Barba seca
(Rubem
Mauro Machado)
Já no primeiro dia ficou claro que
seríamos mandados para a guerra.
O
Exército vai transformar vocês em homens de verdade, disse o tenente-coronel
Bonera, comandante do Batalhão, diante dos recrutas perfilados no vasto pátio
cimentado. Uma bandeira se agitava em patriótico frenesi, no alto do poste
pintado de branco. Infantaria não tem moleza, continuou, é a arma que vê os
olhos do inimigo. E quando esse momento chegar, quero que os olhos que nos
enxergam estejam cheios de medo. Medo de vocês.
O
Exército não é lugar de molengas e nem de boiolas, muito menos de covardes,
completou o capitão Brickman, comandante da nossa Companhia, a II de
Fuzileiros, quando mais tarde nos enfileiramos diante do alpendre do
alojamento, cada um de nós tendo ao lado um saco de lona com nossos poucos
pertences. O capitão caminhava de um lado para outro, peito estufado, batendo
com o bastão de comando no coturno bem engraxado. De vez em quando parava e nos
encarava feio, de cima para baixo, como se estivéssemos duvidando dele. Vocês
são os defensores da pátria e de nossos valores. O inimigo representa tudo o
que odiamos; quero que os corações de vocês estejam cheios desse ódio santo. É
ele que nos levará à vitória.
Passeou
os olhos pelas fileiras, como se buscasse qualquer fraqueza ou hesitação em
nós. Atrás dele, os tenentes e sargentos, posição de descansar, mãos para trás,
olhavam firmes para frente, por sobre nossas cabeças, todos muito marciais. E
eu juro, completou o capitão, que esta vai ser a melhor companhia do Batalhão,
nem que para isso eu tenha de arrancar o couro de vocês.
Alguns
homens gostaram daquilo tudo. Eles haviam visto muitos filmes de guerra no
cinema e na televisão e cada um se imaginava uma espécie de John Wayne. Estavam
doidos para começar a dar tiros. No alojamento repetiam que o capitão estava
certo: Exército era pra macho mesmo. E quando chegasse a hora do pega pra
capar, os homenzinhos distantes que tinham o topete de nos desafiar iam ver o
que é bom pra tosse.
Aquele
machismo descarado talvez fosse a maneira que alguns encontraram de negar, para
os outros e para si mesmos, o medo que nos apertava as entranhas. Embora, eu
haveria de descobrir, de fato alguns homens, digamos um ou dois em cem, sejam
assassinos por vocação e natureza, tenham gosto genuíno em destruir e matar. E,
depois de viciados na adrenalina do combate, não possam mais, como todo
drogado, viver sem ela.
Quem
parecia não estar entendendo nada era Jones. Pernas arqueadas, uniforme mal
ajambrado, jeito de caipira, tinha uma vaga idéia do que os oficiais estavam
falando. Sabia que deveria odiar, e que mais tarde iria matar, uns sujeitinhos
esquisitos a quem nunca vira e cuja língua não entendia: mas as razões para
isso lhe escapavam. Eram inimigos, certo: mas se não estavam nos incomodando,
se éramos nós que teríamos que pegar um avião, viajar horas sem fim, atravessar
o oceano, como lhe explicaram, para chegar no país deles e mandar chumbo neles
e acabar com a raça deles, porque não podíamos ficar nós por aqui mesmo,
lavrando a terra em paz, tirando leite das vacas, dando comida pros porcos e
pras galinhas, e deixar eles pra lá, cuidando da vida deles? Queriam tomar o
que era nosso? Mas tinham eles aviões grandes para cruzar os céus até aonde
estávamos? Tinham eles como chegar até nós? Não era melhor esperar por eles, se
fosse o caso, e assim que fossem chegando, aos poucos, aí, então, sim, ir
acabando com eles, um por um, para que aprendessem a respeitar o país dos
outros? Se éramos tão mais poderosos, como o sargento Clark dizia, por que ter medo deles?
Quando
Jones, no alojamento, ensaiou em seu vocabulário escasso de homem do campo
fazer essas perguntas sem pé nem cabeça, os homens, que desde o início o
elegeram alvo preferencial de brincadeiras e sacanagens, deram-lhe respostas
jocosas e perguntaram se ele estava com medo, se estava se cagando antes do
tempo. Por covardia, calei; mas as dúvidas de Jones também eram as minhas.
