quinta-feira, 7 de maio de 2009

Memorial (Monique Revillion)

O pai chegou de madrugada, daquele jeito oco e cambaleante, quando nossa mãe dizia sem dizer para que ficássemos quietos, pois de nada adiantaria a palavra sobre o hálito pesado da bebida, o olhar de vidro e sangue lanhando o espaço, sem enxergar ninguém. A mãe recolheu-se no seu canto, curvada sob o xale escuro, assumindo para si as vergonhas que antecipava, uma em cada boteco desde a cidade até nosso rancho, três léguas de caminhada, tempo de sobra para a serventia do coisa-ruim, solto desde a sexta-feira santa e andando sem destino por aí. Eu e meu irmão apenas fingíamos dormir, solidários. Ela, no outro dia, retornaria o caminho para honrar os fiados, reparar besteiras, mal entendidos, numa via-crúcis ao avesso, recuperando na teia de feminina paciência a honradez de seu homem, um amor maior que o mundo, como costumava dizer.

Ao amanhecer, porém, a rotina não nos trouxe sua facilidade, pois o dia já se esboroava com o chiado fundo do peito de nossa mãe, um lamento áspero de sopro engelhado, a mesa sem pão e sem leite, a fome esquecida em qualquer lugar. O pai havia sumido na fundura da noite, naquela hora suspensa em que todas as criaturas cedem, exaustas, à escuridão. Nossa mãe nada dizia, puxava o ar que lhe faltava, sibilante, a camisola apertada sobre o peito, os veios salientes da mão sob a pele muito clara, e sem tocá-la era fácil saber que tremia, e estava fria e úmida. De novo, profetizava algo ainda incompreensível para nossa inocência, embora há muito nos ensinasse a sentir o gosto e as cores de seus pesadelos, em confusa e sinestésica tradução.

Os vizinhos acudiram quando a tarde já ia alta, alguém com um prato de batatas, pasta de sardinhas, refeição que comemos, constrangidos, como se a comida, sua saciedade ou a virtude daqueles estranhos não nos fosse nenhum merecimento.

“O rio”, gritou a mãe de repente, angústia líquida vertida num jorro, e uma comoção respeitosa se fez entre os presentes, pois a enchente era tragédia coletiva, o rio onipresente nada poupara, descendo a serra numa fúria acintosa, carregando sementes, roças, ferramentas, o trabalho de anos transformado em lodo e bichos inchados, a podridão lembrando o lugar de cada um na ordem natural das coisas.

A mãe insistiu no pressentimento, sabia mais de nosso pai e de seus limites do que ele próprio. No leito de águas barrentas procuraram em cada curva, mas o corpo não foi localizado. Jamais curei a lembrança daquele dia, embora seja uma espécie de consolo saber que ele não resistiria ao que se sucedeu àquela enchente: a fome, a peste, a injustiça, tanta desonra e tão funda que fez nossa mãe definhar aos poucos, calada na sabedoria inútil aos novos tempos, uma profetisa fechada em si mesma, corroendo-se no círculo de ruminações e memórias, desconsiderada por um futuro onde seus presságios não teriam lugar. Talvez tenha sido melhor sumir no meio da noite, talvez melhor mergulhar tonto de cachaça, ninguém sabe o que passa na cabeça de um homem naqueles segundos de vertigem e desconsolo. Muitas vezes, sonho que o vejo, boiando com as costas à mostra em navegação incerta, a expressão tranqüila submersa no silêncio, o rio que ele adorava tornara-se algoz quando não medira sua maldade.

Hoje, se lembro de meu pai, é com a mesma água que eu o abençoo, aquela que eu buscava numa bacia para lavar seus pés antes da janta, sem questionar minha submissão posta em joelhos, satisfeita por estar próxima, plena com sua mão afagando meus cabelos. “Minha filha”, ele dizia, e era como se me batizasse frente a uma divindade amorosa, sua voz e seu olhar me conformando e dando-me saliência, o peso de seu gesto garantindo minha existência, esboço de vida potencializado naquele instante.

A enchente daquele ano virou história e na cidade ergueu-se um pequeno memorial ao acontecido, fotos aéreas, depoimentos, números que nada dizem do drama de tantos e sei que a morte de meu pai não faz parte da estatística. O rio também não é mais o mesmo, a força subjugada por barragens, assoreamentos, dragas, agora um curso de água estéril e traído na sua natureza de turbulência e vida. Olho com atenção as fotografias, às vezes reconheço um ou outro conhecido, mas há uma foto que me comove especialmente. Nela, minha mãe aparece com a expressão que adquiriu depois daquele dia. Como numa máscara, seus traços não haviam mudado, mas virado pedra. Ela olha diretamente para a câmera, abraça a mim e a meu irmão como se temesse o bote de uma fera, e seu corpo, que nos parecia fortaleza, é frágil e comovente. Na cena, há ainda uma pequena boneca de pano presa sob meu braço, algo que somente eu reconheço na imagem desgastada pelo tempo. A mesma boneca que joguei no rio, triste por perder a única coisa que afirmava a minha infância, com a ordem de que encontrasse nosso pai, acreditando que ela o traria de volta. Neste momento, consigo voltar àqueles dias, quando antes de dormir fechava os olhos a imaginar o pai, feliz, encontrando o brinquedo, reconhecendo ali um sinal de amor e talvez de perdão, sentimento que acrescentei ao gesto com o passar dos anos. Por breves instantes, vejo-o, comovido, recolhendo a boneca e guardando-a com carinho junto ao peito, quando o rio original que corre em mim volta a rugir, lavando a terra, e apenas permito, com alívio, que ele siga soberano e sábio o seu caminho.

