Um
dia, há muito tempo, eu jurara, sobre suas águas, e tendo-as por testemunho, que
jamais alguém me haveria de humilhar. Mas isto é outra história.
Alguém
sentou-se no banco, a meu lado, trazendo-me
de volta à superfície. Era um orangotango.
—“Chose étrange”— diria meu querido e
saudoso professor.
Estávamos
em Nice, ou Cannes, pouco importa, diante do Mediterrâneo. E o que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. Viu, está visto. Existe.Se Ionesco pôde ver,
por que não eu?
Era um orangotango,
sentado a meu lado. E ele me perguntou:
—
Madame, por favor, que horas são?
—
São 9:15 – respondi.
— Da
noite, quero crer?
— Sim,
da noite. Não notou? Já está escurecendo.
—
Nunca se sabe, madame. Nunca se sabe.
Falava
francês com um sotaque estranho. E o que me chamou a atenção é que não era
aquele sotaque típico africano:“c’est vrrai,
c’est vrrai”.
Esse
outro acento eu não conseguia distinguir. Fiquei curiosa. De onde teria saído o
diabo deste orangotango com tal sotaque?
Eu tinha duas alternativas: ou me calava, ignorava a presença do orangotango e,
discretamente, me afastava dali. Ou ficava. Fiquei. Para puxar o fio da meada e
ver aonde ia dar tudo aquilo. Podia render uma boa história. Estava um pouco insegura, não sabia por onde
começar a conversa.Falar do tempo era muito óbvio. Resolvi arriscar. Puxei o fio
da meada.
— O
senhor não é daqui? – pergunta afirmativa.
—
Claro que não, madame. A senhora há de convir que não se veem muitos como eu,
neste país, fazendo turismo.
— Ah!
O senhor viaja a turismo, não a negócios?
—
Sim, digamos que sim.
—
Bem, é que, atualmente, com o deslocamento das populações, vê-se de tudo. Quero
dizer, muitos estrangeiros, das mais variadas etnias...
–
Madame tem razão. Vê-se de tudo. Eu disse à minha mulher, antes de viajar: “Seu
marido vai chamar atenção”.
É
casado. Uma informação.
—
Minha mulher e meus filhos nunca saíram das Ilhas Mauricio, onde vivemos.
–
Interessante.O senhor é, pois, africano?
–
Não exatamente, madame. Somos indianos. De origem. Meus antepassados se radicaram nas ilhas desde
tempos imemoriais. Bem mais recentemente, por volta de 1500, fomos descobertos por
navegadores portugueses, depois fomos colonizados por franceses, holandeses,
ingleses. Hoje somos um Estado independente.
Este
cara está me gozando. Quem foi descoberto em 1500, por portugueses, fomos nós.
Onde será que ele quer chegar com esta conversa mole?
— E
Madame, de onde vem? Do leste europeu?
Era
a minha vez de tirar sarro (ainda se tira sarro?) da cara do sujeito. Está me
achando com cara de romena? Albanesa? Conversa
chata, esta.
Respondi,
educadamente:
—
Não, cavalheiro, ao contrário. Eu venho do extremo
ocidente.
Frisei
a expressão.
—
Interessante. Perdoe-me se não estou a alcançar a localização. Geograficamente,
quero dizer.
— O extremo ocidente, acentuei – é do outro
lado do Atlântico, senhor.
—
Interessante, muito interessante, repetia. É uma região de florestas, de
grandes florestas. Meus antepassados eram seres de floresta... Interessante.
Madame, tão civilizada, tão bem informada, parece um pouco surpresa por estar
conversando com um estranho, e a estas horas.
— Pois
não é? Meio tarde. Mas, como dizem na minha terra, se a prosa está boa a gente
segue proseando.
Orango
avaliava a minha condição de ser civilizado como se no extremo ocidente só houvesse, digamos, primatas. Eu já estava farta
de, ao longo de minha vida, me desculpar, de explicar que no extremo ocidente usávamos
roupas, comíamos com talheres, íamos a universidades e conseguíamos falar mais
de um idioma, além do nosso patuá nativo.
Enfim,
não importa. Conversamos sobre muitas outras coisas, a chamada conversa fiada, solta,
sem comprometimento. O fio da meada, que eu pretendera puxar, não desenrolou
muito além da superfície do novelo. E a mim já não me interessava saber-lhe
vida, paixão e morte. As horas iam passando, frente ao Mediterrâneo. Agradáveis,
horas plenas, e isso me bastava.
Quando Orango,
discretamente,olhou seu relógio de pulso, um magnífico Rolex, na extremidade de
seu longo braço, pensei comigo: Se ele tem relógio, por que perguntou-me as
horas?
Simulou, ou, realmente, sentiu um leve susto.
– Macacos
me mordam! São quase quatro da
manhã.Como o tempo passou rápido. Hélas!
Demasiado rápido, madame. Se eu não
correr perco meu voo para Stockholm. Désolé!
Preciso voar para o aeroporto. Perdoe-me a pressa. Foi uma honra desfrutar de
sua amável companhia nesta noite magnífica, mágica. Pelo menos para mim. Espero
revê-la um dia, madame. Adeus!
Disse
isso num francês fluente e impecável, sem sotaque, já em pé, acenando para um
táxi.
Olhei
as horas no meu relógio de camelô: três e cinquenta e cinco. Na linha do horizonte, à minha esquerda, uma
fímbria de claridade começava a se delinear. Algumas horas antes, poucas, eu
vira o ocaso sobre o Mediterrâneo. Agora via o alvorecer. Imutável e perpétua
marcha do tempo sobre o Grande Azul.
Levantei,
dei uns passos para destravar as articulações, me espreguicei.O que se vê em
Nice, ou em Cannes, não se discute. É real. Viu, está visto. Existe.
Enfim, não importa.
(Este conto de Ayala Aguiar foi o vencedor do Primeiro Concurso Aleph de Contos das Oficinas Literárias Charles Kiefer e Editora Ltda)