O
Exército é uma grande repartição pública como outra qualquer, logo constatei.
Gastava-se boa parte do tempo com formalismos aborrecidos, nada heróicos. A
burocracia se sobrepunha à lógica, o estabelecido não admitia o diferente. A
hierarquia derivava não da capacidade individual, mas de fatores variados, como
o mero tempo de serviço. Ponderações não eram bem vistas.
Correria
e inatividade se alternavam, numa rotina absurda e irritante. Podíamos ficar 40
minutos enfileirados ao sol, à espera de alguma decisão, como se o tempo fosse
um bem supérfluo, antes que o capitão chegasse para o tenente com as fatais
palavras “última forma”; e anunciasse um novo rumo. E lá íamos, marchando,
feito bonecos, engolindo a decepção, perdida toda autonomia.
Pareciam
nunca saber exatamente o que fazer conosco. E cada ato nosso, até os mais
simples, como se dirigir ao refeitório, era determinado por outrem, sempre em
caráter coletivo, ao ritmo do bater de pés. Regulamentos tudo previam. Sob o
olho atento do relógio, arrumávamos a cama de manhã, dobrando o cobertor da
maneira ensinada. Tínhamos de engraxar os coturnos pelo menos três vezes por
semana, polir a fivela do cinto, limpar os fuzis a três por dois; fazer a barba
todas as manhãs, às pressas, antes do café; e só havia uma maneira de prender a
pá ou a lona da barraca na mochila; ou de se dirigir a um superior; e só uma
posição fundamental no início da sessão de ginástica. O corte de cabelo
igualava a todos e o manual dizia como cortar a unha do pé. Entrávamos em forma
para tudo; só faltava ter hora para ir às latrinas, cobertas pelo cheiro acre
de creolina.
Marchávamos
até o refeitório para o café e o almoço; e para a sala de instrução, para o
estande de tiro, para a ginástica calistênica, para o campo de futebol; isso
tudo depois da formatura matinal do regimento, seguida de duas horas de
interminável ordem unida, quando a voz de comando nos eximia de pensar ao tomar
uma nova direção: obedecer tornava-se uma coisa automática. E no fim do dia, as
companhias tinham de alinhar, cada uma diante do seu alpendre, para ouvir a
leitura do boletim, quando ficávamos sabendo das eventuais punições por
indisciplina no Batalhão; e éramos informados de que no dia anterior nossas
heróicas tropas, numa antecipação do nosso trabalho, haviam matado 80, ou 150
inimigos, nas batalhas distantes, notícia que, embora sem comprovação, era
saudada com um urro selvagem, festa de contagem de jogo de futebol. E ao cair
da noite mais uma vez seguíamos marchando para o jantar. Não passávamos de
frações de uma totalidade; não à toa, cada um de nós ganhara ao chegar um
número, desde então inseparável do nome de guerra.
Passadas as primeiras semanas, integrara-me àquela
rotina. Embora ainda não tivéssemos disparado um tiro, não mais me sentia o
recruta perdido que certa manhã, depois de tomar as vacinas para tifo, tétano e
febre amarela, e de ter o cabelo derrubado por um cabo improvisado como
barbeiro, se viu sentado no alpendre da II Companhia de Fuzileiros, tentando
achar, na montanha de coturnos depositada no centro do círculo que formávamos,
um par que desse no pé. E que naquela mesma tarde, ao comando do sargento
Stone, ficou ensaiando com os colegas durante horas bater continência.
Naquele dia constituíamos
um bando ridículo de palhaços verdes, já que nossos corpos magros sobravam
dentro dos uniformes ainda à espera de ajuste; e eu olhava com inveja os
soldados veteranos que passavam altaneiros por nós, dentro de uniformes bem
recortados. Ainda demoraria uns dias antes que, graças ao trabalho de tesouras,
agulhas e linhas, nosso ou de mulheres do bairro pobre das redondezas, ávidas
para faturar um trocado, ficássemos indistinguíveis das praças veteranas no
trânsito movimentado das ruas do quartel. Este era formado por um conjunto de
pavilhões amarelos, de um só andar e com um alpendre na frente (a que se subia
por quatro degraus laterais), cada qual abrigo de uma companhia de infantaria.
