereceu um berro, mas eu vi a bichinha brilhando na cintura dele e disse que preferia a matar com faca, porque eu gostava do filme do Rambo. Quando eu disse isso, ele me olhou com orgulho, como só o meu pai já tinha olhado pra mim antes. Então eu voltei pra casa e furei aquele filho da puta do teu pai quando ele tava dormindo. Eu cheguei no quarto e ele tava de bruços, dormindo só de cueca, com aquela bundinha virada pra mim, se oferecendo. Daí eu cravei o aço e o Rambo comeu ele. Mas não demorou pra mãe chegar contigo, e vocês nem pensaram duas vezes antes de me entregar pros porco. Correram daqui chorando, como nunca tinham chorado por minha causa, que nem tu tá fazendo agora.
Chora mano, pode chorar.
A mãe tá lá dentro e não vai acudir.
Ela também não me ajudou quando eu precisava. Só o Tonho que me deu a mão. Ele sempre foi um pai pra mim depois daquele dia. Quando eu fui em cana ele disse pra eu agüentar um tempo lá, enquanto a história esfriava. Disse que assim eu ia aprender a ser homem – e eu aprendi, sofrendo, sem chorar. A cadeia me mostrou que pra ficar vivo a gente tem que ser forte, mano. E agora eu sou forte, por isso o Tonho deu um jeito de me tirar de lá.
Chora, mano, pode chorar.
Mas não tem como ser diferente.
Agora eu saí da cadeia e chegou a vez de provar que eu virei homem. Não adiantou o Laurindo ter feito aquilo comigo. Eu ainda sou macho – e sujeito homem vai lá e faz justiça, não espera que os outros façam. Foi o que o Tonho disse, quando me deu essa pistola.
Tá vendo essa belezinha aqui? Essa arma é o meu ticão, que eu vou meter no teu rabo do mesmo jeito que o teu pai fez comigo, do mesmo jeito que ele fez com a mãe. Aí tu vai ver como foi que o Laurindo fudeu a nossa família.
A mãe entendeu tudo bem direitinho e agora tá lá dentro, dormindo sono ferrado.
Chora, mano. Pode chorar.
Eu não vou dizer pra ninguém.
Vou contar que tu morreu feito homem.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
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Rudiran chegou as minhas oficinas com 16 anos, lá na Casa de Cultura Mario Quintana, na década de 80.
ResponderExcluirDepois, sumiu.
Alguns anos depois voltou, participou por muito tempo do grupo das quintas à noite, ganhou o "O Primeiro Concurso CK de Contos", dinheiro e publicação da obra, e sumiu outra vez. Andou pelo Rio de Janeiro, casou, e agora retornou às oficinas.
E hoje apresentou em aula um grande conto. Que fiz questão de postar logo.
CK
Rudiran,
ResponderExcluirUm espremedor de vidas. De seus personagens sai sempre uma espécie de ayhauasca, que depois de provado nos vicia.
Parabéns,
da tua colega de oficina e fã,
Isabelle Fontrin
Parabéns.. Grande êxito na forma de contar estas histórias que descortinam o véu que cobre "a nudez forte da verdade"...
ResponderExcluirEsse conto ele não precisava nem ter assinado. É ler e já se sabe. É Rudiran na veia. Parabéns, Rudiran, mais um texto excelente.
ResponderExcluirObrigado pelos comentários, elogios. É muito importante ter o retorno de colegas de oficina e demais leitores. Aproveito para convidá-los para ler outros textos como estes no meu blog (versoespreliminares.blogspot.com)
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