quinta-feira, 21 de maio de 2009

Os tártaros não invadem o forte (Christian Simões)

Os tártaros se aprontavam para invadir o forte quando o ônibus parou. Marcos se levantou a contragosto, marcou a página com o real que sobrara do troco e saiu na manhã fresca. Era o primeiro dia de aula, o campus estava cheio. Subiu a escadaria, observou as mulheres em frente, outro grupo que ria em torno de um banco, as árvores por todos os lados. Gostou dali. Mais adiante viu o bar. Era cedo, ainda, mas já estava aberto. Resolveu entrar e pedir um café.

– Oi, tu é bixo?

Virou. Uma mulher mais alta que ele, magra, bonita, um estojo e um caderno na mão, esperava na fila.

– Sou, disse, um pouco surpreso, enquanto vasculhava uma moeda no bolso. – “Recém entrando no deserto”, e mostrou, satisfeito com o próprio comentário espirituoso, a edição de Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, o verde da cédula a sobressair da página marcada.

– Licenciatura?

– Sim.

– Eu já li esse livro, é ótimo.

Marcos olhou para a mulher. O rosto afilado, o nariz bem feito, sorriso inteligente.

Puxou a nota do meio do livro e pediu mais um café.

– Toma comigo?

– Não sei se dá tempo. Tu já sabe qual é a tua sala...?

– Sei, sim, ele disse, e simulou uma olhada no relógio. – Ainda é cedo.

Sentaram próximos à janela. O bar ficava em desnível em relação à rua. Dali eles só podiam ver os pés das pessoas, de um lado para o outro.

– Qual é o teu nome?

– Silvana.

– Prazer, eu sou o Marcos.

– Prazer.

A mulher abriu o estojo e tirou uma caneta.

– Tu vai gostar daqui, Marcos.

– Tu também é bixo?

– Não, eu me formo no ano que vem.

Marcos abaixou o olhar, por um instante.

– Tu já leu o outro livro dele? – ela continuou.

– Não. Como é que se chama mesmo...?

As montanhas são proibidas.

– Isso, eu tenho esse livro. Tá lá em casa, para ler.

“Só os livros lidos nos pertencem realmente”, ela escreveu na capa do
caderno e virou para ele ler, um sorriso meio triste.

Marcos sorriu desconcertado. Lembrou-se por um momento de Giovanni Drogo, a personagem central de Deserto dos Tártaros, o jovem italiano que se alista numa guarnição de fronteira à beira do deserto e espera com ansiedade, durante anos, o ataque dos tártaros.

– Eu tô lendo o Borges, a Antologia Pessoal, conhece? Tem um conto que é sobre isso tudo aqui, e rodopiou o dedo.

– Isso aqui o quê?

A mulher olhou para os pés na rua, abriu uma página em branco do caderno.

– Tá vendo isso? – com um risco delimitou as bordas da página.
Marcos fez que sim.

– Isso é o deserto. Já aconteceu alguma coisa?

– Aconteceu alguma coisa aonde?

– No livro que tu tá lendo, na história. Já aconteceu alguma coisa de especial, assim, que mude o rumo das coisas, que faça tudo ficar diferente?

Marcos sorveu um gole de café, se endireitou na cadeira, olhou um segundo de novo para o desenho e depois fixou o olhar na mulher.

– A guerra, tá começando a guerra.... depois eu não sei.

A mulher manteve o sorriso, olhou para a janela e ficou mais séria. Tinha um ar decidido e complacente, quase carinhoso. De repente traçou uma reta que iniciou fora do círculo e parou aproximadamente no meio. Aí largou a caneta, cruzou os braços sobre a mesa e disse com o mesmo sorriso complacente:

– Esse é o único livro que não precisa ser lido até o fim.

Marcos não entendeu o que ela queria dizer, e antes que pensasse numa pergunta ela arrematou:
– Não tem guerra nenhuma, Marcos, não vai acontecer nada. Os tártaros não invadem o forte.

Um grupo do lado de fora chegou, parou, riu e se pôs a conversar ali em frente à janela. Marcos pôde ver pelos pés que era um casal: dois pares de All Star de frente um para o outro, bem próximos. O par menor ficava na ponta dos pés, de vez em quando.

– Mas tu não disse que o livro era bom?

– Foi o melhor livro que eu já li.

Silvana tirou um cigarro da bolsa, acendeu-o e olhou para ele com a quietude de uma estátua. A fumaça do cigarro balançou, subiu, ladeou, espalhou-se e aos poucos envolveu a mulher e Marcos, depois a mesa e as cadeiras e, por fim, todo aquele canto do bar.