Outros prédios sediavam cozinhas e refeitórios, depósitos, a escola regimental
– e a cadeia, de portas e janelas gradeadas, repouso dos muito agitados. Nos
fundos, para além da planície cimentada das formaturas matinais, ficavam o
estande de tiro, o paiol, a pista de atletismo e o campo de futebol. A testa do
complexo era constituída pelo único edifício de dois andares, com o imponente
portão de entrada cavado em arco no seu ventre, vigiado eternamente por uma
sentinela. No andar superior ficavam os alojamentos dos oficiais solteiros; no
térreo, o corpo da guarda. A cidadela, masculina, era cercada por um muro
caiado de branco, que nos separava do grande mundo lá de fora, o mundo da
normalidade, de que estávamos excluídos, quem sabe para sempre.
O
capitão Brickman cumpriu a promessa de nos arrancar o couro. As horas de
marasmo, em que ficávamos à espera não sabíamos bem do quê, ou aquelas
dedicadas à instrução teórica, quando, depois do almoço, sentados numa lona
estendida sobre o chão do alpendre, ainda no processo de digestão da comida
difícil, lutávamos para que os olhos não fechassem ao som da cantilena monótona
do tenente Knapp a nos falar dos ângulos de tiro dos morteiros, eram
intercaladas por furiosa atividade física: ordem unida, ginástica com armas e
propriamente dita, práticas desportivas, travessias de obstáculos pendurados em
cordas, marchas diárias e noturnas; e por exercícios exaustivos no campo de
instrução, situado fora da cidade e que alcançávamos caminhando em linha dos
dois lados da estrada por nove quilômetros, dobrados sob o peso do equipamento.
Lá, avançávamos contra um inimigo hipotético,
urrando um ódio que tentávamos aprender, dando tiros de festim, jogando-nos no
chão e rolando ao apito do instrutor, não importa houvesse à frente pedras ou
espinhos que nos deixavam contundidos e arranhados.
O
pior de tudo para mim era vir na corrida e, com uma raiva inteiramente nova,
enterrar a baioneta calada em bonecos recheados de palha. Eu não queria pensar
na possibilidade de um dia a palha se fazer carne, de ter de furar um ser
humano, em um ser repleto de sangue que espirraria longe – e muito menos que
alguém fizesse aquilo comigo.
No
combate à distância atira-se numa sombra sem identidade, que se desloca e cai.
É muito diferente do combate corpo a corpo, quando você percebe nos olhos do
outro a surpresa e o terror, capta o cheiro de suor e medo que emana do corpo à
frente – e sente a resistência macia da carne que sua lâmina perfura no impacto
da corrida, até chocar-se contra a dureza de um osso. Lâmina que você torna a
libertar erguendo o pé e empurrando o corpo do inimigo com a sola do coturno,
como quem se livra de um fardo incômodo.
Passada
a tempestade, nos dias que se seguem você se pegará criando uma biografia,
inventando um nome, um trabalho e uma família para aquele infeliz. Vai pensar,
nos momentos mais inesperados, ao acordar de manhã, enquanto faz a barba, no
meio de uma conversa, ou enquanto dá uma garfada no prato de comida, na dor que
sua vítima sentiu no momento fatal; e a que a família dele terá sentido ao
receber a notícia de sua morte, o espanto do pai, os gritos da mãe, as lágrimas
das irmãs. Vai imaginar como devem ser as tardes calmas da cidade ou aldeia
natal daquele desconhecido, que veio para sempre e de maneira inesperada
tornar-se parte de sua vida e da sua lembrança; no que ele achava graça, se
gostava de música ou de assobiar, se tinha um gato ou um cachorro, se gostava
de alguma garota, se era inteligente ou estúpido, alegre ou melancólico, se
pensava na morte, se fabricava para si um futuro: e tudo isso por que você terá
visto seu rosto de menino; e por que no fundo ele não é tão diferente de você.
E nunca mais você deixará de ser perseguido pelo grito ou gemido fundo daquele
segundo fatal, pelo som do choque da baioneta contra o osso; e não haverá sabão
que consiga lavar de si o sangue que sujará as suas mãos e o seu uniforme de
matador.