16 comentários:

  1. Monique Revillion levou mais de uma década a trabalhar em seu "Teresa que esperava as uvas". Ano após ano, eu insistia: "Vamos publicar". E ela respondia: "Ainda não está pronto". Um dia, ficou pronto. E depois da publicação, o espanto foi geral. Era um grande livro de contos, como poucas vezes se viu nesta terra. Recebeu o Prêmio Açorianos e o Prêmio Livro do Ano, da Secretaria Municipal de Cultura. Agora, não insisto mais. Deixo a Monique trabalhar no ritmo dela, pois sei que ao final do processo teremos um novo espanto, pelo acabamento, pela profundidade. O novo livro de contos da Monique será extraordinário. Como suspeito que os leitores terão de esperar bastante, antecipo aqui um deles, ainda inédito, para deleite e alegria daqueles que admiram o conto bem feito, o conto fechado, redondo, o conto em que nada sobra ou nada falta.

    ResponderExcluir
  2. Monique, retribuindo a tua visita, acho que, sem rasgação de nenhuma seda, o Kiefer fez justiça ao que escreves. Quem dera todos tivessem o teu respeito pela palavra escrita. Um beijo, ana

    ResponderExcluir
  3. Sem dúvida, um conto ímpar, comovente, que nos faz solidários a dor da personagem. Parábens Monique. Aguardamos ansiosos pelo novo livro.
    Abraço
    Ricardo Morales

    ResponderExcluir
  4. Monique, que prazer ler este conto maravilhoso! Emocionante e literariamente grande. O Kiefer está correto, aguardemos com calma a tua obra criteriosa e profunda. Parabéns!
    Kiefer, este blog é generoso e necessário, digno da tua maestria.
    Pena Cabreira.

    ResponderExcluir
  5. Monique, comovida ao terminar de ler teu conto, estou engasgada, tanto por se um tema que me toca profundamente, quanto pela destreza, pela genialidade da tua forma de escrever. O Kiefer, como sempre, tem razão, e eu continuo a achá-lo o mais generoso, abrindo essa oportunidade para todos nós. beijo, Luiza

    ResponderExcluir
  6. Lindo conto. Tocou-me a vocação que todos, naquele lar humilde, tinham para o amor. Por um instante vi-me ali na cena. Não consegui produzir uma crítica de leitor porque me envolvi no enredo. Posso garantir que vi minha mãe, que está no céu. Parabéns. Humberto Ilha.

    ResponderExcluir
  7. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  8. Um conto "contado" e "encantado"com a sensibilidade de quem mergulha na profundidade do ser humano e através das palavras traduz a dor e o amor.
    Simplesmente maravilhoso!
    Ficou aqui o sabor de quero mais,pude sentir o Livro que vem por aí!
    Parabéns Monique!!!
    Obrigada Kiefer por este "presente"!
    Angela Warlet

    ResponderExcluir
  9. Agradeço muito os comentários, cheios de afeto e generosidade.
    beijos a todos
    Monique

    ResponderExcluir
  10. Achei que hoje ia ser um dia de fim pesado. Tô no trabalho, é noite, mas vou entrar o fim de semana mais leve: conto extraordinário! Salvou meu dia. Mergulhei nele, ou melhor, ele me puxou para dentro dele. Como o Kiefer disse, nada sobra, nada falta. Parabéns! - Gabriela Leal

    ResponderExcluir
  11. Excelente e emocionante! Realmente, a autora tem muito talento. Consegui enxergar perfeitamente cada detalhe descrito no conto. Aliás, que descrições! Não sõ ambientais, mas sentimentais! Parabéns à Monique!

    ResponderExcluir
  12. Aí, Monique. Que bom, tive o privilégio de ouvir este conto lido por ti. Emocionante, maravilhoso, denso. Como é genial a boa ficção: nos defronta com a verdade real, mas imaginária, comovente, tocante e incrivelmente autêntica e verdadeira.

    ResponderExcluir
  13. A Monique conta suas histórias com poesia.
    A escolha das palavras, o ritmo, tudo perfeito... Parabéns!
    Beijos,
    Vivi.

    ResponderExcluir
  14. Monique,

    se eu disser que acho maravilhoso, vou chover no rio. Se eu reafirmar minha admiração, chovo de novo, e nem me importo que rime, (não deixemos que o CK nos ouça... risadas). O fato, minha querida, é que precisei secar os olhos e as teclas, antes de escrever aqui. Tu sempre me emocionas. Beijo,

    ResponderExcluir
  15. Este conto é uma das obras mais lindas que já li.

    ResponderExcluir
  16. Nossa, Monique!!!!!
    Não vou comentar agora, talvez em outro momento. Apenas relatar: chorei.

    ResponderExcluir