– O conto do Borges é meio doido, acho que nem ele acreditou muito naquilo. É um grupo de alunos de Letras que no fim da aula descarrega um revólver no professor – e riu.

Marcos riu também. Começava a ficar fascinado por aquela mulher. Tudo que dizia era interessante e misterioso, ela toda era misteriosa, e como era bonita! Pensou em levantar e pedir outro café, perguntar mais coisas, de onde era, há quanto tempo estava ali, o que pretendia fazer, só sabia o seu nome, afinal, mas antes que pudesse tomar uma atitude ela se lançou da cadeira e disse que precisava ir. Arrancou a folha desenhada do caderno e lhe deu.

– A gente vai se ver muito ainda, falou, já quase na escada. – Depois vem o trote, talvez eu possa ser a tua madrinha.

Subiu alguns degraus, virou-se e, por fim, disse:

– Olha, eu tava brincando, é claro que tu tens de ler o livro até o fim.


* * *

O professor Marcos olhou para as mesas e viu que o bar estava vazio. Olhou pela janela, também não tinha mais ninguém lá. Subiu para a calçada.

O sol já estava alto. Pegou a velha edição de Deserto dos Tártaros, folheou-a, abriu-a na última página. Leu a última frase: “Em seguida, no escuro, embora ninguém o veja, sorri”. Com a mesma folha de caderno dobrada, remarcou o livro aleatoriamente.

Um casal passou por ele, em direção às aulas.

– Bom dia, professor.

– Bom dia, sorriu.

Recolheu o olhar assim que pôde. Respirou fundo. Mais um dia, menos um dia.

Seu peito parecia uma fortaleza, naquela época.


domingo, 17 de maio de 2009

Clandestina e Gavinhas (Cecília Cassal)

Clandestina

Nunca tive as imunidades
necessárias para transpor
fronteiras: contrabandeio idéias

Sempre faltou uma marca
que ainda não houvera sido feita
E tive medo, todas as vezes
quando a procuraram

Bem cedo tentaram forjá-la,
riscá-la sem fogo mas com força
nas peles de dentro para fora:
sou tão ruim que nem
cicatrizes crio, me disseram

Hoje aceno aos guardas
porque permitem-me
as passagens. Não carreio
pestes: sou outro tipo
de clandestina


Gavinhas

O pai tinha umas vezes
uns arroubos de árvore
que se pensa eterna e
discursava claro
de dentro da esfera
Quase-mel-quase-verde
dos seus olhos

(eram olhos líquidos como o vinho)

Tinha umas coisas de
colono, depois do sermão
do padre
Ou de oleiro que
se pensa Criador,
após modelar para mim
um estranho boneco
de barro

Um dia,
debaixo das videiras, disse
- minha filha,
isso tu nunca que adivinha:
eu olho para as parreiras e
teus cachos têm
a mesma forma das gavinhas

domingo, 10 de maio de 2009

Nem a pergunta quando parares de rir (Juarez Guedes Cruz)

Considerando que o meu computador (e o de todo mundo) tem uma memória quase absoluta, eu o chamo de Funes. Pois bem, eu anoto no Funes algumas coisas que penso sobre o que me acontece durante o dia e, numa certa hora, eu escrevo um conto como esse que vocês vão ler e que, aviso para os desmemoriados, começa com a frase Considerando que o meu computador (e o de todo mundo) tem uma memória quase absoluta, eu o chamo de Funes, e termina (já vou avisando para os mais apressados, que vão direto para a última linha) com a frase Deixando em quem escreve a sensação muito dolorosa de que não precisava ter lembrado nada disso.