Não,
eu na era adepto de baionetas. E tampouco me entusiasmei quando pouco antes de
deixarmos o quartel rumo a um novo destino, cada um de nós foi presenteado com
um punhal de dois gumes, afiadíssimo e ligeiramente recurvo, que a partir dali
levaríamos sempre à cintura, como parte do equipamento. Como no caso da irmã
maior, ele apresentava uma reentrância longitudinal no centro da lâmina que,
descobri, tinha por finalidade provocar hemorragia interna.
Ainda
bem que ao voltar para o alojamento à noite, depois do jantar, desmaiávamos de
cansaço ao nos jogarmos nas camas; se tinha pesadelos, não conseguia me lembrar
deles depois da noite que parecia tão curta, violentada pelo precoce toque de
alvorada, já no esforço de abrir os olhos, sob o castigo das palmas e gritos de
“levanta, levanta” dos sargentos, ainda escuro lá fora. E você mal tinha tempo
de entender onde estava, antes de começar a correr, para não se atrasar.
Os
momentos de folga eram gastos com cochilos: sempre havia alguém a imitar um
cadáver de boca aberta nos nossos beliches duplos, um fio de baba escorrendo
pelo canto da boca, morto para os que se dedicavam a costurar uma peça de
uniforme, lustrar a fivela do cinto de lona, ou apenas mirar um ponto fixo no
teto, nuca pousada na palma das mãos; ou que, sentados no chão frio do
alojamento, se empenhavam num barulhento jogo de cartas: gritar e discutir é um
dos modos de espantar o medo.
Nessas
horas ociosas, em que éramos por um curto tempo donos de nós mesmos, Jones
sofria com as piadas e provocações:
–
Ei caipira, é verdade que lá na roça vocês trepam com as vacas e as galinhas?
No
começo Jones ainda dava um risinho amarelo; com o tempo foi se fechando cada
vez mais, afundando no mutismo, na perplexidade de ter sido lançado sem
consulta num mundo hostil, que apesar do esforço tinha pouca possibilidade de
entender. Mais do que maldade, eu sentia, havia nos homens a vontade de se
sentir superior a alguém que parece inerente a todos nós. Éramos todos ali
pobres, fodidos em maior ou menor grau, no máximo remediados: e mesmo assim
ainda não tínhamos percebido que os ricos não iam para a guerra. Mas ser da
cidade parecia uma boa vantagem em comparação com um camponês bronco.
Por
pena e solidariedade e também pelo acaso de que Jones era de meu pelotão e seu
beliche ficava próximo do meu, fui aos poucos me aproximando dele, puxando
conversa, iniciando uma improvável amizade. Numa tarde morna de domingo em que
a maioria dera uma escapada para a cidadezinha próxima, na esperança de uma
trepada e de embebedar-se, e os restantes, afora os que engraxavam sapatos e
coturnos, roncavam abraçados ao colchão de seus beliches, Jones, numa prova de
que eu ganhara sua confiança, ou por pura necessidade de comunicação,
aproximou-se de onde eu deitado tentava ler um livro, puxou uma foto rachada do
bolso e me mostrou:
– Eu e Bolota.
À frente de um galpão e de um terreno arado, Jones
abraçava-se ao seu cachorro vira-lata. Partilhou comigo a contemplação
enternecida e compreendi, mais do que dos pais e dos irmãos, ele sentia falta
do seu cachorro.
– Você acha que, se eu ficar muito tempo fora,
ele vai acabar esquecendo de mim?
– Claro que não, Jones. Os cachorros nunca
esquecem seus donos. O dia em que você voltar pra casa, vai ver só os pulos que
ele vai dar.
Então me contou como Bolota era esperto e como
ficava assanhado quando o via pegar o caniço para ir pescar no riacho: seguia
na frente ao longo da trilha, sacudindo o rabo de contente.
– Soldado, chão. Vinte flexões de braço;
rápido, vamos lá!
Tínhamos de estar sempre alertas (sobressaltados?).
Qualquer hesitação, qualquer demora em compreender uma ordem, qualquer retardo
em pegar um objeto, em arrumar a cama, sair do chuveiro ou entrar em forma, era
punido pelos sargentos e oficiais com flexões de braço ou com “cangurus”,
movimento em que, dedos entrelaçados na nuca, tínhamos de descer e subir, alternando
as pernas. Não se tratava de sadismo, eu sabia: a agilidade de reflexos poderia
nos salvar a vida no campo de batalha. O último a entrar em forma era sempre
punido, ainda que necessariamente sempre tivesse que haver um último. Tudo isso
é para o nosso bem, eu me consolava.
O problema é que o tempo de Jones não era o nosso.
Custava a entender o que se esperava dele. Gestos lentos por natureza e por
cultura, era alvo da irritação, fingida ou verdadeira, de oficiais e graduados,
o que só contribuía para que ficasse ainda mais aturdido, cometesse mais erros.
Tornou-se o campeão em nossa Companhia de flexões e cangurus, o que estimulava
os homens, mais tarde, a fazerem piadas sobre ele e a inventarem-lhe diferentes
apelidos. Eles avaliavam que os homens do campo, por sua lerdeza, são todos uns
pamonhas. Mas eu, depois de passar uma temporada numa fazenda, sabia por
experiência própria que sua natural lentidão embutia profunda e inata
sabedoria: é que no mundo rural os trabalhos são tão pesados e as distâncias a
percorrer sempre tão grandes, que se eles executassem suas tarefas na
velocidade a que nós citadinos nos habituamos, tombariam em breve de exaustão.
Um dia o tenente Porrada, como havíamos apelidado o
tenente Anderson, num sintoma claro de que nossos superiores estavam sempre nos
avaliando e conversando a nosso respeito, o advertiu, meio rindo:
– Jones, se molengas tivessem penas, você
seria um peru.
A partir daí meu novo amigo ganhou o apelido de
Jones Peru, e era saudado por uma sinfonia de glu, glu, glus em falsete, sempre
que entrava no alojamento. A sua revanche, involuntária, veio pouco depois, por
ocasião de um exercício noturno no campo.
Tínhamos de penetrar rastejando num perímetro
defensivo, percorrido por patrulhas armadas de lanternas. À medida que os
atacantes eram achados no meio do capim, caíam prisioneiros. Nossos corações
batiam com violência, a ponto que temíamos pudessem nos denunciar, quando os
“inimigos”, atraídos por algum ruído, parados junto a nós, quase nos pisando,
vasculhavam o entorno com o facho de luz e, para nossa incredulidade, não nos
descobriam, na noite sem lua. Mas cedo ou tarde tínhamos de nos mover; e fomos
caindo, um a um.
Quando por volta de uma hora da manhã os apitos dos
oficiais assinalaram o fim do exercício, só três homens haviam conseguido
entrar no perímetro. E um deles era Jones, ainda por cima o primeiro a atingir
o ponto designado. Ou seja, no momento em que tínhamos de nos comportar mais ou
menos como um bicho arisco e astuto, um felino capaz de enxergar no escuro,
Jones, integrado em seu elemento, com a velha experiência de caçador, fora
autor da melhor progressão individual de toda a Companhia, o que lhe valeu o
primeiro elogio dos superiores em todos aqueles meses. Os sargentos não
perderam a oportunidade para gozar com a nossa cara:
– Quem diria, hein: o matuto deu um banho em vocês,
que se acham muito espertos!
O inverno chegou, recebemos ceroulas e japonas.
Abandonar pela manhã a quentura dos cobertores tornou-se mais difícil; e com o
acréscimo de cobertas a arrumação da cama demorava dois ou três preciosos
minutos a mais, os lençóis, bem esticados, não podiam ter uma ruga, os
cobertores por cima deles desenhando meias luas. Os atrasos matinais aumentaram
e as punições começaram a ficar pesadas.
Certa manhã Jones demorou-se arrumando a cama e não
teve tempo de fazer a barba. O sargento Clark não percebeu a sombra mais escura
no seu rosto. A Companhia marchou batendo forte o pé no chão até o pátio
cimentado, para a formatura diária do Batalhão. Depois da continência à
bandeira comandada pelo toque de clarim, e da arenga do tenente-coronel Bonera,
nós, posição de descansar, fuzil ao lado do corpo, cabeça erguida, aguardamos
que o sub-comandante, major Clay, acompanhado de outros integrantes do
Estado-Maior, percorresse as fileiras, examinando-as em busca da menor falha. A
ansiedade subia dentro de nós nesse momento, por mais confiantes estivéssemos
de que não tínhamos nenhum botão faltante no uniforme, de que as fivelas dos
cintos faiscavam, e de que nossos coturnos podiam ser usados como espelhos. Até
que o olho treinado do major detectou Jones na fileira do fundo, a dos
baixinhos.