E o anotado ontem, já na madrugada, foi que o correto, em bom português, seria perguntar quando parares de rir queres dançar comigo? Porém o que ele, tímido e gaguejando, perguntou foi quando tu parar de rir vamos dançar? Mas o melhor foi a resposta dela — mulher tão linda, que ele, quando falou com ela, já achava que não a merecia e que ela iria virar a cara — o que ela disse (tão linda que era) foi então vamos dançar agora, porque eu não vou parar de rir tão cedo. E, desse momento até o cartório, à igreja, o nascimento dos filhos, são coisas de anos, mas o que interessa é esse instante, esse primeiro minuto em que ele perguntou desajeitado se ela queria dançar com ele depois que parasse de rir e ela respondeu que deveriam começar a dançar logo porque ela não pararia de rir tão cedo. O que interessa é esse primeiro minuto, esse primeiro dia e, até, as horas que antecederam essa pouco gramatical pergunta e tal encantadora e já citada resposta, então vamos dançar agora. Interessam as horas que antecederam esse encontro que, eles não sabiam, seria um encontro pelo resto da vida, com filhos e netos, mas isso fica pra depois, porque interessam as horas que antecederam o encontro, horas nas quais ele passara por outras três festas em outras faculdades. Festas que, nos anos sessenta, eram chamadas de reuniões dançantes. Ele havia passado por três outras reuniões dançantes, como se dizia na época, e nada de bom a não ser a cuba libre, mas nenhuma mulher que lhe chamasse a atenção. Ia embora para casa, e teria ido embora para casa se não fosse o amigo chamado Mauro, que depois se tornou pediatra mas, na época, era apenas um adolescente que jogava futebol de salão e quando jogava brigava com todo o time adversário, com o juiz e, até com os próprios companheiros quando erravam passe. Mas esse amigo Mauro insistiu (ele devia estar iluminado por Deus), insistiu que fossem a uma quarta festa, instalando, em plena Porto Alegre, uma movida quando, em Porto Alegre, nem havia movida. E tendo ido, para felicidade sua, a esta quarta festa, aconteceu a visão da mulher linda e vestida de azul e a súbita e desajeitada pergunta e a resposta encantadora, ou seja, aconteceu o decisivo episódio que está relatado nas primeiras linhas desse que se pretende conto. Aliás, esse amigo, Mauro, jamais teve conhecimento da importância do gesto. Nem soube que casaram e tiveram filhos aqueles dois que ele, sem saber, uniu. E também sem saber ficou que, passados alguns anos, nem a pergunta quando parares de rir queres dançar comigo, porque nem riso mais havia, havia era a alma despedaçada e nem havia mais música para dançar e nem mesmo a disposição de fazer a pergunta e, se fizesse a pergunta, por mais gramatical que fosse, a resposta não seria então vamos dançar agora, porque as lágrimas não deixariam falar e tudo conspiraria para instalar entre os dois a mesma sensação que invade, agora, este que se pretendia conto, ou seja, de que deveria ter parado na página anterior e não poderia de modo algum ter prosseguido até esse tempo onde a alma já está despedaçada, deixando em quem escreve a sensação muito dolorosa de que não precisava ter lembrado nada disso.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Memorial (Monique Revillion)

O pai chegou de madrugada, daquele jeito oco e cambaleante, quando nossa mãe dizia sem dizer para que ficássemos quietos, pois de nada adiantaria a palavra sobre o hálito pesado da bebida, o olhar de vidro e sangue lanhando o espaço, sem enxergar ninguém. A mãe recolheu-se no seu canto, curvada sob o xale escuro, assumindo para si as vergonhas que antecipava, uma em cada boteco desde a cidade até nosso rancho, três léguas de caminhada, tempo de sobra para a serventia do coisa-ruim, solto desde a sexta-feira santa e andando sem destino por aí. Eu e meu irmão apenas fingíamos dormir, solidários. Ela, no outro dia, retornaria o caminho para honrar os fiados, reparar besteiras, mal entendidos, numa via-crúcis ao avesso, recuperando na teia de feminina paciência a honradez de seu homem, um amor maior que o mundo, como costumava dizer.

Ao amanhecer, porém, a rotina não nos trouxe sua facilidade, pois o dia já se esboroava com o chiado fundo do peito de nossa mãe, um lamento áspero de sopro engelhado, a mesa sem pão e sem leite, a fome esquecida em qualquer lugar. O pai havia sumido na fundura da noite, naquela hora suspensa em que todas as criaturas cedem, exaustas, à escuridão. Nossa mãe nada dizia, puxava o ar que lhe faltava, sibilante, a camisola apertada sobre o peito, os veios salientes da mão sob a pele muito clara, e sem tocá-la era fácil saber que tremia, e estava fria e úmida. De novo, profetizava algo ainda incompreensível para nossa inocência, embora há muito nos ensinasse a sentir o gosto e as cores de seus pesadelos, em confusa e sinestésica tradução.

Os vizinhos acudiram quando a tarde já ia alta, alguém com um prato de batatas, pasta de sardinhas, refeição que comemos, constrangidos, como se a comida, sua saciedade ou a virtude daqueles estranhos não nos fosse nenhum merecimento.

“O rio”, gritou a mãe de repente, angústia líquida vertida num jorro, e uma comoção respeitosa se fez entre os presentes, pois a enchente era tragédia coletiva, o rio onipresente nada poupara, descendo a serra numa fúria acintosa, carregando sementes, roças, ferramentas, o trabalho de anos transformado em lodo e bichos inchados, a podridão lembrando o lugar de cada um na ordem natural das coisas.