Encaminhou-se até ele:
– Soldado, nome e número!
Jones
apresentou-se.
– Não fez a barba hoje, soldado?
– Não fiz, não senhor.
– E pode-se saber por quê?
– Não tive tempo, senhor.
A tensão tomava conta de nossa Companhia, como se a
falta de um se comunicasse de algum meio misterioso a todos. Até o capitão
Brickman à testa de nossa unidade parecia mais rígido do que o normal.
A uma ordem do major, Jones saiu de forma. O
sargento Stone o conduziu até um pequeno estrado de madeira situado ao lado do
palanque, à frente da tropa. Um cabo recolheu o fuzil e o capacete do faltoso.
– Não podemos admitir o menor desrespeito às
ordens recebidas. E todos sabem que têm de fazer a barba todas as manhãs –
declamou o tenente-coronel ao microfone – O soldado aqui ao lado, para exemplo
da tropa, vai fazer a barba agora, na frente de todos.
Postado na fileira da frente, vento frio congelando
o nariz, pensei aflito, porra, por que tanta rigidez? Sabíamos que na zona de
guerra todo mundo cagava para regras e regulamentos: os soldados, cerveja
grátis à vontade e ao alcance da mão, viviam bêbados, ou drogados, com a
conivência dos superiores. Mas ali, longe dos combates, do medo e do horror, o
que imperava era o rigor dos princípios, as etiquetas da caserna, o formalismo
dos códigos.
Jones subiu no estrado. O cabo entregou-lhe um
espelho de mão e uma navalha. Sem água ou sabão, nosso companheiro – sim, nesse
momento mais do que nunca Jones era nosso companheiro, era cada um de nós, que
se imaginava em seu lugar – começou a raspar a face, o queixo, o pescoço,
fechando por vezes os olhos, torcendo a boca num rictus involuntário: era o
castigo a que dávamos o nome de “barba seca”. O frio da manhã que corava os
rostos deixava a pele sensível, tornava ainda mais difícil a raspagem,
realizada em meio a um silêncio de igreja, como se ali não estivessem reunidos
mais de 700 homens. Dava para ouvir a bandeira se debatendo. Os minutos se
alongavam, aquilo parecia não ter fim.
Quando terminou, o rosto de Jones, que nunca me
parecera tão ingênuo e juvenil, recobria-se de uma camada fina de sangue: um
palhaço pronto para o picadeiro. Consegui perceber como seus olhos haviam se
enchido aos poucos de lágrimas, de dor e humilhação. “Chega, está bom”,
decretou o sargento Stone, que ao pé do estrado acompanhava a operação. Jones
devolveu o espelho e a navalha, recebeu de volta o fuzil e o capacete, retornou
às fileiras. Desfilamos diante do palanque batendo firme o pé no cimento, a
formatura chegou ao fim.
No alojamento, o sargento enfermeiro secou com gaze
e cuidado o rosto retalhado de Jones, passou uma pomada cicatrizante. Nesse dia
pouco se ouviu a voz de alguém em nosso alojamento. Ao fim do expediente, ao
nos recolhermos, a bagunça habitual foi substituída por uma estranha contenção,
como se alguém houvesse morrido.
Se antes falava pouco, a partir desse dia Jones
passou a falar só quando convocado, em geral monossílabos. Na mesa, mal tocava
a comida. Os homens não mais o chamavam por apelidos ou faziam piadas a seu
respeito. A cada momento alguém, puxando conversa, fingindo naturalidade, se
aproximava dele para oferecer chicletes ou repartir uma barra de chocolate: Jones
apenas sacudia a cabeça. Quando tentei falar com ele sobre Bolota e contei em
voz alta para os soldados Perez e Smith, vizinhos de beliche, algumas façanhas
do cachorro, “nem parece bicho, parece gente, vocês não acreditam”, não
consegui qualquer envolvimento da parte de Jones, que parecia escutar minhas
palavras sem ser atingido por elas.
Chegou por fim o grande momento do juramento à
bandeira, quando oficialmente deixávamos de ser recrutas, para ser considerados
soldados de verdade. Já havíamos feito a essa altura exercícios de tiro real, e
mergulhado em estreitas trincheiras que blindados atravessavam velozmente,
provocando uma fina chuva de terra sobre nossos corpos encolhidos no fundo. Ao
longo daqueles meses participamos de patrulhas noturnas, aprendemos a instalar
minas, a camuflar posições, atiramos de metralhadora e morteiro, transpusemos
riachos pendurados em cordas, rastejamos sob emaranhados de arame farpado. Em
longas marchas de até 35 quilômetros suportamos nas costas o peso de
metralhadoras ponto 30, de placas-base de morteiro, capacete de aço nos
amassando o cabelo, enquanto o suor escorria pela testa e nos queimava os
olhos. Sob o sol que nos assava a parte posterior do pescoço, até fazê-lo
parecer um naco de lombo mal passado, ou envoltos pela névoa fria da manhã,
tomamos o rumo de horizontes que pareciam se afastar, enquanto bolhas
rebentavam nos pés e frieiras esfarelavam a pele entre os artelhos: um caminhão
na retaguarda ia recolhendo os estropiados, para vergonha dos fracos.
Dentro de dois dias embarcaríamos para um campo de
treinamento, num Estado distante e quente, onde completaríamos nossa diplomação
na arte de matar e morrer, antes da Grande Viagem. Muda excitação atravessava
todos como uma corrente de eletricidade, nos deixava a boca seca e um vazio na
boca do estômago. Só Jones, olhar perdido, parecia cada vez mais indiferente a
tudo.
Nessa noite tive um sonho ou, pelo menos, pela
primeira vez me lembrei de um sonho ao acordar: nós nos afastávamos pela
estrada, em meio à noturna escuridão, iluminados pelos reflexos das chamas que
consumiam nosso quartel.
Manhã de formatura festiva, ânimo inaugural,
sentimento de aproximação de momentos decisivos, marchamos para o pátio
cimentado: era a despedida do local que fora o nosso lar nos últimos meses. O
capelão, equipado com uma Bíblia e ostentando a patente de capitão, nos
abençoaria e às nossas armas. O general Taylor em pessoa estaria presente e uma
banda militar executaria o Hino Nacional.
A tropa postou-se ante o palanque, onde o tenente-coronel
Bonera conversava com outros oficiais à espera do general. Caniços metálicos,
dois microfones de pedestal aguardavam as vozes de estímulo dos grandes chefes.
À direita do palanque perfilava-se a banda, instrumentos no chão; à esquerda,
via-se o pequeno estrado de madeira, palco da humilhação de Jones. Enfurecida
como nunca, a grande bandeira tremulava no mastro. Posição de descansar,
fazíamos o que um soldado mais faz, esperar.
E então, para surpresa geral, percebemos com o canto
do olho Jones adiantar-se, passar por entre nossa formação, abandonando as
fileiras. Caminhou em linha reta em direção ao estrado, num passo firme e
decidido. Tomado de surpresa, o universo imobilizou-se. Os oficiais no palanque
pararam de conversar, sem entender o que aquele soldado estava fazendo.
Meu coração disparou, meus olhos arregalaram-se: meu
pobre companheiro havia enlouquecido? Eu só pensava na punição a que estava
sujeito, por sua atitude fora de propósito.
Jones encostou o fuzil no estrado de madeira, tirou
o capacete. Subiu no estrado, encarou a tropa por segundos. Todos os olhos
estavam fixos nele. Puxou do cinto o punhal que recebêramos há pouco mais de
uma semana e ainda assim demorou uma fração de tempo para que todos entendessem
o que pretendia. E então ouvi o grito estrangulado de Ismael a meu lado,
enquanto oficiais e sargentos próximos do palanque corriam em direção ao
estrado. A voz do tenente-coronel Bonera soou com energia no alto-falante, em
meio a um sussurro que ameaçava alastrar-se pela grande mancha verde:
–
Ninguém se mexe. Silêncio!
Engoli o grito. Senti a vista embaralhar, o enjôo
subiu forte do estômago. Achei que ia desmaiar, o sangue me fugindo; disse a
mim mesmo que não tinha o direito de mostrar fraqueza. Agüentei firme, cabeça
levantada. Eu agora era um soldado.