A mãe insistiu no pressentimento, sabia mais de nosso pai e de seus limites do que ele próprio. No leito de águas barrentas procuraram em cada curva, mas o corpo não foi localizado. Jamais curei a lembrança daquele dia, embora seja uma espécie de consolo saber que ele não resistiria ao que se sucedeu àquela enchente: a fome, a peste, a injustiça, tanta desonra e tão funda que fez nossa mãe definhar aos poucos, calada na sabedoria inútil aos novos tempos, uma profetisa fechada em si mesma, corroendo-se no círculo de ruminações e memórias, desconsiderada por um futuro onde seus presságios não teriam lugar. Talvez tenha sido melhor sumir no meio da noite, talvez melhor mergulhar tonto de cachaça, ninguém sabe o que passa na cabeça de um homem naqueles segundos de vertigem e desconsolo. Muitas vezes, sonho que o vejo, boiando com as costas à mostra em navegação incerta, a expressão tranqüila submersa no silêncio, o rio que ele adorava tornara-se algoz quando não medira sua maldade.

Hoje, se lembro de meu pai, é com a mesma água que eu o abençoo, aquela que eu buscava numa bacia para lavar seus pés antes da janta, sem questionar minha submissão posta em joelhos, satisfeita por estar próxima, plena com sua mão afagando meus cabelos. “Minha filha”, ele dizia, e era como se me batizasse frente a uma divindade amorosa, sua voz e seu olhar me conformando e dando-me saliência, o peso de seu gesto garantindo minha existência, esboço de vida potencializado naquele instante.

A enchente daquele ano virou história e na cidade ergueu-se um pequeno memorial ao acontecido, fotos aéreas, depoimentos, números que nada dizem do drama de tantos e sei que a morte de meu pai não faz parte da estatística. O rio também não é mais o mesmo, a força subjugada por barragens, assoreamentos, dragas, agora um curso de água estéril e traído na sua natureza de turbulência e vida. Olho com atenção as fotografias, às vezes reconheço um ou outro conhecido, mas há uma foto que me comove especialmente. Nela, minha mãe aparece com a expressão que adquiriu depois daquele dia. Como numa máscara, seus traços não haviam mudado, mas virado pedra. Ela olha diretamente para a câmera, abraça a mim e a meu irmão como se temesse o bote de uma fera, e seu corpo, que nos parecia fortaleza, é frágil e comovente. Na cena, há ainda uma pequena boneca de pano presa sob meu braço, algo que somente eu reconheço na imagem desgastada pelo tempo. A mesma boneca que joguei no rio, triste por perder a única coisa que afirmava a minha infância, com a ordem de que encontrasse nosso pai, acreditando que ela o traria de volta. Neste momento, consigo voltar àqueles dias, quando antes de dormir fechava os olhos a imaginar o pai, feliz, encontrando o brinquedo, reconhecendo ali um sinal de amor e talvez de perdão, sentimento que acrescentei ao gesto com o passar dos anos. Por breves instantes, vejo-o, comovido, recolhendo a boneca e guardando-a com carinho junto ao peito, quando o rio original que corre em mim volta a rugir, lavando a terra, e apenas permito, com alívio, que ele siga soberano e sábio o seu caminho.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Poema de amor sem ninguém e Procuram José Gonçalves (Ana Mariano)

Poema do amor sem ninguém

Este poema de amor
é bilhete sem destino
Não sei a quem entregá-lo
Não há nome no envelope
nem rua, nem direção
Ternura jogada fora
saudade apenas, sem fatos
que se possam recordar
este poema de amor
reincidente e insano
joga sal no oceano
transpira lençóis de insônia
esboça os traços de um rosto
traceja a forma de um corpo
apaga, torna a fazer
Vento vago que levanta
e logo depois deposita
palavras soltas, papel
este poema,
eu mesma,
este poema é ninguém.


Procuram José Gonçalves

Procuram José Gonçalves.
Homem simples,
brasileiro,
vivia
em Montevidéu.
Vendia flores na esquina
da avenida San Jose.
Além do nome, mais nada.
Medroso bicho pequeno
camuflado no prosaico,
não alcançava os negócios,
que, ao redor, se fechavam
desdobrando-se em camadas,
gravatas, lagos de gelo, uísques e amendoim.
Nada sabia do inferno.
Por que foi inesperado,
homem levando um outro
homem que não se vê ?
Talvez tivesse uma dor que um dia desesperou.
Ou seu olhar incendiado
de impossíveis passados
tivesse visto uma Rosa
a qual ninguém mais não viu.
E, nessa Rosa, outra rosa,
algum chamego, um requebro,
fez dele menino novo,
o sexo arregaçado
as mãos nos bolsos dobradas,
guardando fundo um segredo,
como quem guarda um real.
Procuram José Gonçalves,
menino, homem secreto,
que ao badalar de uma hora,
pisoteou as margaridas,
dobrou, agudo, uma esquina,
virou nota de jornal.